domingo, 20 de janeiro de 2008

O QUE SE SABE DOS ESCRITORES DESTA TERRA?



O texto a seguir é um resumo de uma palestra proferida pela escritora Gláucia Lemos por ocasião de um café literário. O tema foi desenvolvido pela ficcionista, que discorreu sobre demais aspectos, tendo como centro a literatura.
Gláucia Lemos


Sabemos que há um certo glamour envolvendo algumas atividades, especialmente atividades artísticas, em todas as suas manifestações. Obviamente também em relação aos operários da literatura. Um glamour que nos coloca em situação distinta, na qual somos olhados com alguma curiosidade. Quando alguém sabe que somos escritores vem a pergunta imediata: Qual é O seu livro? Aí acontece o primeiro embaraço: se já publicamos alguns livros, ficamos constrangidos. Que faremos? Citaremos um dos títulos? Ou confessaremos já ter um número mais avultado? Aí dizemos, um pouco envergonhados, como se fosse uma confissão: Tenho alguns publicados, e mencionamos o número. Nesse ponto corremos o risco de ser olhados com um olhar de descrença, como se parecêssemos incapazes de tal proeza. Como se pensassem que se tivéssemos chegado a tal ponto, o certo é que não estaríamos mais aqui, dando sopa “baratamente” pelas ruas da província. Escritor que se preza está morando é no coração da cultura, no eixo Rio-São Paulo., que nem João Ubaldo, Antônio Torres, Hélio Pólvora (que retornou) João Carlos Teixeira Gomes, e alguns outros. Às vezes até perguntam se somos mesmo daqui da Bahia, de Salvador... Que coisa! para baiano dar certo na literatura tem que ir embora? Ou então, se está dando certo na Literatura, tem que ser de outras terras e andar aqui por acaso? Então a gente quase pede desculpas por ser um escritor e por estar conquistando com êxito o seu terreno; é como se estivéssemos expondo uma coisa muito íntima. Há ocasiões em que o "normal " que nos inquire diz algo alentador, como : Já ouvi o seu nome! Gentileza ou não, essa frase melhora a situação, quem sabe, talvez tenha lido em algum texto no jornal... Ruim mesmo é quando pergunta, e é muito freqüente: Sai muito caro para publicar um livro? Aí é a hora do embaraço para explicar que não pago um centavo, pelo contrário, recebo. As editoras são que me pagam meus direitos periodicamente. Essa parte, confesso, me deixa cheia de pudor, ante a expressão de surpresa do interlocutor. Não sei se expressa incredulidade... Parece que estou contando que acertei a mega sena.
Tudo isso de que estou falando tem um objetivo: registrar como andam em baixa os conhecimentos do público em geral, quanto ao escritor da terra, quanto à literatura que se faz aqui, e, modéstia à parte, a boa literatura que temos na Bahia, não somente criada pelos nossos medalhões por demais conhecidos, e reconhecidos, mas também pelos que ainda estão quebrando paredes para instalar vitrine onde colocar seu trabalho, e pelos que, ao lado da seriedade da sua produção, têm contado com a ajuda da boa sorte, entre os quais modestamente me coloco.
Fazendo esses comentários, recordo um episódio ocorrido há uns poucos anos atrás. Chegando à portaria do meu prédio um pacote de exemplares, o reparte de uma nova edição de um dos meus livros, o que recebo conforme contrato, o porteiro curioso perguntou para minha empregada o que havia naquele pacote. Ao saber que eram livros escritos por mim, exclamou: Taí, tá podre de rica fazendo essas besteiras... Coitado... errou duas vezes. Nem estou podre de rica, nem estou fazendo besteiras. Demos aí o desconto do nível de informação do autor do comentário.
Há ainda outra faceta que o escritor enfrenta que é a pecha de sermos diferentes do comum. Temos manias, vemos as coisas por outros ângulos, somos hipocondríacos, somos PMD, somatizamos nossas emoções, enfim, já até assumimos essas coisas, rimos delas e acho que algumas têm razão de ser. Essas facetas são consideradas até mesmo pelos nossos familiares. Não sei se acontece com todos, mas sei que, de modo geral somos considerados um pouco desalinhados da conduta geral, isso é da conduta dos normais. Na minha casa, meus filhos dizem que vejo coisas e situações de um modo diferente do modo das outras pessoas. E sempre que vou ensinar alguém como ir a determinado lugar, eles correm em socorro à vítima, e ensinam eles próprios, porque eu sempre indico o caminho inverso com a melhor das intenções. Deus me livre de prejudicar quem quer que seja. É só porque sou mesmo desorientada quanto ao espaço. Meu marido, quando vivia, nunca me deixou dirigir carro por causa disso. Aí ele morreu e eu fiquei de taxi. Talvez ele não confiasse que eu acertasse a voltar para casa. Mas será que tem a ver com a minha condição de escritora? Ou será que sou escritora porque sou assim, meio fora do mundo? Não importa. Todos nós temos direito de ter nossas características, embora algumas vezes elas incomodem. O mundo seria muito tedioso se todos fossem muito equilibrados. Contando que as nossas idiossincrasias sejam naturais, e não estejamos a fazer gênero para aparecer.
Apesar desses senões, eu jamais descartaria o dom de fantasiar com que a natureza me dotou. E não é só a questão da fantasia, da criação de uma história, dos personagens, do enredo, é muito, é muitíssimo mais, é a paixão pelo trabalho com a palavra. Essa prerrogativa que Deus, ou a natureza, ou como queiramos chamar, doou ao ser humano, é o que de mais forte possuímos, além da vida. A palavra é a liberdade do pensamento, feita concretitude. É a possibilidade do "não-ser "do pensamento transformar-se em “ser”. Através da palavra a abstração da emoção ganha forma e se torna concreta. E essa força pode ser perigosa, tanto quanto pode ser divinizada. Daí a magia de trabalhá-la tornar-se um desafio para o escritor. Na faculdade de Direito eu aprendi o valor e a importância do emprego da palavra exata, para o exercício da profissão na defesa da lei, na qual uma ambigüidade pode significar a derrota em uma causa. Na literatura aprendi como utilizar a ambigüidade da palavra em proveito de um belo texto. O que se torna muito mais gratificante de ser exercitado.
As possibilidades da palavra na sintaxe a partir da sonoridade, no ritmo da sentença experimentando com a tonicidade das sílabas, nos jogos que a homonímia oferece, na elegância que os sinônimos bem postos nos possibilitam. Essa oficina, que alguns escritores dizem ser de cansativa transpiração, se me afigura como as flores a serem postas nos jarros, depois da sala arrumada, e como a decoração da torta, depois de tirada do forno, e como o perfume que vaporizamos no corpo depois que estamos prontas para a festa. Sem essa terminação, sem o verdadeiro trabalho literário, a história, por mais bem engendrada, por mais criativa, não é senão uma narrativa insossa. Não ponho fé nessa afirmativa de transpiração cansativa. A mim, se tem revelado trabalho, sim, trabalho de responsabilidade, sim, mas o trabalho prazeroso, mágico, um trabalho de descobertas para a perfeição do texto, até o máximo de perfeição que possamos atingir dentro da nossa limitação humana. Já que a criação do enredo, o desenvolvimento do tema, isso brota sem esforço e independente da vontade do autor, como rebenta o broto da amêndoa da semente, por conta de criatividade. A história surge espontânea. A oficina do texto é voluntária, dela temos consciência e a essa tarefa nos dispomos, desafiando os deuses que nos fizeram mortais, conforme entende Rollo May no seu ensaio "A coragem de Criar ." . Porque é através dela, da conseqüência da aplicação apaixonada ao trabalho da palavra que alcançamos a imortalidade. Com todo o respeito pelas Academias, é a palavra a que nos dedicamos com paixão o que nos leva a vencer esse desafio e nos imortaliza.
Por isso é que, com os alguns senões e incompreensões que acarreta ser escritor, e com as muitas gratificações que tal nos proporciona, cabe aqui associação com um verso contido em " Dom de iludir ", de Caetano Velloso, que transcrevo na primeira página toda vez que abro um novo caderno. "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’ O que no meu caso vem caber não só com a condição de escritora, como igualmente, com a minha condição de mulher.