domingo, 18 de janeiro de 2009

O DRAGÃO DA BICICLETA


Gláucia Lemos


Para Caio Fernandes


O heroi chegou à escola e correu a procurar o maior amigo. Tinha o sorriso mais radiante dos seus 8 anos. Já tirei as rodinhas da bicicleta, estou andando sem as rodinhas, e não cai nem uma vez!
Era uma das suas primeiras vitórias sobre um desafio. Daí em diante estava pronto para tirar as rodinhas de todas as bicicletas da sua existência. Era um forte!
Penso que a vida não é mais que uma sucessão de desafios que se nos impõem. Um após outro, desde que começamos a viver, somos desafiados diante de tudo. Ainda na vida intrauterina, inconscientemente temos o desafio de chegar a termo, e vir à luz. E a partir daí as circunstâncias nos colocam, a todo momento, questões a serem vencidas pelo nosso esforço, nossa capacidade, nossa competência, nosso bom senso, nossa habilidade. Conseguir firmarmos de pé e caminhar, aprender um vocabulário que nos permita comunicação, depois de nos mostrarmos capazes de articular palavras, mediante um esforço que ninguém nos poderá ensinar, e por conta só do nosso pequenino cérebro. E venham mais desafios, aprender a ler, fazer contas, passar de ano, os primeiros encantamentos amorosos, a ansiedade das paixões adolescentes... Quanto mais fortes, maior a inibição diante do objeto que a inspira. Que desafio formidável o romper da timidez, claudicar na inexperiência, e falar dos nossos sentimentos!
Então nos tornamos adultos carregando nos ombros uma certa bagagem que mistura os afagos dos êxitos aos calos dos fracassos, porque, embora não tenhamos ainda consciência disso, estamos arrastando tudo desde um passado que então, para nós, já é mais ou menos distante. E ficamos adultos para nos defrontarmos com novas questões: a concorrência em todos os âmbitos da sociedade, na qual tudo acaba configurado em desafio, por menores que sejam os obstáculos. O emprego, a profissão, a família, a vida amorosa, as implicações financeiras, a educação dos filhos, o contexto social no qual estejamos inseridos. Tudo isso depois de, lá bem atrás, nos termos iniciado na conquista do difícil equilíbrio em cima de um selim, para nossa locomoção sobre duas rodas pouquíssimo calibradas, que, a seu tempo, tinha peso de pódio de fórmula 1. O que vale ressaltar, porque sabemos ser esta uma das grandes conquistas da infância no nosso primeiro decênio.
Devo confessar que, nesta bravata, me defrontei com o maior desafio de toda a minha existência. Aquele que se impôs à minha carência de habilidade, e nunca fui capaz de vencer. Ainda bem para minha cabeça, que tirei de letra outras situações com maior ou menor dificuldade, e, a algumas coisas que, a outras pessoas, poderiam afigurar-se mais penosas, fui empurrada pelas circunstâncias e pude garantir suficiente fortaleza. Não me considero frustrada sob nenhum ponto de vista. Todavia fui vencida pelo monstro da bicicleta.
No caminhar destas reflexões, estou pensando se uma certa covardia que me é inerente, uma acentuada indecisão na hora de olhar de frente algumas das bicicletas que a vida tem me apresentado, não poderão ser filhas da minha antiga inabilidade diante daquele desafio que, ao me por em brios, ganhou de longe, pra mim.
Aquele garoto pode ter fortalecido sua perseverança e sua autoconfiança quando foi capaz de se libertar das rodinhas. Quem sabe se não teria crescido inseguro e tímido, se, como eu, nunca houvesse logrado vencer o dragão da sua bicicleta?


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. A foto "Uma pausa" é de introspective, retirada do Flickr.