sábado, 29 de novembro de 2008

LUCIDEZ



Manuel Anastácio


Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
dentadas.
Não te lances ao pescoço das cobras
Não te lances
Não
Não te lances
Não te lances aos transes depressivos da repetição
Aos lances regressivos da depressão
Não
Não te lances
Não avances
Deixa-te estar, a ver cada réptil passar sob os teus pés
E a rirem em ti da sua frigidez
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas penadas
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas geladas
Não te lances se tens medo
Se tens medo, não avances.

Mas só se tiveres medo.



Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana: entre em http://literaturas.blogs.sapo.pt/, ou use a entrada pelos meus Favoritos.

"Lucidez", por yang_83, retirado do Flickr.

MANHÃ


Gláucia Lemos


Pela manhã os pombos vêm. Esvoaçam, irresponsavelmente, e se empoleiram na fiação elétrica. Não ficam. Só alguns. A maioria retoma o vôo, manobrando com graça as asas simétricas, à pouca altura, planando como se um grande prazer lhes chegasse da exibição no espaço, na frouxa claridade semi-aberta. O vôo é uma suprema beleza inatingível a muitos. É um poder. Não só de Ícaro foi o maravilhoso sonho. Todos, alguma vez, elaboramos nossas asas de cera e nos alçamos à meta de algum sol. Inútil tentar saber quantos terão se erguido da queda; quantos terão carregado uma sutura no rosto, um coração transplantado, um pé defeituoso, uma cicatriz no peito, resquícios do seu sonho de Ícaro. E todos continuarão tentando, faz parte da programação existencial. Quem a traçou?
Não está fazendo muito sol nesta manhã. A luz vem coada, lembrando manhãs mal acordadas de cidades da Chapada, ou pós-madrugadas de beira-mar. Tampouco está frio o clima; há uma perceptível friagem, que mais parece umidade, muito confortável para se sentir. Silêncio de templo e nenhuma ventilação. Só agora, neste mesmo momento em que escrevo, uma folha da begônia vermelha no cachipo de bambu, em um ângulo da sala, se põe a tremer levemente, anunciando um princípio de aragem.
Ao longe tem início um ronco de motor, como ronronar de gato. Pressinto que principia a findar este momento de paz. Uma hora, na eternidade, de absoluta paz, que raramente se deixa acontecer, pelo menos para mim, que pouca importância tenho para as horas todas da misteriosa eternidade. Hora episódica, como toda paz. Sem calor, sem ruídos, sem preocupações, sem cobranças existenciais, sem discursos, sem insistência de luz intensa ferindo a vista. Instante de comunhão com beleza e bem-estar. Comunhão com Deus.
Os ruídos dos ônibus lentamente vão se multiplicando. Vão conquistando espaços a poluir, dentro do espaço límpido, puro, belo, tranqüilo, que os antecede. O relógio badala sete vezes. A campainha da porta vibra, chega a titular da cozinha. Minha manhã acabou, tem começo a manhã de todo o mundo.
Ouço, dos longes da minha memória, a voz de Agostinho dos Santos: A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor. Não sei se Agostinho sabia que cantava a verdade. Felicidade é fugaz, está no script: Cai como uma lágrima de amor.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, com 33 títulos publicados.

Foto "Manhã em Itapuã", de Briza Mulatinho, retirada do Flickr.