segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

FASCINAÇÃO


Gerana Damulakis

Mas não se pode desejar a morte de todo mundo nem, em última instância, despovoar o planeta para gozar
uma liberdade de outra maneira inconcebível.
Albert Camus, em A Queda

A fantasia de matar as pessoas a quem se ama, pois que com a morte o fim da relação é justificado, aceito, é culpa do divino, não nossa, não de nossos erros ou traições; a fantasia desta morte do amado, coroando ainda por cima um relacionamento que não terminou, foi apenas “até que a morte nos separe”; a fantasia do fim imutável de todos nós que chegou impune e encerrou tudo era, na verdade, mais do que uma fantasia, era um desejo que habitava na sua mente.
Às vezes, ela sentia vontade de matá-lo para ir viver de outra forma, para reconstruir sua vida sem ter que, antes, destruí-la com um processo de separação dolorosa e, pior, sem um motivo aparente, por culpa tão somente do tédio. Faltava coragem.
Não era assim que deveria ser. O então pensamento da morte dele foi dominando-a. Ela não tecia formas de execução, queria que se desse naturalmente, morresse de morte natural. E aquilo foi virando uma obsessão, depois fascinação. Sonho preferido: todo dia, toda noite. Quem sabe o pensamente pudesse atrair aquela morte?
O que ninguém esperava acabou acontecendo. Depois de haver sido promovido a um cargo de chefia de grande responsabilidade de decisões, Haroldo debruçou-se sobre mil papéis, procurou mil soluções para problemas agora sob sua administração, fumou seis maços de cigarros por dia durante uma semana, teve um ataque cardíaco fulminante e morreu bem naturalmente, apesar de seus 38 anos de idade.
Seguramente todo mundo vai pensar na vida maravilhosa que Ivone levará, realizada sua fantasia e, tendo pela frente, além da vida livre, uma vida farta, farta de dinheiro, de sonhos já tão bem sonhados e, acima de tudo, de tempo, muito tempo sobrando para fazer o que quisesse. Eu mesma imaginei que ela sairia num cruzeiro pelo Caribe ou pelas ilhas gregas, não sem antes produzir um belíssimo guarda-roupa todo novo, cheio de vestidos de seda, aquele pretinho chique para noitadas sensuais, jeans de griffes famosas para passeios matinais, jóias finas e perfumes franceses. Cogitei também que, imediatamente, ela mudaria o visual apagado, clareando o cabelo em pelo menos dois tons, fazendo um bom peeling no rosto para ganhar luminosidade e, então, aí sim, ela partiria para o restante, e que restante a aguardava... Pensei nas tantas aventuras que ela teria: homens belos e descartáveis, champagne ao luar e rosas no café da manhã, ou coisa mais esnobe do tipo “almoçar em Manhattan e jantar em Paris”.
Para tristeza minha e sua, nada disto aconteceu. Ivone apagou-se completamente, remoeu-se em remorsos, deu adeus a todos os interesses da vida terrena e vivia parecendo que estava em outra galáxia. Ela ficou tão certa de que era culpada, ou melhor, de que seus pensamentos eram os culpados que, por conta disso, fizemos vários testes relativos à força de sua mente. Comprovei para nós duas que, se nem mesmo uma colher ela conseguia entortar com o poder mental ou, ao menos, parar os ponteiros de um relógio qualquer, como poderia ter atraído algo tão mais forte quanto a morte? Nunca!
Mas tudo isso tampouco adiantou. A coitada seguia seus dias mergulhada em tristeza profunda. Dava pena. Seria saudade dele? Penso que não. Mais provável que fosse saudade da própria fascinação mórbida que viveu por anos, saudade daquele desejo alimentado, bem fermentado no dia após dia, saudade do sonho que não tinha mais serventia. Ela estava acostumada demais com o modo de pensar tão obsessivo. Fez falta a necessidade de pensar com afinco no anseio pela morte dele.
O caso, então, seria uma boa terapia, mas ainda assim isto levaria anos, consumiria uma pequena fortuna e, talvez, por fim, acabasse por convencê-la de que ela era uma assassina enrustida e o melhor mesmo, o certo, seria dar vazão a semelhantes instintos. Temi que tudo se passasse desse modo e Ivone precisasse sair matando gente por aí a fim de realizar o ego ou o superego, sabe-se lá.
Resolvi levá-la para minha casa, deixá-la uns tempos comigo, até para vigiá-la, se fosse o caso, porque tive medo de algum gesto suicida, tal era seu estado de depressão permanente e imutável com o passar dos meses, dos anos. E três anos se passaram desde que Haroldo se foi. Com o tempo todas as sensações tendem a mudar, mas não com Ivone. Continuava igual, completamente apática.
Numa dessas reuniões pequenas, quando costumo chamar poucos amigos, consegui convencê-la a aparecer. Ela prometeu que diria ao menos um “alô” para o pessoal. Uma amiga veio trazendo um antigo colega de faculdade que eu não encontrava há muitos anos. Ele era a cara de Haroldo!
Garanto que todo mundo já previu o que vem em seguida. Quando Ivone apareceu para dar o “alô” prometido, eis que vê o homem e quase desmaia. Não desmaiou, no entanto. Ficou do lado dele a noite inteira, totalmente encantada. A coisa toda aconteceu de modo tão rápido e recíproco que, em poucos meses, tinham se casado.
Ivone não estava radiante, nem era a imagem da alegria que eu imaginei que ela seria por ocasião da morte de Haroldo. Também não era a personificação da apatia que a dominara por três anos. Ela estava simples e exatamente igual, a mesma Ivone dos tempos de esposa de Haroldo. Vi nos olhos dela o brilho da fascinação de outrora. Eu olhava para ele e revia Haroldo. Tão parecidos, o mesmo jeito, personalidade e físico. Tudo se repetia. Parecia que eu assistia a uma reprise.
Pensei muito e acho que a melhor conclusão é convencer-me de que Ivone era feliz e não sabia ao lado de Haroldo e, agora, ao lado de quem, para ela, é a “reencarnação” dele, Haroldo. Mas ouso incluir aqui, que ela é feliz ao lado da sua fascinação mórbida. Daí comecei a contar os dias do novo Haroldo.



“Fascinação” ganhou o prêmio País do Carnaval no Concurso de Contos Jorge Amado da Universidade do Sudoeste da Bahia.

UMA ORQUÍDEA NA CHUVA





Gláucia Lemos


Uma velha amiga, de passagem pela cidade, fez-me uma visita. Na despedida, apanhou do carro, onde a deixara ao chegar, um presente especial. Uma bela orquídea branca de haste delgada, elegante, realmente rara. Demorei-me com ela nas mãos, tentando protegê-la dos chuviscos que começavam a cair em grossos pingos, até que a chuva desabou e a visita apressou-se em partir.
Tínhamos acabado de falar em você, por isso foi inevitável a associação entre você e o presente que recebi. Ambos valiosos e raríssimos. É verdade que falamos em você sem propósito. Como se fala de alguém que se conheceu há muito tempo, a quem se esteve ligado por um vínculo antigo. Desses liames mornos das amizades inconseqüentes. Assim ela me falou de você. Isto é, eu perguntei notícias. Assim, à toa, só porque ela mora na sua cidade e é uma amiga comum. Disse-me que o tempo lhe deixou suas marcas. É natural que nessas décadas de ausência você tenha ficado muito diferente. Não imagino como esteja agora. Só consigo vê-lo revendo-o no registro da memória. Eu lhe mandei um abraço. Um abraço, pobre amigo, pode ser um cumprimento insignificante, porque abraço é a maneira mais comum de se externar estima. Extensa gama da afetividade, passando pela afeição, vai até ao incendiário abraço da paixão. É muito longo o elenco de sentimentos que passam pelo abraço. Vencidas dezenas de anos de afastamento, um abraço pode ter também um calor diferente. O calor do ainda lembrado, ou do nunca esquecido. Pode ser uma página de álbum de recordações.
Muita coisa é macerada nos silêncios das distâncias e, quando acordada desses silêncios, uma pergunta descerra a urna escondida sob o pó dos tempos. A verdade antiga ainda aflora e ainda se percebe que há vida no que fora vida há tempos idos. Ainda pulsa em juventude e graça o que o tempo haveria de ter tornado envelhecido e triste. Insisto em conservar a memória do seu rosto alegre e jovial, do brilho inflamado na vibração dos seus olhos que nunca estavam em gris. É assim que ainda quero recordá-lo, como o via naquela inútil tecedura de projetos. Braçadas de náufragos sem porto à vista. Isso nós já o sabíamos. Não tínhamos cais nem porto de chegada. Nadávamos para o nada. Mas nadávamos porque era inevitável. Com a nossa inútil alegria. Recuso-me a imaginá-lo alquebrado e decadente.
Disse-me que você não foi feliz. Pergunte-me se fui, pobre amigo, pergunte-me se fui. Ninguém conhece o que seria falar de um para o outro, nenhum de nós o confidenciaria a quem quer que fosse, por isso só mesmo em um falar sem propósito chegávamos a saber de nós. Não que nos envergonhássemos, por que assim haveria de ser? Sim, há os outros, os puros, os retos, os incorruptíveis, os que supõem acreditar que nunca escorregariam do traço que se propuseram obedecer riscado no chão, esses nos apontariam o dedo da acusação. Até que em uma das traiçoeiras esquinas da vida se reconhecessem semelhantes a nós. Eu nunca me sentiria culpada, nem você. Porque nos sabemos como ninguém. Só nós nos sabemos.
Lembra-se do que lhe falei naquela primeira carta após o meu regresso? Primeira e única, não me recordo de lhe ter escrito outras vezes, olhe lá se eu poderia ... Naquela carta lhe disse: Não me sinto culpada. Teremos culpa, eu ou você, de termos nascido para um mundo hipócrita? Os sentimentos direcionam-se espontaneamente sem que as nossas vontades os dirijam. Se voluntários, seríamos culpados? De que culpa nos podem acusar? Sejamos justos: nos culpariam por sermos um homem e uma mulher. É esse o nosso crime.
No entanto, há outras coisas no plano de fundo, há as convenções, há os compromissos. Somos fios de um novelo que começou a se desenrolar antes de nós e continuará a se desenrolar depois de nós. Não somos a ponta do novelo, não o iniciamos, por isso carregamos os nós que foram atados antes do nosso advento, e nunca desenrolaremos os que vierem depois. E entre os nós pregressos, há aquele que é maior que uma chaga na sua consciência. Na minha, menos, é só mais uma convenção, na tábua da lei da hipocrisia. Mas na sua, pobre amigo... Lembra-se? Eu lhe disse isso. Mandei-lhe aquela carta por Elisa, e você, cheio de escrúpulos por mim, pediu que ela mesma a trouxesse de volta e a destruísse, porque nela eu lhe pedia que a queimasse por cuidados com você. Como seria tão imenso o meu crime se ela caísse em mãos impróprias. Você sabia como eu seria crucificada. Elisa, a boa Elisa, trouxe-a de volta e me entregou com o seu recado: a frase afirmativa que me fez sorrir e cantar e dançar na frente dela e depois por muitos dias e noites, repeti a mesma frase para mim mesma. Eu lhe pedira qualquer frase afirmativa, se eu ainda fosse a mesma no seu sentimento. Ou negativa, se já me estivesse esquecendo. Elisa me disse, ignorando o sentido: mandou lhe dizer que está bem e que virá aqui qualquer dia. Eu sabia que você não viria, como poderia? Mas você não sabe que naquela tarde me fez renascer e, no tédio com que eu convivia, abriu um intervalo, iluminou uma sala e nela pôs um solo de sax-tenor que ecoou por muito tempo.
Sabe, pobre amigo, agora está chovendo muito. Todo julho chove muito e é nessas tardes que aumenta de intensidade um desejo de retorno, nem sei bem se é retorno, mas em todo julho, essas águas e ventanias me fazem padecer dores e tristezas. Assim, com certeza porque ontem você esteve tão presente, a chuva desta tarde é ainda mais doída. Traz-me um toque daquela saudade, daquela mesma. Era tanta saudade, era tanta, que uma dor física se impunha no espaço de todo o meu corpo, como se sentir a sua ausência fosse oprimindo o meu peito e obstruindo as minhas narinas e sufocando a garganta. E, não conseguindo respirar, o coração acelerava e uma agonia entrava no meu cérebro desorganizando o meu entendimento. Nunca senti tanta saudade quanto aquelas que sentia de você. Nunca. Nem antes, nem depois. Depois, nós nos vimos outras vezes naquelas mesmas circunstâncias. Teríamos outras? Mas nós sabíamos que ainda era tanto o que nos guiava, que algumas vezes quase nos traímos. A verdade estava em nossas faces, em nossos olhos estava a verdade tão simples, tão nua, que ainda hoje eu me pergunto por que somos condenados a certas renúncias. Por que nos rasgamos de nós mesmos e seguimos chutando nossas vísceras inúteis. Ainda hoje eu me pergunto.
Assim nos afastamos sem nos separarmos. Eu sei que não é preciso estar perto para se estar junto. Assim foi conosco, pobre amigo.
Ontem, tantas décadas depois, aquela amiga, assim, sem propósito, inocentemente, falou tanto de você. Notícias recentes e tristes de uma história antiga e inacabada, sem ter noção do quanto abria de nós. Em seguida às palavras, aquela orquídea ao chegar às minhas mãos tinha que ser associada a você. Rara, elegante, única talvez. Parecida com você. Mas tinha que começar a chover quando ela entrou no carro, e rapidamente engrossar o aguaceiro assim que ela partia, e choveu tão copiosamente que a ventania arrebatou a haste da flor, antes que eu deixasse a calçada, e ela se foi aos emboléus da chuva e do vento, e eu a perdi na enxurrada da sarjeta.
Como nos perdemos nos temporais que precisamos vencer nos nossos necessários silêncios.
Agora, tantas décadas passadas, retomo o mesmo tempo como flashes tão nítidos, e me convenço de que, ainda assim, ainda quando a renúncia se impõe, vale mais a pena permanecer amando, que tentar esquecer. Ainda quando o vendaval de uma chuva de julho, ou das outras muitas chuvas da existência, arrebata e leva a nossa orquídea para o nunca mais.





Gláucia Lemos é ficcionista com mais de duas dezenas de títulos e vários prêmios. Com O riso da raposa (Bibliex, 1988) recebeu o prêmio da Academia de Letras da Bahia. A foto é de Daniboy, retirada do Flickr.

O LIVRO DE UM HOMEM SÓ



Goulart Gomes



Georges Perec, o premiado escritor francês falecido prematuramente, aos 46 anos de idade, em 1982, escreveu uma das obras mais densas e instigantes da literatura universal: Um homem que dorme (Nova Fronteira, 1988). Obra esgotada, encontrada apenas em sebos, narra a história de um único personagem, de nome ignorado, um jovem de 25 anos, prostrado num total estado de ataraxia. O livro utiliza a voz narrativa na segunda pessoa – você – o que proporciona uma ainda maior simbiose entre o leitor e o personagem. Contudo, não é um livro para ser lido por quem é propenso à depressão.

Ao longo das horas, dos dias, das semanas, das estações, você se desprende de tudo, desliga-se de tudo. Descobre, às vezes, quase com uma espécie de embriaguez, que você é livre, que nada lhe pesa, nada lhe agrada nem desagrada.

Mas essa liberdade não se reflete em felicidade. Notadamente influenciado pelo pensamento existencialista, o jovem encontra-se em tal estado de lassidão que nada o comove. Um homem que acaba por estar desprovido de qualquer sentimento, nem alegre ou triste, sem nem mesmo ser um poeta. Um homem que não vive, um sonâmbulo, transeunte morto-vivo nas ruas de uma das mais vivas cidades do mundo.

Encontra-se, nesta vida, sem usura e sem outro estremecimento além dos instantes suspensos provocados pelas cartas ou certos ruídos, certos espetáculos que você concede a si mesmo, uma felicidade quase perfeita, fascinante, às vezes cheia de emoções novas. Você experimenta um repouso total, e constantemente poupado, protegido. Vive numa bem-aventurada digressão, num vazio cheio de promessas e do qual você nada espera.

E assim ele passa todos os seus dias: como um eterno flâneur, perambulando sem tino e sem destino pelas ruas de Paris, pelos museus, pelos cinemas, pelos cafés, sem outra função que não a de testemunha ocular isenta de qualquer envolvimento com o que lhe cerca.

Você é invisível, límpido, transparente. Você não existe mais: a sucessão das horas, dos dias, a mudança das estações, o escoamento do tempo, você sobrevive, sem alegrias e sem tristeza, sem futuro e sem passado, assim, simplesmente, evidentemente, como uma gota d’água que pinga na torneira de um patamar, como seis pés de meia de molho numa bacia de matéria plástica rosa, como uma mosca ou como uma ostra, como uma vaca, como um caracol, como uma criança ou como um velho, como um rato.

No budismo e no hinduísmo existe o conceito de Nirvana, estado consciencial em que o praticante libera-se do apego dos sentidos, da ilusão do mundo (Maya). Mas esse estado conduz o indivíduo a uma identificação maior com o Universo, a Divindade ou consigo mesmo. E isso o leva a um movimento de equilibração, para utilizar um termo piagetiano, ou seja, o equilíbrio na ação, o movimento no repouso, não à estagnação total, não ao egocentrismo, mas à sensação de pertencimento a tudo que lhe cerca.

Quando escrevi meu conto MALÁRIA (disponível no site www.goulartgomes.com), ainda não tinha lido o romance de Perec. Hoje, após a sua leitura, percebo o conto como um prolongamento, um adendo, não à história mas à condição de imobilidade do personagem, com um final “mais ou menos” feliz.

Nesse livro, que deve ser lido de um só fôlego, de uma “sentada”, Perec conseguiu se antecipar a este século XXI, de modernidade tardia, sem a herança de referenciais ou heróis, demonstrando o que seria de um jovem sem “norte”: ao mesmo tempo em que é despossuído de qualquer ideologia, crença, fé, religião, também não se encontra emaranhado entre griffes, realities shows, drogas, álcool e músicas de nenhuma qualidade. Muito mais uma árvore que um ser humano, uma mistura híbrida de planta e de fantasma, como diria Zaratustra. Um livro que nos provoca uma profunda reflexão sobre o que é a Vida e o quanto estamos despertos para vivê-la com intensidade.


Salvador, 21 de janeiro de 2008.