sábado, 27 de junho de 2009

SOB A CHUVA LÁ FORA

Flamarion Silva

A rua quieta. O carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho. O gato “Lord” sobre o muro. Começou a chover fininho. O vento agitava com leveza as folhas da roseira branca de Lídia, que àquela noite ainda não voltara para casa. A chuva começou a cair mais forte e o ruído que fez sobre o carro vermelho parado bem rente ao muro vizinho não incomodou o sono de ninguém. A água da chuva fez um córrego bem no meio da rua. Um pedaço de papel foi levado pela água e foi se desviando de pequenos obstáculos. Destino trágico. A boca negra do bueiro o engoliu faminta. O vento ficou bravo de repente e deu um safanão na roseira branca de Lídia e ela esbateu-se contra o muro. Coitadinha. A luz cor de bronze do poste tremeluziu. De repente, a constatação: a casa do vizinho estava morrendo, de tristeza. Aquela, encostada à casa de Lídia. Suas paredes tão frias! Todo o tempo fechada e nenhuma voz a lhe humanizar. Morria sem gemidos, resignada. A casa de Lídia era amarela, na varanda havia plantas nos caqueiros e no teto balançava um bebedouro de passarinho. Sua borda era vermelha e florida. O portão da casa de Lídia era branco e de ferro. Quando aberto, emitia uma risada. Mas naquele momento ele estava com feição preocupada. Vez ou outra espichava os olhos para fora, ver se Lídia já vinha descendo a rua. Mas a maior parte do tempo ele preocupava-se mesmo era com a segurança da casa. O outro portão, o da casa colada à casa de Lídia, era de madeira e já não esperava ninguém. Outrora fora alegre e muito receptível. Nos vincos de sua madeira apodrecida, a memória de um senhor e uma senhora já velhos que mudaram de casa. Nunca mais voltariam. A partir daí teve início a morte lenta desse portão. – E esta chuva que não passa. Deus queira, Lídia tenha levado a sua sombrinha japonesa e automática que faz “flop!” quando se abre – o homem pensou – Lídia é prevenida. Marluce também toma lá os seus cuidados, mas a sua sombrinha não tem o mesmo espírito alegre que tem o da sombrinha de Lídia. Não se compara. Por esse momento um vulto surgiu crescendo na parede da sala, onde o homem se encontrava, encostado à janela. Era Marluce. – Você não vem dormir? O homem não se assustou com a presença furtiva da mulher. Não era raro ela invadir os seus pensamentos. – Olhe só esta chuva – ele disse. – Vou deitar – disse a mulher, e sua sombra foi-se escorregando pela parede, sumindo-se pelo corredor. Outra vez só, com seus pensamentos e aflições, o homem ansiava por ver Lídia descer a rua, abrir o portão e a porta de casa. Precisava ter a certeza de que ela chegaria bem. Minutos se passaram. O sono já lhe fechava os olhos. – Paciência – ele disse, já dando os primeiros passos em direção ao quarto, onde, com certeza, sua mulher já passeava por sonhos distantes. Mas algo lhe disse para esperar mais um pouco, pois logo Lídia surgiria lá em cima, talvez meio ensopada de chuva, e o portão se abriria com sua habitual risada. – Sim, sim – ele agora tinha certeza, Lídia descia a rua. A sombrinha pequena esforçava-se para proteger sua dona. Não era possível ouvir os passos de Lídia, mas dentro do coração do homem algo começou a bater mais forte. Lídia abriu o portão e ele sorriu. O homem escondido na janela também sorriu tranqüilo. Poderia, enfim, ir dormir. Mas antes, olhou mais uma vez a rua. A água da chuva começou a cair com mais intensidade. Um sentimento, que o homem não compreendeu, perpassou-lhe a alma. Pungentes gotas de chuva caíam sobre o vermelho metálico do carro encostado ao muro da casa defronte. Parecia haver se instaurado um tumulto na solidão das criaturas frias, quase mortas, daquela rua.


Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão, da Coleção Selo Letras da Bahia (SCT, EGBA, 2006).
Foto: "Portão de ferro", por Mónica (Monguinhas), retirada do Flickr.

DAS DELICADAS FÁBULAS

Gláucia Lemos


O visual do livro Fábulas delicadas - muito bem casado ao título - leva a pensar em um projeto para ser presenteado. Reportou-me ao Presente de um poeta de Pablo Neruda, tradução de Thiago de Melo, editora Vergara & Riba, SP 2001, que, não tendo embora reunido o melhor da produção de Neruda, traz um visual na capa como no miolo - ilustrado com pinturas em aquarela sobre papel couché - de um dos mais belos e bem cuidados livros de poesias que já conheci. É aquele volume que a gente olha e diz Lindo! E só depois é que folheia. Assim é a primeira impressão causada pelo Fábulas delicadas de Eliana Mara Chiossi, editora Escrituras SP 2009, recém lançado.
Contos, eu não diria que sejam. A autora tem grande talento para frases curtas, bem inspiradas e metafóricas. Às vezes sentimos uma história que se esconde sob a poesia das sentenças, histórias que não se permitem desvelar, como se tivessem medo ou pudor de romper a névoa sob a qual seu mistério se guarda. Não que a pequena extensão dos textos seja o que lhes negue ingresso ao nicho do gênero da contística. Existem, na boa literatura, inúmeros, incontáveis textos, que sendo embora de pequeno tamanho, não se lhes pode negar a classificação de contos, a partir de que são trabalhados com suficiente engenho na qualidade literária, por isso que nos oferecem obras de arte verdadeiras. Não são contos os textos de Fábulas delicadas porque se revestem de frases, que eu diria versos dispostos em formato de prosa, que mal permitem entrever um ponto de partida e não levam a um enredo , no que pese a agradabilidade da leitura, que conduza o leitor a acompanhar como tal. Senão em raros casos como em "Mãe" por exemplo, no qual um episódio se apresenta, e de uma maneira reveladora para a prosadora não mostrada o bastante neste primeiro livro, neste em qual a autora preferiu colocar-se no seu inspirado pendor poético.
Mais tendente para crônicas e muito mais para prosa-poética, o livro é dividido em nove partes, que a autora nomeou conforme lhe pareceu apropriado para os textos nelas enfeixados.
Sem embargo de não estar procedendo a uma crítica, e sim apenas esboçando uma resenha, não quero deixar de evidenciar o cunho de feminilidade que evola de todas as composições, quer no lirismo de entrega e doação ao ser a quem dedica seu amor, quer ao expressar a mulher no seu desassombro de iras, de angústias e de suas perplexidades. Tudo em que a autora se coloca traz uma carga emocional que, vindo às vezes cifrada nas imagens de águas, de pássaros, da casa, define a atávica e transcendental angústia feminina por libertação, e pelo conhecimento das suas próprias ansiedades e perguntas. Poucas vezes Eliana Mara Chiossi se entrega a filosofar em torno de coisas imergindo para a frieza do intelecto em confronto com o calor da emoção, mas o faz muito bem quando o faz, tal nas reflexões sobre o abacaxi e sobre a laranja. No geral, temos o ser poético se doando a seus momentos de comunicação, necessários e indispensáveis a todos os que vêm a este mundo portando dentro de si um outro mundo de mistérios do qual nem os próprios conhecem a exata decifração.

TRECHO DE "CRIME OCULTO"


Carlos Vilarinho


Naquele dia eu estava aborrecido. A mulher tinha cobrado mais atenção de minha parte, como se eu tivesse que procurá-la para amar novamente. Ora, foram trinta e cinco anos juntos, tivemos duas filhas já criadas e casadas. Cada uma com seu macho, eles que cuidassem delas de agora em diante. A mulher rezava ao deitar, rezava para pegar no sono, rezava para acordar, rezava para levantar... Diabo de tanta reza! Já não agüentava mais, então lhe perguntei o que ela fazia de fato na igreja se gastava toda a reza dentro de casa. Ela pensou que eu estivesse ciumando, ora, veja! Sorriu e dissimulou sensualidade pífia.

- “Ridícula!”

Aquilo me aporrinhou tanto que saí de casa tremendo de desgosto e nauseabundo. Além de ter tomado duas cápsulas de Rivotril. Louco de dispepsia, ouvi o grito da mulher ao sair.

“Estás sob a influência de Satanás, velho.”

E mais, em tom bíblico:

“Antes da ruína, vem o orgulho... Antes da queda vem a presunção”.

Assim cheguei à rua principal de Brotas, ofegante e enojado pelo aborrecimento causado por Regina Astrid que um dia foi uma bela mulher e levou-me para o altar. A moça com olhar de cio passou por mim e não pôs as vistas em mim como de costume...


Carlos Vilarinho é autor do volume de contos As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias, do Selo Editorial Letras da Bahia (SCT, FUNCEB, 2005).
Foto: "Satanás", por Erredé, reirada do Flickr.