sábado, 24 de abril de 2010

RELÓGIOS DERRETENDO



Gerana Damulakis

Quando meu pai gostava de alguma coisa, gostava também de sair distribuindo essa coisa para todos. Certa feita, ficou muito encantado com uma marca de relógio e comprou vários. Temos exemplares do dito relógio: meu irmão, minha cunhada, minha prima, minha mãe, minha filha e eu. Para mim ele deu dois, um prateado, outro dourado e prateado. Quando estamos juntos parece uma confraria.

Meu pai morreu. E todos seguiram usando seus relógios. Esta semana, meus dois relógios pararam e a causa não era a pilha de um, nem a do outro. O de minha filha anda parando. Já são três relógios.

Faz pouco, falei com meu irmão e ele me disse que o relógio de minha cunhada parou, ele levou para mudar a pilha e não era a pilha. Por sinal, o dele já não estava no seu pulso, mas, não sabe dizer a razão, mudou a pilha e colocou o relógio funcionando ao lado da foto de meu pai. Este também parou. São cinco relógios parados.

Meu irmão me pergunta:

-Então, qual o recado?

- Nenhum. O tempo passou.

Ilustração: A Desintegração da Persistência da Memória, de Salvador Dalí.