quinta-feira, 22 de novembro de 2007

"ESTOU FARTO DO LIRISMO..."



Gerana Damulakis


É fácil constatar que a crítica literária, tal como a crônica, sofre por ser datada. Ressalva feita para quando o autor está morto, portanto a obra concluída e, no extremo, sem riscos de que apareçam títulos póstumos. O fato é que avaliar um escritor em plena produção carrega uma gama de equívocos que apenas o futuro apontará.
Fica patente quando se pode averiguar isto num livro como A Leitora e seus Personagens, daquela que talvez tenha tido a maior lucidez analítica na crítica brasileira do meado do século XX: Lúcia Miguel Pereira. O brilho de seu pensamento, nas décadas de 40 e 50, percorreu as obras das mais diversas correntes literárias do país. Com uma cultura invulgar, uma bagagem de leituras invejável e uma percepção crítica como poucos, Lucia Miguel marcou seu lugar como militante na imprensa literária. Mas nada disso evitou o erro que só o tempo, implacável, acentua.
A leitura da reunião de textos críticos deixa evidente um caso interessante. Trata-se da avaliação dos, então, últimos poemas de Manuel Bandeira, vistos pela crítica no Jornal do Comércio, em 1936. Quase uma diatribe, não fosse seu cuidado para com o poeta amigo, Lúcia diz encontrar "uma nova maneira" na poesia de Bandeira. Tal maneira nova seria a ironia, avaliada como que uma negação de tudo aquilo em que o poeta acreditara, "alguma coisa de tenso, de voluntariamente desprendido". E conclui: "essa é a grande modificação". Então transcreve uma das estrofes de "Poética", poema que consta do livro Libertinagem: "Quero antes o lirismo dos loucos/ O lirismo dos bêbados/ O lirismo difícil e pungente dos bêbados/ O lirismo dos clowns de Shakespeare./ — Não quero mais saber do lirismo que não é libertação".
A crítica vê na ânsia de libertação uma obrigação do poeta em zombar de tudo e não se deixar dominar por coisa alguma, pois a ironia está "corroendo sua inspiração". Ora, tanto a poesia posterior de Bandeira quanto o próprio Manuel em seu livro Itinerário de Pasárgada, sua autobiografia literária, atestam que o lirismo não deixou os versos do poeta de Estrela da Tarde nem o poeta teve tal intenção. A feitura do poema estava intimamente ligada ao momento modernista, daí um grito, não contra o lirismo, mas contra certos tipos de lirismo: "Estou farto do lirismo comedido/ do lirismo bem comportado..."
Imagine-se se fosse levado a sério o fim do lirismo em favor da ironia absoluta. Enfim, a ironia incorporou-se à lírica moderna. Hoje, tão distantes daquele momento, atestamos o lirismo mais do que presente, a própria poesia: o lirismo pungente de Ruy Espinheira Filho quando diz: "Quero/ me apagar na noite,/ ser a noite/ esse grande silêncio/ lá fora,/ onde espero que o mundo/ não esteja mais". O lirismo Femina de Myriam Fraga: "Revesti-me de mistério/ Por ser frágil,/ Pois bem sei que decifrar-me/ É destruir-me". O lirismo a plenos pulmões de Ildásio Tavares: "Há um resto de mim em toda a parte/ Que nunca pude ser inteiramente". O lirismo musical de Aramis Ribeiro Costa: “O sol brilhando em plena madrugada/ O desejo de ser – sem ser loucura/ A vida, num segundo, iluminada”. O lirismo apurado de Florisvaldo Mattos: "Nada sei do que me contam/ as furiosas páginas dos diários mudos". Os versos líricos de Luís Antonio Cajazeira Ramos: "O sonho acabou./ Não mais acordei./ Mas tudo que sou-/ -be, no sonho, deixei". O lirismo refinado de Maria da Conceição Paranhos: "Mor ventura não há neste meu fado/ do que mirar teu corpo e usufruí-lo,/ pausadamente, a mão a desvesti-lo,/ saboreando teu olhar de dardos,..."
Lucia Miguel Pereira reclamava do fim da simplicidade de Bandeira. A lírica moderna pode não ter o acesso fácil de outros tempos, mas aí reside o seu fascínio. O lirismo é categoria tradicional e eterna na poesia, seja ele mais claro, seja obscuro e mágico. Menos mal que a crítica não pode ver além de seu tempo.



Este texto foi publicado no caderno 2 do jornal A TARDE, coluna Leitura Crítica, em 01/08/2001.

RESUMO

Gerana Damulakis


Não cheguei na lua.
Andei apenas pelas ruas
molhadas, cheias de buracos
que transbordam de pedras.
Nem plantei uma árvore,
nem colhi frutos,
mas não arranquei rosas.
Não escrevi um livro.
Apenas passei páginas,
lisas e lidas.
Não conquistei meu chão,
meu corpo é pequeno,
grande minha solidão,
e apenas consigo
abrir meu coração no tímido pedaço
de meu espaço;
semeio de paz o meu redor,
tento criar ilusões para
a difícil realidade da vida.

1993

A DAMA



Carlos Vilarinho


Foi lá na redação que vi Danyella. Estava sentado ouvindo o editor, pensando em tomar café. Ela veio e sentou-se ao meu lado. Não havia pensado em meu comportamento idossincrático-meditativo ao longo da vida. Não sabia o que eu era. E agora sei quem sou. Tudo de praxe durante o falatório, a não ser quando o poeta tomou a palavra.
— Tudo, companheiros, é uma questão natural. Se analisarmos o tempo em sua passagem iminentemente e, muito natural, efêmera... e, com a nossa perspicácia, ao observar e interpretar os fatos para depois criá-lo e recriá-lo teremos a notícia...
Eu tinha uma bolha no pé. Calçava um único tênis que possuía velho e surrado. Quando o poeta Carlos começou a falar, não sei por que, mas a coceira parou, deu um tempo. Pensei na passagem do tempo para escrever minha matéria. Então, olhei Danyella ao meu lado. Ela estava com uma calça colada ao corpo. Desenhava toda sua perna. Algo fantástico contatou minha energia com a dela que, sem querer e, com o pensamento voltado a um texto que teria que escrever, esperei Danyella levantar.
— ...não que não tentemos, não que não pensemos, não que não saibamos e alguns não sabem, mas as mulheres devem ser bem tratadas...
A bolha no pé voltou a coçar. Estava usando também um desodorante forte, ativo, e aquilo me deixava renitioso. O poeta Carlos é um bom amigo, um sujeito muito parecido comigo. Gostava de beber cerveja e falar na seleção brasileira. Enxergava nas entrelinhas e era até um pouco histriônico com relação às mulheres. O poeta era tão sensível que me fazia observá-lo ali com uma coceira nos pés. Sentia a volúpia da coceira. Notei então a mira acre e o bigode revoltoso de Valcélio a espionar, indignado, a minha coceira.
— ...e foi assim que Nietsche chorou, amigos... eu, enquanto jornalista, e com tantos fatos falsos noticiados pelo mundo afora, criados a partir da imaginação de um homem, digo-lhes que o que estão querendo fazer com nossa classe é um absurdo.
A reunião decidiria o dissídio coletivo. Havia no paroxismo da vida uma existência paradoxal, que era o jornalista desinformado. A turma toda estava além da indignação. Não abri a boca para dizer que era verdade tudo aquilo, o fato do desconhecimento, mas a minha presença incomodava boa parte da redação. Danyella então se levantou e ali eu senti o que há muito não sentia. Um tremor no coração e um desejo quase incontrolável. Durante o seu andar até a cafeteira envolvi-me numa espécie de transe em conexão com o universo feminino. Danyella me causaria, a partir daquele dia, muito embaraço de excitação espontânea.
— ...Fernando Pessoa genialmente falou que ficava no cimo de um outeiro olhando o seu rebanho, ótimo, amigos, se tivéssemos agora um Fernando, ou melhor, Alberto Caeiro, a nos olhar e nos guardar lá de cima no papel que está no seu pensamento...
Não sei quanto tempo o poeta falou, não prestei mais atenção depois que pus meus olhos em Danyella. Passei o resto daquele dia inquieto e excitado. Segui a mulher até o lado de fora da redação e minha excitação amoleceu quando a vi entrar num carro e seguir com um outro homem. A bolha de meu pé voltou a incomodar, o sangue corria dentro de mim com mais intensidade, tornou-se um córrego que parecia jazer de tristeza pela ausência de Danyella.
— Jornalista, para que lado fica o amor?
Um velho que ficava todos os dias na porta do jornal, limpando sapatos, me perguntou isso. Aliás, ele já havia me perguntado em outras situações e eu, indignado e sempre injuriado com as coisas da vida, resmunguei:
— HUMPF!!!!
Naquele dia eu respondi:
— O amor acaba de entrar num carro.
E foi ele mesmo, o engraxate, quem me contou sobre Danyella.
— É, eu vi. Aquela dama causa frisson em todo mundo quando chega. Ela é casada com um palermão que aparece de vez em quando na televisão, convocando o povo para ir à vigília dos crentes... Tem também um filho com o tal palerma chamado Esdras. È muito tímida, sensível e carente...
— Como é que você sabe disso tudo?
— Jornalista, tenho sessenta anos e já tive meia dúzia de mulheres, conheço todas... a dona que virou sua cabeça tropeçou no próprio salto e segurou-se em mim e eu a segurei para não cair. Acredita, jornalista, que só com esse toque ela ficou toda arrepiada?
A imagem dos seios arrepiados de Danyella veio imediatamente à minha cabeça. E saí para beber, levando comigo na obscuridade dos pensamentos aquela dama que só mil talheres iriam satisfazê-la.
Ao chegar à redação no dia seguinte, rodei em torno de mim mesmo para buscá-la. Não a vi, quase entro no desespero quando, em seguida, ouvi um melífluo “licença”. Era ela. Ouvi ao mesmo tempo o estrondo retumbante do meu coração acelerado. Danyella olhou dentro dos meus olhos e riu um riso contido num sopro de respiração. Eu ri também e emendei.
— Toda licença do mundo para a dama seguir seu caminho suavemente.
Ela olhou novamente e riu um riso menos contido. Lembrei do engraxate e imaginei os pêlos eriçados do sexo de Danyella, junto a uma gota de suor. Não sei por que, mas veio à minha mente Dom Pedro II. Tempos atrás havia lido um livro sobre o imperador deposto. Dom Pedro teve muitas mulheres e uma dedicatória que fez para uma delas ficou em meu pensamento: “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”. Um dia direi isso a Danyella, prometi a mim mesmo. Depois de alguns meses, estávamos bem próximos. Sabia que de uma forma ou de outra Danyella me admirava e pensava em mim. Sabia que me olhava enquanto os meus olhos não estavam ao alcance dos olhos dela. Esgueirava-se na cadeira para ver como eu tratava as outras colegas, denotando um arroubo ciumento que a sua discrição e complacência não deixavam transparecer o que sentia por dentro; talvez passeasse por seu coração a dúvida de ser especial. Não deveria duvidar se me conhecesse perspicazmente. Enfim, estávamos na atmosfera romântica marcada por um ponto de intersecção que nos unia em algum lugar do universo. Trabalhávamos um em frente ao outro e cada vez mais eu a desejava. Acho que ela também. Inventei até um projeto fantasma para ficarmos juntos, discutirmos e, enquanto discutíamos, eu a imaginava nua, sem o seu vestido azul. Um dia, entretanto, tudo começara a se concretizar ao cair no chão a caneta com que trabalhava; abaixei para pegar. Foi assim que vi o talho de Danyella todo descoberto. Ela estava só de vestido, sem nada por baixo. Fiquei nervoso com a visão que tivera, e ela percebeu. Riu de esconso e levantou-se para ir à cafeteira. Olhou para mim de soslaio e quebrou para o banheiro. Eu fui atrás. Ela entrou, esperou que eu entrasse e trancou a porta.
— Estou pronta.
Beijei a mulher com furor, segurei o sexo com vontade, coloquei-a em cima da pia que quebrou. Levei-a então para o vaso, sentei e encaixei Danyella sem dar espaço a vácuo. Ela escorregou em cima de mim teso, duro e viril, soltou um urro de amor contido. Como dois animais, em transe de orgasmo, nos amamos no banheiro da redação por quarenta minutos. Ao sairmos, deparamo-nos com o poeta Carlos escorado na parede com dor de barriga, eis que me disse:
— Não há nada senão o fetiche
Não há nada senão o cio dolorido e desejoso de um poeta
Não há nada como saciar a dor
Não há nada como beber o amor...
Na última carta que mandei a Danyella, coloquei a frase que prometi a mim mesmo “Não consigo mais segurar a pena, ardo de desejo de cobri-la de carícias”

18/11/07



Carlos Vilarinho é ficcionista e cronista, autor de As sete faces de Severina Caolha & outras histórias (SCT, FUNCEB, 2005). Coleção Editorial Selo Letras da Bahia, 103