sábado, 30 de agosto de 2008

CERIMÔNIA DE CASAMENTO


Fred Matos

Para Sonia Sant’Anna


O vestido era o mesmo que não usou há vinte anos quando um infarto fulminante lhe matou o noivo nas vésperas do casamento. Todo esse tempo ficara protegido das traças e do tempo por bolotas de naftalina, guardado em uma caixa de papelão. Ainda no dia do enterro decidira que nova boda seria questão de tempo. Chorara mais a não consecução dos seus projetos do que pela vida de Miguel, perdida tão cedo.
Agora, a caminho da igreja, com meia hora de atraso como convém, se recorda de todas as trapaças que a sorte lhe pregou: aquele infarto que tardando alguns dias a teria tornado viúva, uma condição bem mais adequada às suas expectativas. O namoro com Rodrigo, sua única paixão, que lhe custou dez longos anos de adiamento do sonho, marcando e remarcando a data ao sabor de uma miríade de circunstâncias racionalmente defensáveis. Até o dia em que ele a trocou por uma colega de trabalho que o levou ao altar como quem vai ao cinema.
A Rodrigo se seguiu uma fase de namoros breves, pois resolvera não conceder a mais ninguém prazo maior que três meses para a decisão pelo enlace. Foram tantos os namorados que de muitos não consegue se lembrar. Um dia entendeu o conselho de Margarida, sua melhor amiga, que lhe havia dito que casamento é um investimento de longo prazo, como o de ações na Bolsa de Valores, e concluiu que talvez a sua ansiedade para recolher os dividendos fosse a causa do seu insucesso, afinal, excluindo o fato da morte prematura de Miguel e a canalhice de Rodrigo, fora sua a responsabilidade pelos malogros seguintes.
Analisando suas atitudes e resolvida a tratar o assunto com a lógica do mercado, Helena comprou e leu com afinco alguns compêndios de marketing e traçou seu plano estratégico focando seus esforços sobre um “target” formado por homens solitários na faixa etária dos 40 aos 50 anos, com boa educação e condições financeiras estáveis. Inteligente que é, investiu em um microcomputador conectado na Internet e foi à caça nas salas virtuais dedicadas ao seu público-alvo. Durante quase um ano dedicou diariamente quatro horas das suas noites teclando com desconhecidos. Marcou encontro com alguns e, tantas as decepções sofridas, já estava pra jogar a tolha quando conheceu Arthur, que preenchia todos os requisitos.
A igreja estava linda. À sua entrada os músicos iniciaram a valsa nupcial. Esperando-a no altar Arthur, cuja inacreditável timidez era responsável por uma cinqüentenária castidade. Ao seu lado, ainda firme, apesar de já beirar os oitenta anos, caminhava Raul, seu pai, vindo do interior para cumprir o ritual de entrega da filha ao noivo. A cerimônia decorreu sem surpresas. O casal retirou-se da festa à francesa para a lua de mel e o vestido voltou à caixa de papelão.
Naquele mesmo dia, enquanto o avião decolava para Miami, decidiu que nova boda seria questão de tempo: é um desperdício que um vestido tão lindo seja usado somente uma vez. A técnica para conseguir noivos já está dominada. Agora Helena quer aprender a se livrar de esposos.



Este conto pertence ao livro Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006) com modificações na revisão do autor. Foto de vamonessa, retirada do Flickr.

SONETO DA CELEBRAÇÃO


Gláucia Lemos










Hoje em nenhum momento te celebro.
Queimei-te a mirra da ternura extinta.
Renego enfim a crença que foi minha,
e não remanesceu à vã entrega.

Celebras tudo que és: não mais que penas
de cauda de pavão em cores tinta.
Resgato minha luz, eis que ela é minha,
inútil para ungir almas pequenas.

Não sou mais que uma luz de lamparina,
mas afugento a treva, a dor e o luto.
Eu sou o canto de uma cavatina!

Fecho o painel no qual louvei teu vulto,
e abro a janela. A brisa matutina
vai apagando os círios do teu culto.

1997 Salvador.


Descobri que Gláucia Lemos tem sonetos engavetados. Garanto que vou conseguir que ela prometa a postagem deles aqui. Adianto que são da década de 90, é apenas o que sei. Foto "4 Círios", de Oswilio, retirada do Flickr.