sábado, 30 de janeiro de 2010

MEU ESCRITOR










Gerana Damulakis

Ele diz, pois que está (sempre esteve) seguro disso: "Eu sou um escritor". Aramis Ribeiro Costa é ficcionista, poeta, memorialista... Aramis Ribeiro Costa é escritor. Não resisto e, além do miniconto, segue um poema de Espelho Partido (FUNCEB, 1996).
Neste 31 de janeiro, seu aniversário, lhe desejo: vida longa, lovinho. De preferência, sempre comigo.



O HOMEM QUE NÃO TINHA MAIS NADA PARA FAZER

Aramis Ribeiro Costa

Cansado de tudo, concluiu que não tinha mais nada para fazer.
Então foi viver.



SONETO DO SOL DE MADRUGADA
----------Aramis Ribeiro Costa

É noite — como as noites são vazias
E faz silêncio à volta, em toda a estrada
As mãos já não procuram, são tão frias
É noite — e nem sinal de uma alvorada.

Há cruzes espalhadas — tão sombrias!
Há um desejo morto na calçada
As esperanças passam, fugidias
Parece que adiante não há nada.

E de repente o fim que se procura
Após a longa e triste caminhada
E finalmente a luz na noite escura

O sol brilhando em plena madrugada
O desejo de ser — sem ser loucura
A vida, num segundo, iluminada.



Foto de Aramis por Rejane Carneiro, jornal A TARDE.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

UMA OBRA PARA SEMPRE


Gerana Damulakis

Há qualquer coisa no livro maior de J.D.Salinger (1919-2010), O apanhador no campo de centeio. E não é preciso ter 17 anos, ser adolescente, para entender, para sentir uma vontade danada de, talvez, senão mudar o mundo, gritar para o mundo.

O Apanhador... acompanha a vida de Holden Caulfield, jovem de 17 anos, de uma família endinheirada de Nova York. Holden é estudante de um internato, mas volta para casa antes do previsto para as férias de inverno, pois foi reprovado em praticamente todas as matérias. É nessa volta para casa, pensando na repreensão da família, que Holden vai aprofundando o que sente, como sente, dando corpo ao seu modo de perceber o que o cerca.

Uma das obras mais marcantes da literatura norte-americana da segunda metade do século XX, O Apanhador no campo de centeio é uma baliza, determinando sua contribuição como um chamamento para que se atente, se ouça, se leve em consideração a voz e o pensamento da juventude.

Diante disso, desde 1951, o romance foi se tornando quase uma lenda. E lendas foram sendo criadas em torno dele e de seu poder de influenciar, tais como a que envolve o assassino de John Lennon e também a que envolve o homem que tentou matar o presidente Ronald Reagan: ambos os criminosos estavam lendo O apanhador no campo de centeio. Jerome David, J. D. Salinger, também ganhou rótulos, virou um dos grandes mistérios da história da literatura contemporânea, graças ao seu estilo de vida, sempre recluso.

O fenômeno de 1951, The Catcher in the Rye , O apanhador no campo de centeio, foi seguido por: Nove Histórias, coletânea de nove contos publicados na revista The New Yorker entre 1948 e 1953; Franny & Zooey, com duas novelas curtas, em 1961, e Raise High the Roof Beam, Carpenters and Seymour: An Introduction, aqui traduzido, pela Companhia das Letras, como Carpinteiros, Levantem Bem Alto a Cumeeira e Seymour, uma Introdução, duas novelas de 1963. Os três títulos primeiramente citados são publicados pela Editora do Autor.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

SOBRE A CEGUEIRA



Gerana Damulakis

Hoje, 29 de janeiro, comemoram aniversário: o escritor Flamarion Silva e eu. Costumo chamar Flamarion de meu afilhado literário. Chamo assim a todos os que tiveram livros publicados na Coleção Selo Letras da Bahia, da Fundação Cultural do Estado da Bahia, Secretaria de Cultura e Turismo e EGBA, quando fiz parte da comissão editorial por 8 anos. É imensa a satisfação quando constato como meus afilhados e afilhadas literários seguiram escrevendo, crescendo, realizando seus sonhos. Sem ser piegas (eles sabem), a realização acaba sendo minha também.

Parabéns pelo seu dia, Flamarion: comemore muito com sua Graça e os seus queridos filhos. Segue um miniconto de Flamarion Silva, autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006 - Coleção Selo Letras da Bahia, v.108) e de O Pescador de Almas (no prelo, selecionado no edital da Fundação Pedro Calmon).

SOBRE A CEGUEIRA

-----------------Flamarion Silva

Diz Kafka:
— É verdade que não se pode dormir e sonhar sem se fechar os olhos. Mas não é estranho ver por aí tanta gente dormindo e sonhando de olhos abertos?
Dostoiévski responde:
— Se se tapasse a boca com a mão, a que sufoca, nem por isso, decerto os olhos saltariam, não de susto, mas de evidente denúncia, como se eles fossem uma boca e falassem.
Saramago encerra:
Um homem entrou em sua toca a esgueirar-se pelas paredes. A luz, acesa, imediatamente foi apagada.
— Ora, mas quem ousou acender a luz? reclamou indignado. Será que todos não sabem que ela cega os olhos?
E, já mesmo sem seguir tateando, o homem adentrou rápido à sala. Depois, sentou-se no sofá, abriu o jornal e só aí, então, arregalando os olhos, procurou em algum lugar onde deixara os óculos.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

UMA JANGADA DE PEDRA A CAMINHO DO HAITI


O Grupo Leya, a Editorial Caminho e a Fundação José Saramago lançaram com outros parceiros, a campanha “Uma Jangada de Pedra a caminho do Haiti”, ato de solidariedade para com as vítimas do terremoto no Haiti.
A ajuda será dada através da venda de uma edição especial do livro “A Jangada de Pedra”, nas livrarias portuguesas a partir da próxima sexta-feira.
As editoras de José Saramago na Espanha e na América Latina farão campanhas semelhantes nos respectivos países.
Tanto a capa quanto a notícia foram retiradas do Bibliotecário de Babel (http://www.bibliotecariodebabel.com/).

HOJE É COM CECÍLIA MEIRELES

Gerana Damulakis

Minha relação com a poesia vem desde muito cedo. Claro que a culpa foi do ambiente. Pessoa na família que era poeta, todos falavam muito de literatura, outra pessoa na família que era jornalista e escritor, biblioteca em casa. Tudo isto ajuda e influencia, embora não necessariamente, tampouco definitivamente. De forma que trago a poesia e a admiração pelos poetas dentro de mim, eles acharam morada permanente. Acontecimento automático: adorar descobrir poetas, vibrar com as realizações deles. E, assim, alimento a poesia que reside em mim.

Cada dia amanheço com certos versos. Fiel, Manuel Bandeira tem lugar cativo. Mas ando muitos passos com Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Florbela Espanca, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Manoel de Barros ... para ficar com aqueles de nossa língua.

Hoje são os versos de Cecília Meireles (1901-1964) que tomam os pensamentos, se repetem como frases musicais, me encantam, trazem imagens belas e estranhas. A poesia é um mundo fascinante.

4º MOTIVO DA ROSA

-----------Cecília Meireles

Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verás, só de cinza franzida,
mortas intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando em mim.

E por perder-me é que me vão lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

MINICONTO


OS DIAS, AS NOITES E OS DIAS

Aramis Ribeiro Costa

---- Era um péssimo sujeito durante o dia inteiro. Pequenas ruindades a torto e à direita, com Deus e o mundo.
-----À noite sentia remorsos, achava-se mau. Às vezes perdia o sono. Fazia planos para mudar.
-----Mas, no dia seguinte, tudo recomeçava.



Ilustração: retirada de jornale.com.br

ILDÁSIO TAVARES: POESIA VIVA


Gerana Damulakis

Dia 27 de janeiro será a homenagem aos 70 anos do poeta Ildásio Tavares (convite acima), mas seu dia de nascimento é hoje: 25 de janeiro. Parabéns para o poeta e amigo.
Ildásio Tavares fez Letras na UFBA, Mestrado na Southern Illinois University, Doutorado na UFRJ, Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa. É poeta, ficcionista, cronista, tradutor, compositor, especialista em Ernest Hemingway e em Camões. Um de seus títulos - são tantos - é O Domador de Mulheres (Imago Editora, 2003). Tenho sempre perto de mim o volume 50 poemas escolhidos pelo autor (Edições Galo Branco, 2006). É desta reunião citada que retiro o poema abaixo.

RESTOS
------Ildásio Tavares

Há um resto de noite pela rua
Que se dissolve em bruma e madrugada.

Há um resto de tédio inevitável
Que se evola na tênue antemanhã.

Há um resto de sonho em cada passo
Que antes de ser se foi, já não existe.

Há um resto de ontem nas calçadas
Que foi dia de festa e fantasia.

Há um resto de mim em toda parte
Que nunca pude ser inteiramente.

sábado, 23 de janeiro de 2010

POESIA ENQUANTO CINEMA

Gerana Damulakis

É do livro de poemas intitulado Cinema, vencedor do Prêmio Braskem Cultura e Arte, na categoria Literatura, promovido pela Fundação Casa de Jorge Amado, o exemplo da arte poética de Herculano Neto, do blog Por que você faz poema? (http://herculanoneto.blogspot.com/).
A estrutura do livro remete a planos cinematográficos, quando a visão foca muito de perto, quando se afasta para usar de certa ironia. Suas partes: "Filmografia", "Curta-metragem", "Matinês" guiam o leitor para tudo se acabar no excelente "cinema", poema que fecha o volume antes do "epitáfio III".
É fácil entender a razão do livro ter sido vencedor, seja pelo valor (claro), seja pelo cuidado (queiram ou não, isso conta) de sua organização. Resta parabenizar o poeta.

"morangos silvestres"
---------------Herculano Neto

----quando mainha chamou:

- vem pra dentro que invernou!

-era de tarde e eu ainda não

sabia o que era melancolia



----quando mainha chamou

--------o quintal era grande

chole e os vizinhos ainda estavam vivos

--------eu era outro menino



-------------quando mainha

PARABÉNS PARA A POETA ANA TAPADAS



Gerana Damulakis

Os aquarianos têm a cabeça nas nuvens, dizem. Não concordo. Parece que nós, aquarianos, temos um pé na terra e outro no ar, sabemos viver a realidade muito intensamente, assim como sabemos voar, quando nos apetece escapar de tanta realidade. Mas, esqueçamos as generalizações fáceis dos signos.
Ana Tapadas é uma poeta, uma poeta singular no uso de palavras que transmitem muita força. O resultado geralmente é o poema forte, vibrante, sempre muito bem realizado. Tarefa difícil a escolha dos exemplos de sua poesia. Optei por um soneto para evidenciar a sua destreza com a forma fixa, e outro poema que me toca muito de perto.
Foi através do blog de Janaina Amado (http://acreditandonotruque.blogspot.com/) que conheci o Rara Avis (http://raraavisinterris.blogspot.com/), blog de Ana Tapadas.
Querida Ana: neste seu dia e em todos, saúde e alegria para você.

"OMNIS HOMO MENDAX"

--------------Ana Tapadas

Falar de ti é sentir a palavra pequena
Para dizer-te a verdade que não liberta...
É ler-te na vida a razão do poema
Na teia de teus sonhos encoberta!

Falar de ti é ter dois dedos de luz
Presos ao orvalho da procura...
É erguer os olhos para a cruz
Fecundando paz no ventre da amargura!

É ter dois passos de noite, o sol e o luar,
Espreitando o último mistério da oração,
Ao apontar o imperativo do verbo amar!

É sentir amizade, ter confiança e ler solidão,
Dentro da penumbra perturbada do teu olhar.
Falar de ti é: vergar o orgulho à gratidão!

A ESMO

--------Ana Tapadas

Inquietas-te alma - criança,

tantas vezes te fiz lutar...

E farei! Pois farei!

Exigente...(e se o não fora?)

Se eu pudesse exigir;

se não temesse incomodar;

se conseguisse fazer despertar

essas serenidades abstractas;

essas beatitudes beatas!

Revolta? (não, não é isso!)

É o silêncio que incapacita,

que mortifica ...

e não deixa que saibais amar.

Conheceis-vos tão bem

- beatitudes hipócritas! -

que esqueceis o que enalteceis.

Injusta? (eis o que sou.)


Ilustração: Rafal Olbinski

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O NASCIMENTO DOS DESEJOS LÍQUIDOS


Gerana Damulakis

Não entendo e nem procurarei entender uma associação que surgiu em mim: O nascimento dos desejos líquidos, de Salvador Dalí, a obra acima, de 1932, e o poema "Fera" de Carlos Drummond de Andrade, do livro Farewell (Record, 1996).
Pontes que são criadas sem sabermos a razão. A ponte aqui estaria na sensualidade presente em ambas as obras? Escrevo outra vez para sentir: a sensualidade do poema de Drummond (o Drummond "tigre" dos poemas de Farewell) e a sensualidade dos "desejos líquidos" de Dalí. Tão boa a sensação. Não é preciso entender.

FERA
-------Carlos Drummond de Andrade

Às vezes o tigre em mim se demonstra cruel
como é próprio da espécie.
Outras, cochila
ou se enrosca em afago emoliente
mas sempre tigre; disfarçado.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

VOCÊ É O QUE VOCÊ ESCREVE

Exemplo:
Mostre-me um herói e eu escreverei uma tragédia
F. Scott Fitzgerald

POETA, LORDE E LIBERTINO



Gerana Damulakis

A história da literatura inglesa registra as mortes prematuras dos poetas românticos John Keats (1795-1821), Percy Bysshe Shelley (1792-1821) e George Gordon, o Lorde Byron (1788-1824). Byron dominou abertamente o segundo grupo dos românticos: nenhum poeta foi a personificação tão perfeita das características simbólicas de seu tempo, desde a amplificação dos sentimentos, a auto-projeção, até o gosto pelo escândalo e pela boêmia: ele próprio foi a obra de sua vida.

George Gordon herdou o título de Lorde Byron, aos 10 anos, de seu tio-avô. Seguindo o costume aristocrático, após obter os títulos universitários, Byron partiu em viagem. Resultado desta viagem foi Childe Harold’s Pilgrimage, que tornou o poeta célebre da noite para o dia. Grandiosas imagens das belas paisagens mediterrâneas são descritas no poema onde, adicionando uma acre meditação sobre as alegrias vãs da vida, Byron só vislumbrou sofrimento em torno de si: o herói de passado obscuro em sua luta contra a apreensão sinistra derivada de um crime misterioso que arruína a mulher amada. Na verdade, todos os heróis de Byron sentem o mesmo: The Giaour (1813, “O infiel”), The Corsair (1814, “O corsário”), Lara (1814).

Após o casamento desastroso com Annabella Milbanke, que durou um ano e deu-lhe uma filha, Byron partiu da Inglaterra em 1816, para sempre. Em Genebra, conheceu Shelley, que também havia deixado a mulher e a pátria. O poeta Shelley e sua amante Mary Godwin (autora de Frankenstein) viviam com a meia-irmã desta, Clare Clairmont. Byron e Clare tornaram-se amantes e tiveram uma filha. Na Suíça, os Alpes inspiraram o terceiro canto de Childe Harold’s, verdadeiro hino panteísta.

Com a publicação do delicioso Beppo, A Venetian Story, em 1817 (Beppo está traduzido por Paulo Henriques Britto, para a Nova Fronteira, acompanhado de uma das brilhantes cartas de Byron), o Lorde solidificou sua fama. Foi o tempo mais pleno de aventuras, as mulheres enlouqueciam diante do jovem nobre em vida de lascívia e sensualidade, que viajava mundo afora fugindo de um amor impossível, condição de seu sofrimento.

Belo, um homem cercado de mulheres e, no entanto, sempre carente. E mais: escrevendo sobre a paixão, ele apaixonava; chegou a contar 200 mulheres em um ano. Até que conheceu Teresa Guiccioli, uma jovem de 19 anos, casada com um homem idoso e rico. Byron tornou-se amante oficial de Teresa e, com a família da moça, entrou para a sociedade secreta dos Carbonários.

A convite do Comitê Grego de Londres, o poeta partiu para a Grécia, querendo comandar uma força militar na luta pela libertação deste país. Ficou na ilha de Cefalônia, protetorado britânico, até que com seu próprio dinheiro, emprestado à resistência, a frota grega conseguiu mobilizar-se para juntar-se ao príncipe Aléxandros Macrokordátos.

No início de 1824, 22 de janeiro, Byron completou 36 anos e escreveu seu último poema. Pleno de poderes, envergando um uniforme vermelho, ele e a brigada pretendiam atacar Lepanto, mas uma forte tempestade apanhou Byron que, encharcado, voltou para a cidade. Teve febre e delírios; foi feito um tratamento à base de sangrias, que enfraqueceu ainda mais o poeta. Byron morreu no dia 19 de abril de 1824 e foi reconhecido pelos gregos como herói nacional. Seus pulmões ficaram na Grécia, em canopo, ou seja, um vaso próprio para guardar as entranhas das múmias, na igreja de San Spiridiano, em Mesolóngian. O corpo seguiu para a Inglaterra, sendo rejeitado pela Abadia de Westminster, local dos grandes poetas mortos. Byron foi sepultado com seus ancestrais.

O mito, o libertador de uma terra oprimida, personificando um verdadeiro general dos gregos na sua guerra de independência contra os turcos, conferiu a Byron uma completude: glória no suscitar das paixões, glória militar, glória na morte. A 64Km de Atenas, em Sounion, há uma colina com um templo de Poseidon: tem 15 colunas brancas dispostas regularmente; aí, na base de uma destas colunas, Byron deixou seu nome gravado.

Mas o significativo mesmo é que sua obra finalize com o poema intitulado Don Juan. Iniciado em 1819, Byron morreu no começo do canto 17. O destino de Don Juan nunca saberemos; contudo, Byron conquistou o mundo. Na Inglaterra, Shelley, Keats, o então adolescente Tennyson e Browning eram seus admiradores. Na França o byronismo deixou marcas em Lamartine, Hugo, Vigny, Musset. Na Espanha, Espronceda foi o Byron ibérico enquanto em Portugal Almeida Garret encarnou o Byron erótico e, na Alemanha, Geothe considerou o Lorde “o maior engenho poético do século”. Puchkin achou no Don Juan o exemplo para seu Eugenio Onegin. No Brasil, entre tantos, Álvares de Azevedo foi cognominado “o Byron brasileiro”.

Morreu como herói quem o herói cantou. No enterro, em seu país natal, as carruagens nobres fizeram um desfile, só que estavam vazias; a aristocracia demonstrou respeito pelo nobre, mas não se atreveu, com a presença física, aliar a convenção à aprovação das idéias políticas ou do estilo de vida do lorde libertino, tampouco ousou reconhecer um poeta que entoava loas ao mal. Neste caso, não há como separar o homem do poeta; nas palavras de Auden: “O autêntico poeta em Byron é Byron”.

Trecho de "Poeta, Lorde e Libertino (sobre Lorde Byron, o poeta aventureiro)", in O rio e a ponte - À margem de leituras escolhidas. GD

domingo, 17 de janeiro de 2010

LIVROS, ABISMOS E O CANTO DO RINGUE


Fernando Molica


O ponto da partida foi mais cedo para o chuveiro. Após ganhar de Acenos e afagos, de João Gilberto Noll, acabou derrotado por Flores azuis, de Carola Saavedra, nas quartas de final da Copa de Literatura Brasileira. O jogo foi decidido por Leandro de Oliveira.

Nada a reclamar, claro: como já ressaltei aqui, o mais importante da Copa é a oportunidade de se discutir a produção literária. Para fazer isso, o torneio brinca com a possibilidade de enfrentamento entre romances. Este quase paradoxo - livros não são escritos para participar de disputas - dá gás e areja esse pequeno universo. No caso específico, o Leandro foi equilibrado, ressaltou qualidades nas duas obras e fez uma escolha baseada em suas próprias expectativas como leitor. E é bom que tenha julgado na condição de leitor, livros existem para serem lidos.

Aproveito o embalo para levantar um tema que considero fundamental. A relação - ou melhor, a inexistência de uma relação - do público com a produção literária contemporânea brasileira. De um modo geral, não somos lidos por muita gente, é só conferir as listas de mais vendidos. Disse no outro parágrafo que livros existem para serem lidos. Deveria ser assim. Na prática, sofremos todos com uma incômoda ausência de leitores. Exceções como os livros de Chico Buarque não contam - o ótimo Budapeste vendeu muito porque nasceu assinado por um nome que é referência de qualidade para boa parte da população. Como diria nosso presidente, Chico não faz merda. Dá pra comprar sem muito risco.

Talvez estejamos todos - autores, editores, críticos - fascinados por uma festa em que somos os únicos convidados. Melhor, uma festa que só tem melhorado: os encontros literários se multiplicam, ganham visibilidade, charme e, volta e meia, rendem um cachê. Mas, como diz o Marçal Aquino, não saímos da nossa confraria, nos consumimos, nos frequentamos, nos elogiamos - nem brigar temos brigado. Nossa produção pouco circula fora do universo do leitor profissional. Não dá para achar que isso é normal, que podemos abrir mão do diálogo com leitores comuns, não ligados ao mercado editorial.

Não chego ao radicalismo dos que veem numa certa busca da inovação pela inovação a responsabilidade por esse não-encanto do leitor. Para eles, o jogo literário teria assim se transformado numa brincadeira auto-referente. Algo para iniciados, que excluiria os que estivessem de fora do baile. Mas este argumento radical não deve ser descartado, é bom trazê-lo para a discussão.

O problema é que a inanição do público também afeta autores que, em tese, poderiam ser mais populares. Nem dá para se falar numa conspiração formalista - ainda que o aspecto da suposta inovação seja volta e meia alardeado como fundamental para se definir a qualidade de um livro. Não é difícil encontrar resenhas que insistem em enfatizar, de uma maneira mais elaborada e sofisticada, a separação entre forma e conteúdo: aquela costuma ser apontada como mais relevante do que este. Tenho dificuldades para separar uma boa história de um bom jeito de narrá-la - um quesito depende do outro.

Tendo também a desconfiar desta busca pela suposta novidade. Antes de ser escritor, sou um leitor; um leitor desorganizado e não-sistemático, meus gostos são muito variados e não-enquadráveis - não consigo dizer que um livro é bom porque inova ou que é ruim pelo mesmo motivo. Um livro é bom porque se impôs, despertou meu interesse, me fez ter vontade de retomar logo a leitura. Não dá para medir a qualidade de um improviso pelo tempo em que o saxofonista ficou sem respirar. Machado de Assis morreu há cem anos, mas continua jovem, inovador. Ao mesmo tempo, há novidades que nascem caquéticas.

Talvez por isso - o critério é mais do leitor do que do escritor - me assusto pela busca literária do equivalente a um duplo twist carpado (ou esticado, ou com mortal na segunda pirueta). Na literatura, o tamanho do salto e seu índice de dificuldade não podem ser usados como referências finais de qualidade - até porque, na vida e nos livros, quedas costumam ser muito mais interessantes que as vitórias. Temo que uma eventual hegemonia desses critérios leve a literatura a um impasse como o que, de certa forma, empurrou as artes plásticas para o canto do ringue. A menos que, a exemplo do personagem de Cordilheiras, do Galera, estejamos todos fascinados pelo abismo.

Claro que nenhuma opção pode ser condenada de cara - ainda mais num momento que nem mesmo o livro em si, o próprio objeto, capas e miolo, se vê ameaçado por suas versões eletrônicas. Repito: não quero ser excludente nem separar e qualificar livros por suas características mais ou menos formais. Como dizem os bicheiros, vale o escrito, o publicado.

Admito, claro, que na literatura, não dá para associar qualidade a um bom desempenho de vendas. Mas não podemos cair no oposto: passarmos a considerar como bom o livro que não vende, que não é lido. Ter uma boa história não é sempre garantia de qualidade de um livro; assim como a ausência de um enredo mais palpável não deve ser vista como sinônimo de excelência. Talvez seja preciso um pouco menos de arrogância, de predisposições contra e a favor. O livro tem que valer pelo que é, pelo impacto que nos causa. Tanto melhor se essa experiência vier a ser compartilhada por muitas pessoas - não nos orgulhemos da exclusão deliberada. As melhores saídas não podem ser o desejo do canto do ringue ou o fascínio pelo pulo no abismo.

Fernando Molica é autor dos livros: Notícias do Mirandão (Record, 2002), O Homem que morreu três vezes (Record, 2003), Bandeira negra, amor (Objetiva, 2005), O ponto da partida (Record, 2008).
O texto foi autorizado pelo autor para publicação no Leitora.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

OS VERSOS DO CAPITÃO: UMA HISTÓRIA DE AMOR VERDADEIRA


Gerana Damulakis

Uma das mais conhecidas exaltações amorosas são os Veinte Poemas de Amor y una Cancíon Desesperada, de Pablo Neruda, quando os versos pendem para o lirismo do poema hipoteticamente escrito para as bodas de Sulamita e para o poema “Arte de Amar”, de Ovídio, em que se conjugam a força lírica e a didática erótica.

Na linha que começa com os Vinte Poemas e culmina com as Odes Elementais, o conjunto de poemas intitulado Os Versos do Capitão se diferencia, pois guarda uma história de amor verdadeira entre o poeta e Matilde Urrutia e, por isso, o livro foi publicado anonimamente em 1953, sendo reconhecido por Neruda apenas na terceira edição.

A admiração que provocou confirma que o volume Los Versos del Capitán está entre os mais prestigiados livros de poemas de amor de nosso tempo. O amor deixa de ser um mito: “Eros não é mais um Deus cego e enceguecedor”, retorna o caminhante deslumbrado e sedento de uma totalidade dos sentidos, de uma sinestesia cúmplice do estado de plenitude e, no ritmo de seu caminhar, dissipa o torpor de um deserto que se faz habitado.

A verdade encontra a sua essência, e não é o despotismo de uma racionalização que escolhe isso, mas um desejo que se implanta em cada um de nós, seus leitores, e nos suplanta, é a energia de “Eros fazendo-se poema” como nos versos de “El amor”: o amor real por uma mulher real e tão comum que torna incompreensível tal sentimento. Mais ainda: o amor como invasão, no poema "La pregunta", que entra “en tu vida,/ para no salir más,/ amor, amor, amor./para quedarme”. Queda para sempre a poesia de Pablo Neruda.

O AMOR
-----------Pablo Neruda

O que tens, que temos,
que nos passa?
Ai, nosso amor é uma corda dura
que nos amarra e fere
e se queremos
deixar nossa ferida,
separar-nos,
nos faz um novo nó e nos condena
a nos sangrar e a juntos nos queimar.

O que tens? Te contemplo
e nada encontro em ti senão teus olhos
como todos os olhos, uma boca
perdida entre mil bocas que beijei, mais formosas,
um corpo igual aos que já resvalaram
pelo meu corpo sem deixar memória.

Vazia caminhavas pelo mundo
como uma simples jarra cor de trigo
sem ar, sem nenhum som, sem substância!
Em vão busquei em ti
profundidade para meus braços
que escavam, sob a terra, sem cessar:
sob tua pele, sob teus olhos
nada,
e sob teu duplo peito levantado
apenas
uma corrente de ordem cristalina
que não sabe por que corre cantando.
Por que, por que, por que,
ai, meu amor, por quê?

in Os Versos do Capitão (Bertrand Brasil, 1992). Tradução de Thiago de Mello.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

OS GRANDES RECONHECEM OS GRANDES


O Sr. pergunta qual a minha opinião sobre seus contos. Qual a minha opinião? Talento indiscutível e autêntico; um grande talento. Por exemplo, no conto Na Estepe, ele se manifestou com uma força extraordinária e inclusive tive inveja por não ter sido eu quem o escreveu. O Sr. é um artista, um homem inteligente. Sente com perfeição. É um plástico, ou seja, quando descreve um objeto, o Sr. o vê e o apalpa com as mãos. Isto é arte autêntica. Eis a minha opinião e estou muito contente de poder expressá-la. Repito, estou muito contente e se nos conhecêssemos pessoalmente e conversássemos uma hora ou mais, então o Sr. se convenceria de como o tenho em alta conta e que esperanças deposito em seu talento.
Falar agora dos defeitos? Mas isto não é tão fácil. Falar dos defeitos de um talento é o mesmo que falar dos defeitos de uma grande árvore que cresce num jardim: o principal não está na árvore em si, mas no gosto daquele que olha para a árvore. Não é assim?

Trecho da carta de A. Tchékhov, datada de 3 de dezembro de 1898, destinada a Aleksiéi Maksímovitch (Górki).
in Carta e Literatura - Correspondência entre Tchékhov e Górki (Editora da Universidade de São Paulo, 2001), organização de Sophia Angelides.

MINICONTOS

Gerana Damulakis

Já tive oportunidade de postar minicontos algumas vezes. O de Ernest Hemingway não pode ficar de fora, é o meu preferido. O do guatemalteco Augusto Monterroso é tido como o mais famoso miniconto, até a Wikipédia traz este exemplo. Gosto muito do miniconto de Antônio Torres. E quantas histórias posso imaginar com o miniconto de Ronaldo Correia de Brito.


Vende-se: sapatos de bebê, sem uso.
Ernest Hemingway


Quando acordou o dinossauro ainda estava lá.
Augusto Monterroso


MAS O RIO CONTINUA LINDO
Pensa o desempregado ao pular do Corcovado.
Antônio Torres


FUMAÇA
Olhou a casa, o ipê florido. Tudo por ela. Suspendeu a mala e foi.
Ronaldo Correia de Brito

Os dois minicontos dos escritores brasileiros estão no volume Os cem menores contos brasileiros do século (Ateliê Editorial, 2004), organização de Marcelino Freire.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

ORA (DIREIS) O POEMA É DE BILAC?


Gerana Damulakis
Sermos vários: eis o grande encanto do ser humano. São tantas as facetas em cada um de nós. Quem diria que o poema "Medicina" é de Olavo Bilac (1868-1918), o mesmo poeta de "Via Láctea", que afirma: "Pois só quem ama pode ter ouvido/ Capaz de ouvir e entender estrelas."

MEDICINA
-----------Olavo Bilac

Rita Rosa, camponesa,
Tendo no dedo um tumor,
Foi consultar, com tristeza,
Padre Jacinto Prior.

O Padre, com a gravidade
De um verdadeiro doutor,
Diz: "A sua enfermidade
Tem um remédio: o calor...

Traga o dedo sempre quente...
Sempre com muito calor...
E há de ver que, finalmente,
Rebentará o tumor!"

Passa um dia. Volta a Rita,
Bela e cheia de rubor...
E, na alegria que a agita,
Cai aos pés do confessor:

"Meu padre! estou tão contente!...
Que grande coisa, o calor!
Pus o dedo em lugar quente
E rebentou o tumor!"

E o padre: "É feliz, menina!
Eu também tenho um tumor...
Tão grande que me alucina...
Que me alucina de dor..."

"Ó padre! mostre o dedo,
(Diz a Rita), por favor!
Mostre! porque há de ter medo
De lhe aplicar o calor?

Deixe ver! eu sou tão quente!
Que dedo grande! que horror!
Ai... padre... vá... lentamente...
Vá... gozando... do calor...

Parabéns... padre Jacinto!
Eu... logo... vi... que o calor...
Parabéns, padre... Já sinto
Que... rebentou o tumor..."

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

CAROLA SAAVEDRA VENCE A COPA DE LITERATURA

Gerana Damulakis

Já estão no site as avaliações dos jurados sobre os livros que foram para a final da Copa de Literatura Brasileira, http://copadeliteratura.com/.
Desta vez, errei o resultado final, pois o livro vencedor foi Flores azuis, de Carola Saavedra. Apostei em Galiléia (Alfaguara Brasil, 2008), de Ronaldo Correia de Brito.
Na Copa anterior, acertei desde o início, quando apostei em O filho eterno (Record, 2007), de Cristovão Tezza.
Foi um resultado acertado, ambos os livros estão, digamos, no mesmo patamar de qualidade. O livro de Carola venceu primeiramente Dias de Faulkner (IMESP, 2008), de Antônio Dutra, com a decisão de Tiago A.
Flores azuis foi para as quartas de final com O ponto da partida (Record, 2009), de Fernando Molica, e venceu, tendo como jurado Leandro Oliveira.
Na semifinal, Flores azuis enfrentou e venceu A arte de produzir efeito sem causa (Companhia das Letras, 2008), de Lourenço Mutarelli, por decisão do jurado Antonio Marcos Pereira.
Na final, todos os jurados + Lucas Murtinho deram a vitória ao romance Flores azuis, com o placar de 9x4, na disputa com Galiléia.
Vale a pena ler as resenhas. Foi muito prazeroso acompanhar mais uma vez a Copa de Literatura Brasileira.

A escritora Carola Saavedra nasceu no Chile (1973), mas veio para o Brasil aos três anos de idade, morou na Alemanha, na Espanha e na França. Desde o livro de contos Do lado de fora (7Letras, 2005), passando para o romance Toda terça (Companhia das Letras, 2007), até o romance vencedor Flores azuis (Companhia das Letras, 2008), Carola Saavedra vem sendo bastante reconhecida. Com mérito.

domingo, 10 de janeiro de 2010

EXATOS 50 ANOS DA MORTE DE ALBERT CAMUS

Não ser amado é falta de sorte, mas não amar é a própria infelicidade.
----------------------------------------Albert Camus

Gerana Damulakis

As obras filosófica e literária de Albert Camus (1913-1960) trazem as marcas dos dilemas absurdos da existência. Seu nome foi incluído entre os que praticaram a famosa estética do absurdo. E o não menos famoso "ciclo do absurdo" - o romance O estrangeiro, o ensaio O mito de Sísifo e a peça Calígula - atesta sua teoria de que não há um sentido no mundo, o sentido precisa ser criado por cada um. Rejeitando o existencialismo de Sartre e Heidegger, Camus mostrou que é o indivíduo quem dá significado aos fatos.

O estrangeiro entrou para o cânone universal, apesar de outros grandes títulos, tais como A peste e A queda, talvez por ter Meursault como um personagem emblemático na sua inconsequência, na misantropia apontada, na sua falta de emoção; emblemático, enfim, do absurdo que vem a ser seu destino.

sábado, 9 de janeiro de 2010

PARABÉNS PARA KÁTIA BORGES

A poeta Kátia Borges está fazendo aniversário. Autora dos livros De volta à caixa de abelhas (Secretaria da Cultura e Turismo, FUNCEB, EGBA, 2001) e Uma balada para Janis (Edições P55, 2009), além de marcar presença em antologias nacionais, Kátia é admirada e aplaudida desde o seu primeiro livro. Para você, afilhada literária: saúde e muita poesia.

TODA VIDA
-------------Kátia Borges

Para chegar a mim,
siga nesse beco sem saída
toda vida e, antes do fim,
dobre à esquerda.
Verá apenas uma casa,
no descampado, sem jardim,
com ar de abandono e luzes
permanentemente acesas.
Cuidado: um cão feroz vaga
por ali. Senhor absoluto
do castelo, zela por
fantasmas. E formas estranhas,
numa arquitetura de Gaudí,
compõem a vizinhança:
crianças sem cabeça,
homens amarelos e mulheres
cáqui acenam das janelas.
E a bela Vicens, e a rua Morgue
ficam perto. É só seguir
toda vida nesse beco
sem saída
para chegar a mim.

MAR
--------Kátia Borges

Eu falaria do mar se soubesse
compreender, das águas, o mistério.
Mas tenho os pés presos à terra
e nada sei de navegar. O mar
é monstro em meus sonhos. Morre
espumando e me amedronta. Imensidões
me deixam tonta. Só presa ao chão posso voar.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

POR QUE VOCÊ FICA LENDO ROMANCES?

Gerana Damulakis

Por que eu leio tantos romances? Seguramente não é pela mesma razão que Emma Bovary. Ao contrário de Flaubert, Madame Bovary, c'est pas moi!
Quem me deu a resposta foi o escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934 - ), no romance Purgatório (Companhia das Letras, 2009):

As coisas que não existem são em número muito maior do que as que chegam a existir. O que nunca existirá é infinito. As sementes que não encontraram sua terra nem sua água e não se transformaram em planta, os seres que não nasceram, os personagens que não foram escritos. As rochas que voltaram a ser pó? Não, essas rochas, em algum momento, chegaram a ser. Falo apenas daquilo que podia ser e não foi. O irmão que não existiu porque você existiu no lugar dele. Se o tivessem concebido alguns segundos antes ou alguns segundos depois, você não seria quem é e não saberia que sua existência se perdeu no ar sem que você mesmo se desse conta disso. Aquilo que não chega a ser nunca sabe que poderia ter sido. Os romances são escritos para isso: para compensar no mundo real a ausência perpétua daquilo que nunca existiu.

Os romances servem para preencher uma falta, o que não chegou a existir.
E você, por que fica lendo romances, quando poderia fazer outra coisa?

Foto: Tomás Eloy Martínez, do periódico el País.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

SARAMAGO, PARA GLÁUCIA LEMOS


Gerana Damulakis

A escritora Gláucia Lemos e eu somos aficionadas pela literatura de José Saramago. Lemos toda a prosa, seja de ficção, seja a dos Cadernos de Lanzarote, também as crônicas etc.

Gláucia, todavia, não conhece a poesia de José Saramago. Escolhi do meu exemplar de poemas Provavelmente Alegria (Editorial Caminho, 1987), um dos mais melódicos e belos versos.

Para você, Gláucia, um poema de José Saramago.

AS PALAVRAS DE AMOR
---------------------José Saramago

Esqueçamos as palavras, as palavras:
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obscenas,
As de febre, as famintas e sedentas.

Deixemos que o silêncio dê sentido
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente?

O CÉU QUE NOS PROTEGE



Gerana Damulakis

Quando escolhi O céu que nos protege (Alfaguara/ Objetiva, 2009), de Paul Bowles, com tradução de José Rubens Siqueira, para ilustrar minha lista dos livros lidos em 2009 que me marcaram, escrevi também sobre a sensação que um romance poderoso causa no leitor.


A história de O céu que nos protege enfatiza a busca pelo sentido da existência, mais aguçada nas pessoas que têm muito tempo livre, usufruem do ócio, passam a vida viajando, procurando, buscando, inquietando-se. Irremediavelmente, lançam-se em situações perigosas, porque se faz necessário um sentimento que desafie a rotina, algo próximo da morte. Port e Kit Moresby estão casados há 10 anos, não precisam trabalhar, rodam pelo mundo e no pós-guerra vão para a África. O deserto é o cenário constante. É no deserto que Port sente como o céu fica mais perto, como um manto protetor: o céu que nos protege. O desenrolar é a escalada da decadência, é triste, é trágico. Não irei contar a história.


Paul Bowles (1910-1999) faz parte da legião de escritores norte-americanos que levou a literatura dos EUA aos picos do reconhecimento no século XX. Seu estilo é fluente, apesar de não abrir mão da densidade, exatamente sentida a cada passo dado pelo casal durante a narrativa de seu fastio e de sua perdição.


Sobre O céu que nos protege, o Evening Standard diz tudo: “Um romance com toque de gênio, um livro de poder e alcance desafiadores, uma história de tensões praticamente insuportáveis”.
O livro foi adaptado para o cinema pelo próprio Bowles, com direção de Bernardo Bertolucci, e é muito fiel ao romance. O escritor começa narrando e aparece no começo e no final do filme, sentado no bar a espreitar.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

LISTA DAS MELHORES LEITURAS EM 2009

Gerana Damulakis

O escritor Goulart Gomes, do Território Inimigo (http://www.goulartgomes.com/) gosta tanto de listas quanto eu. Diante do fim dos anos 00 deste século, que agora já não é mais tão novinho (como a primeira década passou rapidamente), não me senti capaz de elaborar uma lista com os livros que mais me fascinaram. Primeiramente porque, ao contrário de pessoas como o escritor Aramis Ribeiro Costa e minha filha, que anotam os livros que leram e ainda opinam sobre eles em um caderno especial, não costumo, por mais que prometa a mim mesma, seguir tal comportamento. E, depois, segundo Goulart, que insistiu para que eu fizesse a lista, deu preguiça mesmo, sou baiana assumida.

Fico com os livros lidos em 2009, melhor dizendo, com os que me ocorreram imediatamente, do que deduzo, então, serem os que ficaram cravados na mente. E escolhi, para ilustrar a postagem, o que me fez trepidar, ou seja, aquele causador da seguinte sensação: um envolvimento a tal ponto que se chega a sentir que o livro está tomando vida própria entre nossas mãos.

FICÇÃO ESTRANGEIRA (romances e contos)

- O céu que nos protege (Alfaguara/ Objetiva, 2009) – PAUL BOWLES

- O mundo (Planeta do Brasil, 2009) - JUAN JOSÉ MILLÁS

- Refrão da fome (Cosac Naify, 2009) – J. M. LE CLÉZIO

- Indignação (Companhia das Letras, 2009) – PHILIP ROTH

- Lady Macbeth do Distrito de Mtzenzk (Editora 34, 2009) – NIKOLAI LESKOV

- Elogio da madrasta (Alfaguara/ Objetiva, 2009)- MARIO VARGAS LLOSA

- Estrela Distante (Companhia das Letras, 2009) – ROBERTO BOLAÑO

- O compromisso (Editora Globo, 2004) – HERTA MÜLLER

- A mão do amo (Companhia das Letras, 2008) – TOMÁS ELOY MARTÍNEZ

- Suicídios exemplares (Casac Naify, 2009) – ENRIQUE VILA-MATAS

- Caim (Companhia das Letras, 2009) – JOSÉ SARAMAGO

- Cenas da vida na aldeia (Companhia das Letras, 2009) – AMÓS OZ

- Iniciantes ( Companhia das Letras, 2009) – RAYMOND CARVER

- Após o anoitecer (Alfaguara/ Objetiva, 2009) – HARUKI MURAKAMI

- Fazer amor (Globo, 2005) – JEAN-PHILIPPE TOUSSAINT

domingo, 3 de janeiro de 2010

ESTRELA DE ANA BRASILA


Gerana Damulakis

A Coleção Cartas Bahianas brilhou em 2009. Não, não listarei os títulos, nem revelarei a melhor novela da coleção, nem direi dos contistas da coleção que me surpreenderam, nem os poetas citarei. Porque também não irei me deter nos Continhos para cão dormir (P55 Edições, 2009), igualmente da coleção, escrito por Maria Guimarães Sampaio. Mas, vale alertar, não escreverei sobre o livro citado por uma razão: desta coleção, me fixei nos títulos que trouxeram poemas e, como exceção, escrevi sobre a novela de Állex Leilla, O sol que a chuva apagou - creio que foi o único livro de prosa para o qual teci uma espécie de resenha, já que acompanho a produção de Állex desde seu primeiro livro, depois resenhei seu romance na minha coluna do jornal A Tarde e continuo seguindo com muita atenção, repito, suas realizações literárias.

No entanto, poderia ter escrito sobre o livro de Maria, não fosse a posição de seguir apenas os poetas, pois Continhos para cão dormir traz mini-contos, como prefiro chamar, que suscitam as mais variadas emoções; com eles o leitor ri, se entristece, se espanta, se solidariza com a dor e, por fim, Tieta morre: mais emoção com o peculiar modo de escrever da autora.

E é este modo de dizer, o “como dizer”, a maior personagem do romance de Maria Sampaio, Estrela de Ana Brasila – estória sem compromisso com verdade nenhuma, nem bicho, nem planta, nem gente, nem lugar, nem tempo – e nem falares (Record, 2004). Mais do que sabido, em literatura não importa o que se conta, mas como se conta. Maria conta e como conta! Com isso, quero dizer que a história guardada neste romance é uma história que importa, assim como importa a maneira como ela é contada.

Viajamos no tempo com Branca Marana, mulher típica do século XX, se libertando de amarras que oprimiam o sexo frágil. De um capítulo para o outro, estamos no tempo das senzalas e o romance vai ganhando força, surge a mãe da personagem do título, Ana Brasila, surge Prudença, surgem seus amores, surge Estrela de Ana Brasila, surge Frutuoso, surge Brianda, elas também vão tendo seus filhos, surgem muitos personagens: é um mundo criado nessa volta do tempo, um mundo onde habitam os índios, os negros, os brancos e, sem exagerar, onde surge o brasileiro e a brasileira, frutos dessa mistura – não é sem razão que Ana é Ana Brasila.

Não vou buscar influências literárias para a obra de Maria, registro tão somente que não há como não lembrar de Guimarães Rosa, embora a linguagem que a escritora apresenta seja totalmente de acordo com seus personagens e não com os personagens de Rosa. A lembrança, portanto, fica restrita apenas ao fato de Rosa ser um escritor que simboliza tal atitude literária. Outra lembrança também ocorreu, não por encontrar influência da obra que citarei sobre Estrela de Ana Brasila, mas por construir uma saga, elencar personagens vários: a lembrança foi a da leitura de Cem anos de solidão, de García Márquez. São, todavia, pontes que o leitor gosta de fazer.

O romance de Maria Sampaio cria um mundo, com seu tempo, ou melhor, seus tempos, sua história muito bem contada. Original, plena de sentimentos, acompanhando as circunstâncias das vidas, a obra é rica, envolvente, dá vontade de aplaudir e, no final, com os cães Merlin e Tieta (sim, Tieta que acaba morrendo em Continhos para cão dormir), Maria ainda arranca um sorrisinho do leitor quando Branca Marana (voltamos para ela) passa por Moreno e, bem depois, em casa, reconhece que era ele. Redondo, o romance termina. Bravo!

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

POESIA NO BLOG

Gerana Damulakis

E ainda há quem tenha preconceitos: "Não sou blogueiro", "Não tenho tempo para blogar" etc. Pois, pena de quem assim pensa com seus retrógrados pensares.
Outro dia, a poeta Myriam Fraga e eu estávamos conversando exatamente sobre a qualidade da poesia que se encontra nos blogs. Claro, há muita catarse, poesia inocente, blá blá blá, mas há muito, muito mesmo de poesia de excelente qualidade nos blogs do Brasil, de Portugal e dos países de língua portuguesa na África.
Assim conheci - e, ao escrever sobre o assunto, não posso deixar de enfatizar o fato - a poesia de primeiríssima água de Nilson Pedro, postada primeiramente no seu blog Blag (http://nilsonpedro.wordpress.com/), atualmente com livro publicado, intitulado Caixa Preta (P55 Edições, 2009). Não listarei outros poetas para não correr o risco de esquecer algum nome e, também, porque agora quero trazer para este espaço um exemplo da poesia de Henrique Pimenta, do blog Bar do Bardo (http://dobardo.blogspot.com/), com sua devida autorização.

FELICIDADE
------------Henrique Pimenta

Eu não posso ser inocente nem inocentado
pelo seu colo de luz.

Eu me intrometo por estranhas simetrias
nas curvas desconexas
de sua luxúria.

Vou dos haveres de Deus
às franjas do Nada
num só
coice.

Ai.


Ilustração: Morning in the City, c. 1944, de Edward Hopper (1882-1967).

SE ESCRITORA FOSSE


Gerana Damulakis

Não sei dizer com segurança o estranho efeito que Orhan Pamuk exerce sobre mim. São tantos os escritores que admiro e, aqui, estou bem restrita ao mundo dos escritores vivos em plena produção. Com Pamuk é mais do que admiração pelo estilo, prazer com a leitura de seus livros, êxtase diante de determinado título. Com Pamuk é algo no plano do imponderável, diferente da minha tietagem quando se trata de Saramago, de minha estupefação quando tiro o chapéu para Philip Roth , da consciência sobre a maestria de Coetzee ou Le Clézio, Ian McEwan ou Enrique Vila-Matas ou Juan José Millás, Haruki Murakami, Mario Vargas LLosa, Tomás Eloy Martínez, Amós Oz e assim por diante.
Um pouco de Pamuk:

Mesmo quando esses infortúnios desabam todos ao mesmo tempo sobre nós, já sabíamos havia muito que estavam de tocaia à beira de nosso caminho: já os esperávamos, já estávamos prontos para ele; ainda assim, no momento em que a nova nuvem de problemas nos avassala, como um pesadelo, sentimo-nos estranhamente sós, irremediavelmente sós, desesperadamente sós; e, incrivelmente, continuamos a sonhar com a felicidade que ela poderia nos trazer, se pelo menos conseguíssemos compartilhar a nossa dor com outras pessoas.

Enquanto digitava o trecho do romance O livro negro (Companhia das Letras, 2008), de Pamuk, lido mais de um ano atrás e, por urgência, retomado agora (releitura apenas das páginas, cujas pontinhas marquei), creio que compreendi que se escritora fosse, gostaria de ter esse modo de dizer, essa linguagem, esse estilo.

A medalha é para lembrar que Pamuk é Nobel de Literatura de 2006. Dele são os títulos: Meu nome é vermelho, Neve, O castelo branco, Istambul, O livro negro. A maleta do meu pai, discurso de recebimento do Nobel, é um texto que me fez derramar lágrimas 2 vezes, quando li e quando reli para Aramis. Todos os títulos foram editados pela Companhia das Letras, inclusive o discurso.