segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

VISÃO SENSUAL



Gerana Damulakis





Ele levanta halteres
displicentemente
como um vencedor de olimpíadas,
malhando o corpo musculoso e suado,
em plena forma,
tão sensualmente
que embriaga os sentidos
de quem olha - exercício mental
dos meus neurônios -
ativação dos ferormônios -
a imaginar um toque
naqueles feixes tensionados,
enquanto ele segue
- ignorante dos meus desejos.














Poema do livro Guardador de Mitos (Edição do autor, 1993).


Foto de Ivan Monticelli, retirado do Flickr.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

CERTAS MÚSICAS





Gláucia Lemos



Desperto para a manhã quente de um verão sufocante. O pensamento é o mesmo de alguns dias, ainda não consegui me livrar dele, e não creio que o queira perder . O mesmo pensamento vem tomando todo o meu tempo e espaço, e não entendo por que finjo querer dispensá-lo, se tenho consciência de que ele me dá prazer. Está sendo como certas músicas que às vezes teimam em freqüentar nossa mente sem qualquer motivo que não o registro de alguma coisa. Desde o dia em que cheguei da última viagem comecei a cantar: Deixe eu dizer que te amo, deixe eu gostar de você. Amor I love you, amor I love you. Mal acordo e aqui está como um pano de fundo bem dentro em mim: Amor I Love you, amor I love you. A melodia se repete e estou a cantá-la mesmo em silêncio.
Por entre as faixas frágeis das persianas, listras de luz se projetam e desenham um simétrico painel na parede clara. Brinco de este-sim-este-não, com o olhar saltitante entre elas, procurando ocupar a mente com outra coisa. Lá fora o amolador de tesouras sopra um realejo em escala cromática agudíssima. Então, imediatamente penso em André que se incomoda com o som dessa escala. Já perguntei: Por que não gosta? – Não sei, não gosto. Foi bastante. Aquela gaita é ele. É curioso como certos sons estão ligados a certas pessoas e a certos momentos. O amolador de tesouras e meu neto André. Amor I love you e uma imagem fixa no meu pensamento, como se fosse possível reter uma figura as time goes by. E a repetição desse compasso está agora outra vez interrompendo o meu desejo de continuar esta crônica, que me acordou logo pela manhã para a luz e os suores do verão, e era desse verão que eu queria falar. Um pensamento, uma imagem insistente e um pedaço de música que se casa perfeitamente com a sugestão da imagem.
Falo As time goes by e a expressão remete a Casablanca, o filme. No último sábado o vi pela terceira vez. Agora em DVD. Quando foi lançado, eu estava saindo da puberdade, idade de sonhos de amores eternos e de inabalável fé na eternidade do amor. As time goes by cantava na boca de todos os adolescentes como um hino e uma profissão de fé. Por tudo e por nada repetia-se: “Toque outra vez, Sam”. Erradamente, pois a frase no filme é “toque uma vez, Sam”. Mas era constante.
Eu estava nos meus primeiros anos de ginásio, e no meu primeiro encantamento sentimental. E acreditava que amaria por toda a eternidade aquele menino franzino, branquinho, de cabelos negros sempre caindo um pouco sobre a testa, numa madeixa luzidia e teimosa. Enfim, a eternidade está dentro de nós. Era meu vizinho, tinha olhos grandes e, na boca pequena, um sorriso bonito. Onde abri as mãos e o perdi? Se é que o perdi. Em que trecho da vida o deixei, que ele continuou a vir comigo suave como um vôo de pássaro que me acompanhasse em todos os lugares, em todas as companhias que tive, em todas as perdas e todos os êxitos, e ainda o tenho, mesmo agora quando sei que está morando em algum ponto onde moram todos os mistérios que estão encravados na eternidade, ainda o tenho as time goes by. Amor I love you, amor I love you.


Gláucia Lemos ganhou o prêmio UBE - SP 2007 com o romance BICHOS DE CONCHAS.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

O CORPO



Flamarion Silva

Descontinuariam a festa por causa da morte de Romildo? Tomara vivalma não se lhe dê conta. Achado, decerto não haverá festividade. É costume do povo, que é respeitoso, não demonstrar alegria quando parte um irmão. É uma cumplicidade de dor, como quando o amigo se vai, deixando saudade colada à lembrança. Quem não se lembra de Seu Aniceto de dona Carmélia? Expirou no Jardim das Flores, mas lá, sem campo-santo, veio às carreiras ser enterrado em Barcelos. No dia do sepultamento, uma bebedeira no bar de Preto. A radiola alta. Mas, pronto, bastou o povo avistar o cortejo lá em cima, no Mirante, ligeiro o som silenciou. Quem estava de chapéu, sacou-o fora. Todos persignaram-se e fizeram o sinal da cruz em reverência. Um cujo abriu caminho para o dito:
“Vá com Deus, meu irmão.”
E logo todos o seguiram:
“Vá com Deus.”
Indo.
O sino principiou a bater na igreja de Nossa Senhora das Candeias. Anunciava a morte e convocava o povo para o cortejo. Quem ouvisse a trágica canção, logo fazia a leitura:
“Vixe, meu Deus, morreu um’alma, e não miúda, de anjo; pelo ritmado do badalo... o alteado... gente grande.”
Porém, o povo queria a dança, a cachaça, a esfregação, a safadeza, a putaria. Trezentos e sessenta e cinco dias na folhinha subtraídos, um a um, do levantar ao cair do sol, os dias compridos. Tão aguardada festa! Pois bem. Romildo que ficasse lá. Quem mandou subir em árvore? Pegar passarinho a mão? Eis o que se deu: despencou lá de cima. E cá embaixo, nas estacas, o corpo cravado. Alguém, sem coração, dirá depois:
“Quem lhe tem pena? Estragar a festa... Vá ser azarado assim no inferno!”
Olhe o diabo: dona Branca, mulher de Seu Miguel de dona Rola, havia-o de ver. Um mal estar a levou aos matos, arrancar folhinhas de chá. Bateu os olhos no corpo de Romildo. Diria, não diria, apodreça até amanhã! Nem isso a peste pensou. Deu a gritar. Gritos de morte. Diferenciados das batidas no anúncio de alguém já morto. Aí o momento é desigual. Diferente do sino que já bate consciencioso da morte. O grito de dona Branca declarava o exato momento do antecipado confronto. Pois quem morre, mata muitas vezes, até aquietar-se sob o terreno da memória, o defunto. É uma cadeia que se sucede. Primeiro o morto original, e no justo instante dona Branca de Seu Miguel de dona Rola, mais logo todo o mundo a morrer mais um bocadinho. Todos com o seu quinhão da Dona Fatídica. Até o morto, o de verdade, ser enterrado de vez. E, ainda assim, mesmo depois de amanhã e mais, mesmo sob o chão lacrado, às vezes, na lembrança vem, como alva garça, avoada a alma matar um pouco quem vive. E como apossa-se-lhe suave no pouso! Mas cravam-se-lhe as unhas na alma, irmão. A gente chora que doem os ossos. É costume da gente se lembrar, gostar de se matar, avivando o sofrer.
Por esse então, a gente embriaga-se toda. Um motivo tem: se há dor, é preciso esquecer. E, na bebedeira, os motivos se confundem, os objetivos tornam-se desvirtuados, os braços se agarram a tudo, pois a tontice é muita, e as pernas, tantas embaralhadas, assim vão-se a valsar essa dança doida de bêbado.
A gente concorda em fechar os olhos diante do morto. Gente, pois não somente dona Branca de Seu Miguel de dona Rola o viu, assim como Zeca da Biriba, Manuel do Brejo, o rapaz que se enamora de Dadinha, e quem mais, só Deus sabe! Que mundo, este!... Bem, o fato é que, resolvido, sem encontro marcado, ficou tudo conforme: ninguém viu o corpo de Romildo enfiado nas estacas. Foi tudo assim como se concluíssem: os mortos, aos mortos; a gente vai à festa.


Flamarion Silva é autor de O rato do capitão da Coleção Selo Letras da Bahia (EGBA, 2006).