domingo, 9 de novembro de 2008

O POEMA QUE É UM ROMANCE

Gerana Damulakis


Preciso terminar a introdução da minha antologia atualizada e não consigo. Digo para Cassas que somente depois que concluir a penosa tarefa escreverei alguma coisa sobre seu mais recente livro. Mas algo me puxou, reli o livro de Cassas, senti tudo de novo, aquele encantamento e não vou esperar: vamos ler A mulher que matou Ana Paula Usher (História de uma paixão), editado pela Imago, neste 2008.
Luís Augusto Cassas é um poeta experiente, senhor da palavra, do verso, da estrofe, do poema, fazendo com eles o que desejar. Tenho seus livros e sei do seu caminhar. Não sei é se, por ser este o mais recente livro, sou levada e me posicionar desta forma tão tomada pela emoção, ou se acontece o mesmo a cada vez que recebo um livro dele saído da editora. Sim, porque ele é um poeta que sabe nos arrebatar. Porém, ao ir escrevendo e lembrando que realmente já senti tudo isto por conta de outros dos seus títulos, ainda assim este de agora está me parecendo mais estonteante. É um poema, é um romance, é a história de uma paixão. No final dá uma vontade louca de perguntar se não haveria uma maneira de, em lugar da morte do amor, fazê-lo renascer qual uma fênix. Não, quem renasce não é o amor, é o sujeito amoroso que das trevas procura e encontra a luz. Ora, isto é confundir ficção com realidade. A poesia, por mais confessional que ela possa ser se comparada aos demais gêneros literários, não deixa, por outro lado, de ser a ficção do sentimento. Só que há versos que nos fazem viajar na história da paixão, como em “Torpedo à Moda Antígona”: contigo eu moraria/ numa casinha de palha/ à beira da praia/ onde o vento faz a curva/ e viveria de brisa/ bebendo em teus lábios/ a água que vem da chuva”. É incrível o efeito do livro sobre o leitor, até esqueci que meu olhar deve ser o de uma observadora da literatura e não apenas uma deslumbrada leitora.
O título não deve ser associado nem ao poderoso e emblemático personagem, a amortalhada Senhora Madeline de Usher de Edgar Allan Poe, nem a qualquer outra que se chame Ana Paula, pois não precisamos de pontes. O livro está dividido em partes com seus títulos, contém uma estrutura perfeita, uma organicidade tal que, ao se deparar com seis páginas de prosa, a impressão do leitor é a de que o conjunto em prosa é inteiramente necessário. A prosa vem com o mesmo ritmo dos poemas, numa cavalgada frenética. Leia assim, sem tomar fôlego; depois, releia com calma, aí será de tirar o fôlego!
O poema “Um”, uma conjugação do ato amoroso, está disposto como a seguir: “quando estou em ti/ e tu estás em mim/ inverte-se o princípio/ do início ao fim/ no primeiro momento/ há movimento:/ eu sou tu és/ no segundo momento/ há desfalecimento:/ não sei quem sou/ acaso és?/ no terceiro momento/ viramos fragmentos:/ o nós e o vós/ habitam em nós/ depois não há nada/ e o espírito do só/ recolhe-se ao pó”. Conclusão: é um poema perfeito, leia com amor. Melhor, com paixão. Os poemas “A Cama”, Doença & Cura”, “Herança” ( em linha contínua), “O Vento e a Estrela”, “Dia dos Namorados”, “O Círculo”, “Epílogo”, A Busca do Mito”, “As Núpcias”, suscitam a vontade de começar reproduzindo-os aqui.
“O Discurso de Lilith nos Lençóis de Or” está fechado em cinco capítulos curtos: a primeira mulher, ou seja, o mito de Lilith é irresistível para a literatura, os escritores ficam encantados com a gama de significações encerrada nesta lenda, pois, criados por Deus em condição de igualdade, Adão e Lilith viviam juntos até que ela cometeu o primeiro pecado — que não foi a mordida na maçã — ao proferir o nome d’Ele; expulsa, então, do paraíso graças aos seus excessos, afoiteza e galhardia, e suas inquietações, Lilith passou a simbolizar a desventura, o mal, o diabólico exagero. Adão não suportou a solidão e rogou a Ele uma mulher, mas isto é outra história.Voltando ao “Discurso de Lilith...”, asseguro que é uma peça poética para ser desfrutada com releituras várias, dados a genialidade do discurso e o ritmo impresso; numa certa altura leio: “Sou Sodoma saqueada, Paris desfigurada, Berlim destronada, Londres transtornada. (...) Até ontem fui Noite. Meu nome é Luz”. Já em “A Mulher que matou Ana Paula Usher”, é restaurada “ a luz do meu arco-íris bombardeado”, porque o livro é um reencontro com a luz após um amor doloroso.
O autor sabe trabalhar a matéria amorosa com extrema energia, recorrendo tantas vezes ao acervo mitológico que reforça o imagético mundo de sua poesia. Uma poesia que não receia as exigências discursivas, que conhece os ritmos e os movimentos da língua portuguesa para apontá-los diretamente rumo às brilhantes senhas literárias. O certo é que Luís Augusto Cassas transcende sempre... e daí encanta o leitor.