quinta-feira, 31 de julho de 2008

EM FALTA COM LAGO JÚNIOR








Nem acredito que não fui ao lançamento de Ao amigo desconhecido (Fundação Pedro Calmon, Selo Letras da Bahia, 2008), de meu querido amigo Lago Júnior. Foi uma honra fazer o prefácio deste seu segundo livro de poemas, assim como fiz o do primeiro. De Dúbio Labíolo - Transparências (BDA, 1996) tirei, inclusive, um verso para levar comigo vida afora: "Se da dúvida do não, eu sempre fizer a dúvida do sim, pode ser que eu ame muito mais".

DONA VIDA E DONA MORTE

Lago Júnior

Sou um poema de sínteses.

Pêndulo equalizador.

Antítese azul.

Tese amarela.

Sou seu e dela,

das imagens que fiz de mim e de vós,

Senhoras.

SONETO DE EXÍLIO

Ildásio Tavares

Vossos olhos, senhora, que competem
com o sol em formosura e claridade
Luís de Camões


Senhora, quando vejo, tão formoso
o vosso gesto amado que sorri,
percebo que outro igual não sei nem vi
e que vosso desprezo é deleitoso.
Vede, meu sofrimento é tão gostoso
e leve como a pena que escrevi;
me apraz cumprir a pena que cumpri
por crime de que não sou criminoso.
Se errei ao desejar casta mulher;
se chorei por um riso tão bonito;
se amei quem não me ama nem me quer,
parecer não me importa o esquisito;
hei de chorar sorrindo até morrer,
hei de errar por amor ao infinito.

O DIÁRIO ÍNTIMO DE CLARICE LISPECTOR




Gerana Damulakis


(sobre a crônica da consagrada romancista)




As crônicas de Clarice Lispector têm semelhanças com um diário íntimo. A escritora está de frente para o mundo para mergulhar em si mesma cada vez que a solicitação externa suscita uma reflexão interior. Portanto, ela faz do fato mero veículo para questionamentos, sempre exercícios de ficção ou levantamentos autobiográficos.
Foi na crônica que Clarice se escreveu. E, como diante de um analista, o começo não foi fácil, na verdade, foi-lhe custoso. Depois, acostumada ao novo ofício, ela se delicia com o lugar onde pode ser mais verdadeira, mais franca para consigo.
Como nas histórias, tudo começou com um espaço cultural na imprensa, o Suplemento Dominical, em 1956, no Jornal do Brasil, quando Clarice transitou, primeiramente com trechos de A maçã no escuro, de 25 de março de 1961. Antes disso, ela já escrevia para o jornal sob o pseudônimo de Helen Palmer, no Correio da Manhã, distribuindo conselhos e receitas. É em 1965 que a escritora assume a crônica semanal do Caderno B do Jornal do Brasil, a princípio temerosa, no lugar de Rachel de Queiroz: “Como vou arranjar assunto para uma crônica, que é sempre um comentário de acontecimentos?” Também diz assim: “Ser cronista. Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto. Na verdade, eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica”. No entanto, ela chegou a seu próprio entendimento do que é a crônica, por uma estrada muito clariceana, ou seja, se questionando: “Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado de espírito?” Clarice optou pelos resumos de estados de espírito em tom de conversa, enquanto relatava fatos que, quase invariavelmente, ocorriam com ela mesma, com ênfase para aqueles que se davam com suas empregadas domésticas e, como ela se locomovia de táxi, com os motoristas dos carros que a transportaram; ambos assuntos nas suas crônicas por diversas vezes. Sabia-se, assim, o que se passava no dia-a-dia da escritora de A paixão segundo G.H.. Porém, não foi apenas isso, sabia-se mais, sabia-se o que lhe ia na alma de mulher e de escritora.
De 1965 a 1973, Clarice Lispector escreveu crônicas para o Jornal do Brasil, tendo a subjetividade reinado sobre o factual e, onde, a priori, o que ela fez foi uma tentativa de autobiografia, a ponto de , a certa altura, confessar, na crônica, seu espanto diante do rumo que aqueles textos estavam tomando: “Rubem, não sou cronista e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal. O que é que eu faço?” É aqui que observamos a semelhança das crônicas de Clarice com o diário íntimo porque tais questionamentos sobre seus textos e sobre si mesma conduziram-na a reflexões constantes, buscando explicações. As explicações, construídas, foram para a página do jornal, e, mais tarde, para o livro de reunião das escolhidas.
As crônicas de Clarice, onde os acontecimentos são apenas pretextos para sua relação com o real, colocam claramente a realidade dentro do texto, que bem poderia ser tão somente imaginação. Apesar dessa colocação, haverá de se dizer também que o espaço da crônica foi usado por Clarice para exercitar a sua obra ficcional, o que, de resto, não põe de lado a afirmativa sobre ser a dela uma reunião de crônicas que mais se assemelha a um diário íntimo, podendo, sim, inserir aqui um ajustamento, haja vista ser o diário um lugar onde cabe muito bem o exercício da imaginação; diríamos, pois, um diário de uma escritora, aquele lugar certo para se treinar trechos de romances e contos. Daí encontramos um tanto de real e outro tanto do ficcional, que, por fim, acabam construindo a autobiografia.
Por sinal, não há cronista que escape à crônica que começa falando que hoje está triste, que hoje está irado, que hoje seu dia está cinzento. Realmente, não há escapatória para o cronista, ele invariavelmente acaba não resistindo à confissão do seu estado de alma. Em “Dies Irae”, temos:
"Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam".
Em suma, a crônica é difícil de ser definida, podendo ser vista como um conto, como um texto reflexivo e filosófico, muitas vezes até como uma catarse, uma confissão, aparentadas com o diário íntimo. Clarice se confessa em tantas crônicas e chega a confessar muito, por exemplo, em “Fartura e Carência”:
"Mais o pior é o súbito cansaço de tudo. Parece uma fartura, parece que já se teve tudo e que não se quer mais nada. Cansaço dos Beatles. E cansaço também daqueles que não o são. Cansaço inclusive de minha liberdade íntima que foi tão duramente conquistada. Cansaço de um amar o outro. Melhor seria o ódio. O que me salvaria dessa impressão de fartura — é fartura ou uma liberdade de que está sendo inútil? —seria a raiva".
Em 25 de setembro de 1971, outra crônica também intitulada “Dies Irae”, vem com maior abertura, permitindo que se possa conhecer melhor a escrita da ficcionista , porque se nos romances e nos contos o mistério persiste, nas crônicas há a revelação desse mistério, na medida em que Clarice foi escrevendo seus textos para o jornal, sempre na primeira pessoa, sempre, e mesmo se contando um fato, numa cascata de reflexões que a iam ajudando a resolver impasses e até o que, mais tarde, faria parte de um romance ou de um conto:
"Esta — se disse o homem como se fosse para uma guerra — esta é a minha prece de possesso. Estou conhecendo o inferno da paixão. Não sei que nome dar ao que me toma ou ao que estou com voracidade tomando senão o de paixão. O que é isso que é tão violento que me faz pedir clemência a mim mesmo?"
Trechos de 18 de setembro de 1971, trazem escritos como estes: “Estou escrevendo de madrugada. Estou escrevendo com muita facilidade, e com muita fluência. É preciso desconfiar disso”. Acompanhando essa preocupação constante com o ato da escritura, está uma outra, bem maior, a preocupação com seus descobrimentos: “Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para a frente - como em dores de parto - e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heróica. Sem menina dentro de mim”.
Ficamos de tudo sabendo, inclusive dos planos para logo mais. Contudo, se a “crônica é tudo aquilo que o autor assim chamar”, a de Clarice é a crônica que se insere nessa pluralidade de definições, assim, fica infundada a intriga que chegou aos ouvidos da escritora e esta registrou no jornal: “Uma pessoa me contou que Rubem Braga disse que eu só era boa nos livros, que não fazia crônica bem. É verdade, Rubem? Rubem, eu faço o que posso. Você pode mais, mas não deve exigir que os outros possam. Faço crônicas humildemente, Rubem. Não tenho pretensões. Mas recebo cartas de leitores e eles gostam. E eu gosto de recebê-las”.
A verdade é esta mesma, a de que não havia compromisso, por parte de Clarice, em se tornar a grande cronista. Ela começou insegura, revelou tal insegurança, até exaustivamente no próprio jornal e, com o exercício e o tempo, aquela que chegou a perguntar, em crônica, a Rubem Braga, o que fazer no espaço do jornal a ela reservado, passou a fazer o que quis, sem imitar outros cronistas: “Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta?. Se, quando em vez, ela teve preocupações quanto a se aquilo que escrevia era crônica, com o tempo Clarice decidiu por si, pela liberdade, pelo mostrar-se, enfim, ela dá a ver: “Avisem-me se eu começar a me tornar eu mesma demais”, em “Fios de Seda”.
Como a crônica brasileira tornou-se um gênero literário, perdeu, assim, a efemeridade do seu veículo de origem e chegou ao objeto seguro. Em livro, pois, temos as crônicas de Clarice Lispector, ou temos o diário de Clarice Lispector. De uma forma ou de outra, compreendemos mais e melhor algo que interessa muito à literatura: o estilo da escritora.
A ligação entre seu eu, o eu clariceano, e o mundo em torno, traz à tona mais do que uma simples observadora do cotidiano, embora ela não deixe de fora a realidade do tempo em que vive, e, por essa via, se dá uma reconstrução de sua história, de como e porque seus pais resolveram concebê-la, de como e porque, ela muito menina, começou a escrever, e por aí afora. É por toda essa gama de fatores que uma coletânea de crônicas de Clarice Lispector parece uma autobiografia, onde ela celebra a vida e o ato de escrever.
Creio que é a conclusão a que chego ao ler, logo abaixo do retrato de Clarice feito por Carlos Scliar, um trecho, que foi arrancado de uma crônica de 14/ 09/ 1968. Tenho-o emoldurado na parede, ergo os olhos do computador e leio:
"Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permanecia apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada".

quarta-feira, 30 de julho de 2008

PACTO



Fred Matos


falemos sobre as pequenas coisas que nos cercam
falemos vagarosamente para que durem
um mínimo instante além do tempo que as fitamos

para as grandes coisas
já dedicamos toda a nossa pressa
e ela não foi capaz de nos dar conforto
nem de solucionar os graves problemas humanos

dediquemos às pequenas coisas um olhar preguiçoso

melhor ainda
façamos um pacto de silêncio enquanto caminhamos
de mãos dadas como Ricardo e Lídia à beira do riacho
onde eu nunca me havia dado conta
dos pés de avenca na sombra amarela do Ipê

façamos um pacto de silêncio para ouvir os pássaros
façamos um pacto de silêncio para ouvir as águas
e os seixos que rolam no seu leito

façamos silêncio para ouvir o vento
façamos silêncio porque as palavras estão gastas
como os seixos que rolam ao sabor das circunstâncias.



Este “pacto” é um dos poemas do livro inédito de poesia “nas horas e horas e meias”.
Foto de selenis, retirada do Flickr.

HOMEM


Kátia Borges



Meu homem chega cansado,
o suor grudado na pele.
E eu, que o imagino calmo, me deito,
rosto contra o travesseiro
e aguardo.
Ele deita seu peso sobre meu corpo,
e seu cheiro é forte,
como o de um cavalo.
Sinto seu hálito no pescoço,
suas pernas forçando passagem
entre minhas pernas.
O amor não tem rosto, penso,
é essa pressão — pele contra pele
— esse atrito de pêlos.
Quero dormir e sonhar que nos amamos,
e que antes de me possuir, ele me despe, delicado.
Quero dormir e sonhar que ele chega,
só em sonho posso tê-lo sem essa fúria.

(poema do livro “De Volta à Caixa de Abelhas”). Ilustração de Adriano Fujinaga, retirada do Flickr.

PRÊMIO CAMÕES 2008


O escritor baiano João Ubaldo Ribeiro venceu o Prêmio Camões 2008.
A lista dos vencedores:
1989 Miguel Torga (Portugal, 1907-1994)
1990 Joao Cabral do Melo Neto (Brasil, 1920-1999)
1991 José Craveirinha (Mozambique, 1922)
1992 Vergilio Ferreira (Portugal, 1916-1996)
1993 Rachel de Queiroz (Brasil, 1910-2003)
1994 Jorge Amado (Brasil, 1912-2001)
1995 José Saramago (Portugal, 1922)
1996 Eduardo Lourenço (Portugal, 1923)
1997 “Pepetela” Artur Carlos Mauricio Pestana dos Santos (Angola, 1941)1998 Antonio Candido (Brasil, 1918)
1999 Sophia de Mello Breyner (Portugal, 1919-2004)
2000 Autran Dourado (Brasil, 1926)
2001 Eugenio de Andrade (Portugal, 1923-2005)
2002 Maria Velho de Costa (Portugal, 1938)
2003 Rubem Fonseca (Brasil, 1925)
2004 Agustina Bessa-Luis (Portugal, 1922)
2005 Lygia Fagundes Telles (Brasil, 1923)
2006 Luandino Vieira (Angola, 1935)
2007 Antonio Lobo Antunes (Portugal, 1942)
2008 João Ubaldo Ribeiro (Brasil, 1941)

segunda-feira, 28 de julho de 2008

A GAROTA DO TERCEIRO ANDAR



Fred Matos


Para Gerana Damulakis



Decidiu quando acordou que aquele seria um dia diferente, encheu de café a garrafa térmica, muniu-se do adoçante, de uma xícara, arrumou os papéis, pôs ordem na mesa, ajustou a cadeira, ligou o computador. A luz da manhã, mesmo filtrada pelo vitral psicodélico da porta da varanda, incidia sobre a tela. Levantou-se, improvisou uma cortina. Hoje nada de Internet, nem me ocuparei com jogos. Abriu o editor de texto, escolheu a formatação para parágrafos e fonte. Lá estava, alva, a tela que deveria receber a sua obra prima, a obra para a qual se sentia preparado após longos cinqüenta anos de leituras, dos clássicos da antiguidade até os vanguardistas contemporâneos. O primeiro cafezinho. Acendeu um cigarro. Não tinha história pronta ou iniciada na cabeça, mas isso não o preocupava. É tudo uma questão de começar, depois palavras virão puxando outras e será como na conversa de dois amigos que se reencontram após longos anos de separação: ao mutismo, à falta de assunto inicial, uma qualquer lembrança será a pequena chama que acende o pavio. É inevitável a explosão e as suas conseqüências, páginas e mais páginas de boa prosa, um lugar na Academia de Letras, o nome nos jornais, convites para palestras, viagens, coquetéis, noites de autógrafos, o sucesso, o Prêmio Nobel, o assédio das fãs. Mãos à obra. Preocupa-o agora definir um estilo. Podia optar, mas não se sentia atraído pela prosa arrastada e detalhista de Proust, nem pela complexidade do Joyce de Ulisses. Pensou na pontuação subversiva de Saramago, mas não queria que a sua obra-prima fosse recebida e citada pela crítica como um pastiche. Imperioso, portanto, afastar a tentação de beber nas fontes de Guimarães Rosa. A tela ainda branca, serviu-se de outro café, outro cigarro. Levantou-se, reajustou a altura da cadeira, caminhou pela sala. Será o meu próprio estilo, uma mistura de todos os estilos que conheço. Preferia romances novelas e contos com começo meio e fim, comparava-os a uma estrada reta e ensolarada, cujo previsível destino é, aqui e ali, interrompido por incursões em pequenas veredas acidentadas que ao cabo retornavam ao fio escorreito da narrativa, mas algo assim não terá o impacto que desejo, cairá na vala comum do esquecimento, devo tratar de montar um quebra-cabeça, contudo sem deixar a possibilidade de que se pense ter imitado o Cortázar. Terei fôlego para um romance? Veremos, não devemos antecipar dúvidas quando sequer se tem um começo.
Lembrou-se na moça do prédio defronte. Todos os dias, das segundas às sextas-feiras, pontualmente às 19 horas, ela abre as cortinas e a janela do quarto, põe pra tocar uma música que ele não ouve, despe-se e dança. Nos primeiros dias envergonhou-se por invadir a privacidade da moça e retirou-se, depois não resistiu. Ela há de me ver aqui, é tão próximo, que feche as cortinas. Mas vendo-o, ele tem certeza que ela o vê, não demonstra pudor. Exibe-se para mim. É bela e jovem, cerca de vinte anos. Depois de dançar nua alguns minutos, ela penteia cuidadosamente os cabelos longos castanhos escuros, veste-se, unta os lábios com batom vermelho, dança mais alguns minutos em frente a um espelho que há na porta do guarda-roupa, fecha a janela, as cortinas e sai. Ele continua na varanda, espera que alcance a rua e a acompanha com o olhar até que desapareça na esquina. Sabe que o espetáculo de strip-tease se repetirá às dez da noite, hora que ela chega, sabe-se lá de onde. Posso criar uma história a partir disto. Mas estava decidido a não se permitir fantasiar com aquela ou com qualquer outra moça, achava que não tinha mais idade para aventuras. Já é bastante que me inflame, não devo me envolver com ela, sequer literariamente.
Sentou-se. Outra vez a tela alva, outro café, outro cigarro. Desligou o rádio. As vozes, as músicas estavam interferindo. Impossível obter silêncio, da rua chegam freios, motores, vozes, latidos e há o barulho monótono e redondo do cooler ventilando o processador do micro. Já sei, preciso escolher uma boa citação, tomá-la talvez como mote, fio condutor. Levantou-se. Foi à estante, tantos livros, gavetas atulhadas de anotações. O mais inteligente é escolher algo que permita mil e uma interpretações, algo indefinido que eu e o leitor possamos preencher com a nossa imaginação. Abriu ao acaso Fernando Pessoa nas “Ficções do Interlúdio” de Álvaro de Campos. Lá estava, perfeita:
“No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...”
Agora sim, três versos na tela, parágrafo alinhado à direita, fonte em itálico e negrito em corpo 10. Café, Cigarro. Uma hora gasta deste dia que se prometia diferente de todos os outros, e nenhuma palavra realmente minha, deve ser a ansiedade, talvez o excesso de luz e de ruídos, ou a ausência de lembranças, o temor de criar personagens à minha imagem e semelhança, personagens acanhados. Venceu a vontade de jogar contra o computador uma partida de dominó ou de gamão. Não me renderei aos passatempos inúteis. Venceu a vontade de ler as mensagens dos amigos, gastaria muito tempo respondendo-as. Preciso de uma idéia. Lembrou-se que muitos autores fizeram fama e fortuna recontando fábulas antigas, pareceu um caminho fácil e óbvio. Não é o que farei. Talvez no jornal haja algo. Levantou-se, trocou o pijama por um short, foi à banca da esquina, comprou o jornal, tantas páginas, milhares de palavras, nada, nenhuma notícia realmente nova, nada inusitado, nenhum humor que pudesse usar, vestir com a sua verve. Duas horas, tantas xícaras de café, inúmeros cigarros, e tudo o que havia eram três versos de outrem. Limpou o cinzeiro. No fim de tudo dormir. No fim de quê? Devo me concentrar nestes versos, não necessariamente entender, deixar que eles me tomem, despersonalizar-me. No fim de quê? No fim do que tudo parece ser. E o que é que tudo me parece ser? Um vazio cheio de pequenos momentos vazios. Mas aquilo que me parece não essencialmente o é. Sacudiu a cabeça como para afastar a melancolia daquelas reflexões. Não há que se servir ao leitor um prato frio de angústias existenciais, isso é coisa que todos têm de sobra, é preciso dar ilusões, a possibilidade de identificação com um dos personagens, comovê-los. Não foi uma boa escolha a citação. Apagou-a. Não levantou, o livro de Pessoa estava ao alcance da mão, abriu-o, página 158, Caeiro: “... Que me importam a mim os homens. E o que sofrem ou supõem que sofrem?” Não, esta não me serve. A mim os homens importam muito e o que sofrem e sentem deve ser a essência de qualquer boa obra. Lembrou-se, não precisou procurar no livro, da Tabacaria: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Fechou o livro. Quatro gotas de adoçante na xícara. Dois dedos de café morno. Outro cigarro. A tela alva refletindo seu rosto.
Sentiu fome, e, como se sabe, o estômago precede a literatura, as necessidades básicas da sobrevivência ao prazer estético. Esquentou o resto de feijão que sobrara da véspera, fritou dois bifes, bebeu cerveja. Sei que me dará sono, melhor assim, durmo o resto do dia. Adiou para a noite uma nova tentativa. Na cama, a cabeça cheia de idéias, o sono não veio. Voltar ou não ao micro? Melhor ter primeiro a trama bem concebida e, mais importante, por onde começar. Nunca fora um observador arguto, desses que retêm cada aspecto da paisagem, da indumentária das pessoas, dos gestos, das inflexões vocálicas que podem variar de uma região para outra, dos aromas, principalmente dos aromas que tanto contribuem para enriquecer os textos, da vegetação, ele que mal sabe distinguir entre uma rosa e um hibisco. Ligou a televisão. Em todos os canais o mesmo péssimo programa. Desligou. Bebeu outra cerveja, a cada dois copos um cigarro. Francamente, estou convencido que não tenho um grama de imaginação. Decidiu sepultar definitivamente o projeto de escrever obras-primas, ligou o rádio, Caetano Veloso cantava “Outras Palavras”. Eu não as tenho. Nenhuma palavra. Nenhuma história que valha a pena contar. Fechou o editor de texto. Desligou o computador. Desmanchou a cortina improvisada e foi tomar sol na varanda. O sol se pondo atrás das montanhas, o céu tinto de todos os tons que se pode obter na mistura do amarelo com o vermelho, um pequeno avião decolando. Hoje é sábado, não esperava que houvesse strip-tease, mas lá estava ela, ainda mais bela à luz do crepúsculo e hoje, diferente dos outros dias, ela não se contentou com a dança voluptuosa, masturbou-se em pé, no meio do quarto, o único local de onde podia se exibir inteira. Não restou dúvida, ela o via e sentia prazer em ser admirada, em provocar a libido dele. Quando escureceu, o computador continuou desligado e o candidato a escritor, completamente esquecido dos seus projetos literários, conjeturava se valia ou não a pena tentar uma aproximação com a garota do terceiro andar.



Fred Matos é autor do livro de contos Melhor que a encomenda (FUNCEB, EGBA, Selo Letras da Bahia, 2006). Foto de jan_zamoyski retirada do Flickr.

POEMA DE ILDÁSIO TAVARES







Que fará o favor que vós não dais
Quando o vosso desprezo torna a vida?
Luis de Camões






Quando me condenaste ao exílio, amiga
seqüestrando de mim a tua imagem,
restou-me a dor por esperança, aragem
que o coração, por ilusão, abriga.
Julgaste. Sentenciaste. A alma mendiga
vagou (pelo relento da paisagem)
esfarrapadamente na friagem
quando me condenaste ao exílio, amiga.
Não obstante, eu te quero ainda mais
e o teu desdém me atrai e tem-me preso,
barco que o vento traz de volta ao cais.
Minha inimiga, se arde assim meu peito
quando é só o desprezo que me dás,
será o sol se tu me dás teu leito.




Ildásio Tavares fez Letras na UFBA, Mestrado na Southern Illinois University, Doutorado na UFRJ, Pós-Doutorado na Universidade de Lisboa. É poeta, ficcionista, cronista, tradutor, compositor, especialista em Ernest Hemingway e em Camões. Um de seus títulos mais recentes é O Domador de Mulheres, da Imago Editora, 2003.

sábado, 26 de julho de 2008

O TAL UNIVERSO PARALELO





Gláucia Lemos




De vez em quando ficam em moda determinados assuntos. Aparecem líderes, quando é o caso, ou os donos da verdade, quando se trata de descobertas,. Em conseqüência crescem facções, quem é a favor, quem é contra, quem acredita quem nega, quem não está nem aí.
Foi assim anos atrás, quando alguém ouviu, ou leu, a respeito do universo paralelo, e o assunto virou até música de Gil. Sei quase nada sobre o assunto, somente - resumindo – que seriam doublés de cada pessoa, que existiriam em uma outra dimensão, portando as mesmas características nossas, isto é, dos que vivem aqui nesta nossa dimensão, no nosso mundo material. Sou pessoa de credulidade muito rala, a quem qualquer coisa não convence facilmente, por isso nunca me interessei em me inteirar com profundidade. E mais não sei.
Os fatos da vida vão se juntando, nossos, como dos nossos circunstantes, e lá um dia a gente se pega à toa, sem propósito, matutando sobre eles. Vamos juntando coisas e quase sem querer, como quem junta peças de jogo de armar, vamos tirando conclusões, às vezes lógicas, às vezes hipotéticas e até fantasiosas.
É assim que estou acreditando que todos nós – ou pelo menos razoável maioria – temos o nosso universo paralelo. Mas não pensem que aderi à teoria do duplo – para mim bastante improvável. Um universo aqui mesmo nesta nossa dimensão material suficientemente pragmática que é a nossa realidade. Será o universo pessoal, privado, oculto, no qual vivemos paralelamente ao universo social do qual participam familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, enfim todos com os quais socialmente participamos da existência, inclusive os nossos mais íntimos.
Vejamos: Quem não tem, no caminhar da existência, um fato ou um ato guardado lá no escaninho mais estreito da memória, ou do coração, não importa há quanto tempo, que não abre para ninguém? Pode ser um fato inocente, até que não passaria de bizarro, ou mais grave e até criminoso que macularia a dignidade. Uma gafe em local inconveniente, um escapar de um arroto em público ou em presença cerimoniosa, uma infidelidade amorosa, uma traição a amigo, uma mentira injustificável, um amor impossível e condenável que não se esqueceu? Este conteúdo que não se revela, no entanto não há tempo que o apague - porque já diz o ditado que palavra dita e pancada dada nem Deus tira - causaria constrangimento sendo conhecido, ou condenaria às labaredas do inferno segundo o arbítrio dos justos. Este conteúdo permanece no nosso universo que cá está paralelo ao universo social do nosso cotidiano.
Sabemos de pessoas, casais, que um dia se conheceram em circunstâncias normais, e sem a intervenção da vontade, de mera conversa se identificaram como se houvera anterior entrosamento, o sentimento se fazendo mais profundo que a fugacidade da paixão, ou a embriaguez do encantamento. E daí nunca mais foi possível se separarem. Quem entende dos mistérios que transitam entre uma mulher e um homem, quando uma verdade se põe entre os dois? Solidificou-se um sentimento que socialmente seria condenável, por haver implicações anteriores. Separam-se, mas permanecem um na vida do outro em silêncio, e nem sob suplício chinês o revelariam a quem quer que fosse. Esse amor está vivendo no universo paralelo dessas pessoas.
Ou não se separam e optam por vivê-lo perigosamente, como quem furta a própria felicidade, usufruindo outra vida, ao lado da vida social que continuam mantendo, e que é a que todos conhecem. Quem não presenciou ou soube de alguns quadros semelhantes? E esse é só um exemplo entre muitos, por ser o mais comum, de vidas que pulsam em um universo paralelo, o do segredo da transgressão. Ninguém vê essa realidade, mas ela existe, nesse universo inviolável que todos temos.
Estou convencida de que o universo paralelo existe, no qual não temos um duplo nos representando, somos nós próprios, unos e indivisíveis, vivendo as circunstâncias inevitáveis que nos colhem, para o bem ou para o mal.



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Mais de 20 títulos publicados e vários prêmios fazem parte de sua carreira literária. Foto de Juan Pablo, retirada do Flickr.

CONVITE


quinta-feira, 24 de julho de 2008

N. KAZANTZAKIS por G. DAMULAKIS







HERÓIS NIILISTAS
(sobre a filosofia de Nikos Kazantzakis: "Não creio em nada. Não espero nada. Sou livre")



Em Ascese está o panteão de heróis de Nikos Kazantzakis. Parece uma afirmação radical e apressada mas não é. O livro editado pela Ática, Ascese, com introdução e tradução direta do grego por José Paulo Paes, traz o subtítulo de Os Salvadores de Deus. O que se pode concluir da leitura é que, desde logo, o grande escritor grego formou sua visão de mundo ao ponto de exibir, tanto na vida quanto na obra, a filosofia que aceita a vida apesar de sabê-la breve luz entre os dois abismos de trevas e, ainda assim, prega a luta para transformar a matéria através da criação num ato heróico, visando a ação como única forma de suportar a vida. Falando de heróis, fixação de Nikos, que os perseguia mundo afora, podemos enumerá-los e encontrá-los em sua vasta produção sempre fiéis à doutrina plasmada em Ascese.
Kazantzakis viveu grande parte dos seus 74 anos pelo mundo e, nos vários países em que esteve, conheceu de perto os lugares onde haviam vivido santos, místicos, escritores. No Egito, foi até o mosteiro grego-ortodoxo do Monte Sinai. Na Espanha, esteve em Toledo de S. João da Cruz e em Ávila de Santa Teresa, enquanto na Itália foi à Assis de S. Francisco, de quem escreveu uma biografia, O pobre de Deus. Seu livro de viagem, Do Monte Sinai à Ilha de Vênus, apresenta, então, ressonância de suas idéias elaboradas talvez desde os retiros espirituais em mosteiros do Monte Atos e da ilha de Siphnos. Hoje, quem quiser fazer o mesmo que Kazantzakis, ao visitar a casa onde Nietzsche nasceu em Naumburg, pode ir ao Museu Histórico de Creta,onde uma réplica do gabinete do escritor guarda sua mesa de trabalho, sua biblioteca pessoal, além de objetos e fotografias, edições originais de seus livros e as traduções para várias línguas. Em Herakleíon, Creta, orgulhosa de seu filho, guarda o túmulo do escritor com o seguinte auto-epitáfio, mais uma vez à sua filosofia: “Não creio em nada. Não espero nada. Sou livre.”
Uma curiosidade: o sufixo dos sobrenomes gregos pode ter referência ao local de origem; no caso, o sufixo -akis remete às famílias de Creta.
É no livro que estou focando agora, Ascese, que encontro o espírito dos personagens de Kazantzakis: a consciência de que se está prestes a morrer a cada instante que se verifica em Zorba, de Zorba, o grego; o niilismo heróico do Padre Yanaros de Os Irmãos Inimigos e do Padre Fótis de Cristo Recrucificado. O que se acha plasmado sempre é a certeza de que a vida é uma sombra vazia, que somos nós que devemos agir para preenchê-la com virtude e com o coração livre de deuses e esperanças, pois não há antes nem depois. Assim é que no nosso dicionário Aurélio, ascese quer dizer “exercício prático que leva à efetiva realização da virtude, à plenitude da vida moral”. A palavra áskesis, do grego antigo, designa qualquer exercício ou treinamento com a finalidade determinada de adquirir pleno domínio ou, melhor dizendo, maestria. A tradição judaico-cristã acrescenta um fator de raiz grega, passando do sentido de elevação do espírito, via conscientização da inutilidade das ilusões, para um sentido mais derrotista, carregando na nota da modernidade quanto à renúncia. A ascese de Nikos é vista com base em sua origem grega, ainda que o budismo e o cristianismo tenham deitado suas gotas, mas não há uma pregação de doutrina nem o despertar de algum deus redentor; pelo contrário, há a morte de Deus, o que está de acordo com Nietzsche e o Zaratustra, donde o rótulo de niilista.
Através do estudo introdutório de José Paulo Paes para acompanhar sua tradução direta do grego do livro de Kazantzakis, ficamos sabendo mais sobre a obra. Para José Paulo, o cerne de Ascese está no epitáfio do escritor, supracitado neste texto, que inclui dois “nada”, traduzindo o espírito niilista do credo. E lembra as três negativas de Górgias, sofista grego (c.480 — c.375): nada existe ; mesmo que existisse, não poderia ser conhecido; mesmo que pudesse ser conhecido, não poderia ser comunicado. Além disso, o budismo indiano - admiração de Nikos pela escola Satyasiddhi - é uma negação também ao rezar que “nem o eu nem os dharmas (os elementos da vida) são reais”. Portanto, o objetivo em Ascese é incitar o leitor a dizer que não existe nada, que matéria e mente são dois fantasmas inexistentes, o que, ao fim e ao cabo, é a negatividade mesma e absoluta do budismo Satyasiddhi e o niilismo de Górgias. Enfim, a idéia-chave evidencia um Deus imanente no homem, não exterior nem transcendente a ele; daí não haver um Deus que nos irá salvar, ou seja, nós salvaremos Deus lutando, criando e transfigurando a matéria em espírito.
Kazantzakis publicou Ascese primeiramente em dois números sucessivos da revista Renascença, de Atenas, em 1927, e, depois, em 1945, em livro com o texto anterior revisto e ampliado em mais um capítulo. Os parágrafos são breves, havendo quem os chame de versículos bíblicos, no que, segundo José Paulo Paes, se verifica “pelo ritmo largo mas bem marcado de sua dicção, pela repetitividade de palavras e expressões, pela freqüência de metáforas e figuras para dar corpo a idéias abstratas”. O tradutor mostra ainda que o “andamento versicular, sua passionalidade de tom e as inflexões admonitórias” aproximam a prosa de Ascese da prosa poética do Assim falava Zaratustra de Nietzsche. Aqui cabe salientar que não só no nível da linguagem, porém e sobretudo no nível da doutrina que propugna, ambas as obras são rotuladas de “niilismo heróico”, como destaca José Paulo. Tudo no livro está a serviço de uma religiosidade sem deus, para definir a vida como um breve intervalo de luz entre dois negros abismos do Nada de onde viemos e para o qual voltaremos, almejando dessa forma atingir uma visão que o autor chamou de “relance cretense”, em homenagem à sua ilha natal, “onde Oriente e Ocidente se encontram na síntese do dionisíaco com o apolíneo”.
O trabalho de verter Ascese para nossa língua, trabalho sempre esmerado de José Paulo Paes, tradutor incansável de jóias literárias, é o primeiro deste precioso livro de Nikos, que vem acrescentar mais à obra já traduzida do grande romancista, poeta e dramaturgo grego, autor de vasta produção literária, com 11 romances, 21 peças de teatro em verso, 9 livros de viagem, 3 ensaios filosóficos, grande número de narrativas para crianças, uma história de literatura russa e três realizações poéticas, a saber: Askitikí, que é a Ascese da qual se tratou aqui, a Odisséia — uma continuação moderna, o maior poema grego da modernidade, e Tertzínas ou Terças rimas. Também tradutor profissional, Kazantzakis verteu para o demótico livros de Nietzsche, Bergson, William James, Darwin, Dante, Goethe e mais: A Ilíada e A Odisséia foram trazidas para o grego moderno por Nikos, que lutou ardorosamente pela adoção integral do demótico contra os purismos da katharévousa.
Lutar é agir e é o que ensina a Ascese de Nikos Kazantzakis, um grego que marcou presença na literatura do século XX tão farto em lutas, que traduzem o “susto ao absurdo do ser”, nas palavras do próprio escritor mais uma vez apresentado na língua portuguesa pela espetacular erudição e capacidade de tradução de José Paulo Paes.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

COMO UM ANJO

Gláucia Lemos




Onde andará o rei que tocou minha sina,
onde andará o anjo que recolheu as asas
e teceu uma trama em meu sossego?

Não enlacei um fio para prender seus pés,
não levantei porteira para guardar seu flanco.
Só lhe entreguei a jarra para matar a sede.
Só aceitei seus pés
em peso no meu ombro.

Só recebi suas asas ganhando o meu espaço,
e lhe abri meus braços
para voar seu vôo.

Entrou na minha sala
quando a ceia era servida,
trocou as alpercatas
e partiu.



Gláucia Lemos é poeta, ficcionista e cronista. Tem mais de duas dezenas de títulos publicados e é bastante premiada.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Hugh Grant apaixonante

Somos como um mosaico. Meu lado pop é fã incondicional de Hugh Grant: apaixonante! Nestas imagens ele dança... resta suspirar! A cena Hugh Grant dançando é do filme Simplesmente Amor. Mais pop, impossível. Ainda assim, delicioso.

ELA É ASSIM

Gerana Damulakis


Não é necessário fazer isso, contudo farei porque, do contrário, irei morrer de raiva. E o que farei a seguir será contar como ela é.
Ela já amanhece pensando em coisas terríveis, catástrofes pessoais e descobertas de doenças raras. Vai direto para a cozinha e toma um copo de leite desnatado, gelado. Está toda vestida com um pijama de mangas longas já que dorme com o ar-condicionado ligado. Só então passa para o banheiro e escova os dentes e lava o rosto e se olha: toma sempre um susto diante da constatação do inchaço nas pálpebras inferiores, cada vez mais uma evidência dos anos que se passaram implacáveis. Feita a rotina, ela continua com outra, passando a rezar a oração de todos os dias, que acaba por acalmá-la um pouco. Volta para a cozinha, desta vez para tomar um café preto sem açúcar, que ela mesma prepara bem forte, e comer um pão de sal com queijo de Minas. Daí em diante há a questão sobre o que fazer. Ir ao banco, estudar o mercado financeiro, ler mais romances. A vida está assim resumida.
Os prazeres mais freqüentes entre as mulheres, tais como ir ao shopping e lá ficar até conseguir gastar o que têm e o que não têm, ir à casa de uma amiga para fofocar sobre outra amiga, ou mesmo entrar num curso de inglês sem objetivo algum já que não acrescentará nada ao currículo inexistente, nada de uma lista assim a atrai. Ela não é assim.
Ela acha que o único dinheiro bem gasto é o que se paga em troca de livros e o tempo bem passado é o que se perde, ou se ganha, lendo esses livros. Isto porque ela é como um barril cheio de vinho que jamais foi gotejado, nem mesmo para os enólogos provarem. Ela passou muito tempo lendo desde a infância e isto se agravou na adolescência e mais ainda na vida adulta. Algum período se mostrou produtivo e ela colocou bastante texto em cadernos e cadernos grandes para depois jogar tudo no lixo.
Cada instante sem leitura é um instante para tecer tragédias pessoais. Ela antecipa os inesperados golpes do destino, como quem vive em luta com o acaso. Só que o acaso não avisa, ou não seria acaso. Um lance de dados jamais abolirá o acaso, disse Mallarmé. O pai dela morria de medo do acaso, e, por conta do medo, desenvolveu uma série de superstições, de resto algo bem típico dos que nasceram na primeira metade do século XX: de nada adiantou, o acaso o pegou de jeito. Ela ficou tomada por esse medo, sem lembrar que mesmo o acaso pode levar uma lufada da sorte ou do azar, não deixando de ser exatamente o que se chama de sorte e o que se chama de azar. Quanto às superstições, não as desenvolveu, preferiu ir no certo e contar logo com a destruição antes que seja anunciada.
E cada momento sem leitura, sem busca por doenças, sem previsão de tempestades prováveis e iminentes, é um momento de elaboração de algum livro. Houve tempo que era a poesia, seguiu-se o conto, agora é o romance. Ela tece romances inteiros na mente e nunca os escreve. Passou a cultivar um olhar crítico sobre o texto dos outros e sempre encontra pontos positivos porque o simples fato daquelas pessoas terem conseguido colocar na página em branco algumas linhas, para ela, já é um fator que pede aplausos.
Assim foram elaborados verdadeiros tesouros da literatura impossível; impossível por não existir fora da cabeça de alguém. E para ir mais longe, é certo perguntar nesta altura a razão que levou tal criatura a escapulir dos chamados da literatura. Porém, a coisa se complica muito se eu resolver entrar na seara da psicologia que tenta desbravar os motivos que desviam o caminho de um destino, mudam a rota da seta antes que ela atinja seu derradeiro lugar, seja o alvo, seja o chão.
Passado o dia sem graça, ou cheio de expectativas quanto às catástrofes, ela mergulha nos romances, entra em êxtase com achados poéticos, com metáforas incomuns e inteligentes, com enredos fascinantes. Cada escritor descoberto e enaltecido por ela é um tanto ela própria, ou guarda um tanto do que poderia ter sido e que não foi, como reza um verso brilhante do grande Manuel Bandeira. Há épocas em que ela está segura de que pode viver assim, mas há épocas insuportáveis: é muita angústia, muita aflição. Um imaginário tão povoado e tão tomado pela realidade e pela ficção se assemelha a uma represa no período das chuvas intensas: um dia ela irá transbordar. E eu não quero ficar tão perto.
É verdade que não seria necessário fazer isso, contar as mazelas dela aqui, mas ela está tão entranhada em mim, tão próxima que, de alguma maneira, preciso deixá-la sair um pouco de dentro de meu corpo para não morrer em breve. Talvez seja assim como assassinar uma parte de si mesmo, o que, às vezes, se faz preciso. Assassinando-a, é de se esperar que prevaleça alguma parte mais sadia. Penso que sou melhor do que ela, eu tenho qualidades que ela não pode sequer almejar. Então, digo que ela é assim. E eu não a suporto mais.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

AO AMIGO DESCONHECIDO














Prezada G. D.,

Lago Júnior


Quero ser o que escrevo.
Consubstanciar-me-se.
Afinal, não passo de um objeto de estudo?
Ora, bolas!
Eu reinvento meu minuto, cada um não reinventa o seu?!

Entre os dedos - literalmente
falando - guardo e consumo
um incenso de alfazema.
Cheiro de simplicidade.
Logo eu (eu... eu... ) um complexo anônimo;
um cavalo de troças, um vilão bonzinho.
(Argh.) Eu queria sorrir muito.
Mas nem sempre é singular.






Do livro Ao amigo desconhecido, que Lago Júnior lançará dia 31/07.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

SONETO DO AMOR INDEFINIDO


Aramis Ribeiro Costa

Amor não se define - é mágica e loucura
Encontro e desencontro e encanto conquistado
É cegueira total e olhar que tudo apura
E tem em tal contraste o fogo renovado.

Indefinido amor, impulso incontrolado
Que se refaz de espera e tudo crê e jura
Que arde e consome e mata o próprio ser amado
Amor que se acomoda, amor que se aventura.

Amor que nasce morto e ainda assim existe
Amor que se desgasta em vão e se maltrata
Amor que tudo pode e deve e exige e serve!

Amor - encantamento que afinal resiste
A esperança maior, a sensação mais grata.
Indefinido amor: que o sonho te conserve!



Soneto de Espelho Partido - Sonetos Escolhidos 1971-1996 (Funceb, 1996).

quarta-feira, 16 de julho de 2008

SONETO DO DEFINIDO AMOR


Aramis Ribeiro Costa



Melhor amor se faz de coisas certas
Que de sonhares vãos, imaginados
Que os sonhos todos morrem, se guardados
E portas de sonhar são sempre abertas.

Amor que se detém nas descobertas
E não nos desencontros isolados
É este o definido amor dos fados
O amor que acerta as vidas mais incertas.

Amor... amor... talvez um firmamento
De estrelas e cometas aloucados...
Talvez um desvairado sentimento.

Melhor amor se faz de coisas veras
Amor de encontros, gostos e cuidados
Amor de estradas longas e sinceras.



Soneto retirado de Espelho Partido - Sonetos Escolhidos - 1971-1996 (Funceb, 1996).

DE CRIATURA A CRIADORA, MULHER, PERSONAGEM (SONHO) DE SI MESMA

Gerana Damulakis
(sobre a literatura escrita por mulheres ao longo do tempo)





De criatura a criadora, a mulher percorreu um longo caminho de tributos e punições. E no início eram Adão e Lilith. O mito de Lilith é bastante explorado na literatura, William Faulkner e Mac Donald foram dois escritores que se encantaram com toda a gama de significações encerrada nesta lenda. Criados por Deus em condições de igualdade, Adão e Lilith viviam juntos até Lilith cometer o primeiro pecado – que não foi a mordida da maçã – ao proferir o nome d’Ele. Expulsa do paraíso graças aos seus excessos, afoiteza e galhardia, e suas inquietações, Lilith passou a simbolizar a desventura, o mal, o diabólico exagero.
Adão ficou só, mas não sustentou a solidão por muito tempo e rogou a Ele uma outra mulher. Porém dessa vez havia um preço a ser pago: uma parte de seu corpo. É sintomático desde logo o que resolveu a questão: de Adão não foi retirado nada dos olhos ou ouvidos, pois a mulher não deveria ver ou ouvir melhor que ele; nada a tirar da cabeça, do contrário, ele iria correr risco de ter um mulher que pensasse; também nada havia a retirar de suas pernas para que ela não corresse mais do que ele. Deus sugeriu, então, o osso curvo que chamamos costela. É um osso que não faz falta, além de ter a vantagem dessa curvatura que figura tão bem o sempre-curvado-a-ele.
A pequena história conta, em síntese, o papel da mulher, o que lhe coube, e daí vem a luta para reverter o conto e alcançar, ainda que na contramão, o destemor de Lilith. Na literatura escrita por mulheres se conta outra vez a lenda da primeira desafiadora: no início foi Safo, igual aos seus amigos poetas, ou mesmo mais ousada tal qual Lilith. Há ainda um escritora importante na hipótese de Harold Bloom, que foi capaz de propor uma polêmica quando, no O Livro de J. , que levanta "o mistério J." e a autoria original de trechos como os da criação de Adão, Noé e o dilúvio, José e seus irmãos e o episódio do Êxodo, do Velho Testamento dos cristãos. J. teria sido uma mulher, uma escritora da estatura de um Homero ou de um Shakespeare.
Mas, antes do século XVIII, o que encontramos é uma ou outra voz feminina, seja Sor Juana Inés de la Cruz, do México, ainda nos 600, seja a fama das Cartas de Amor de Mariana Alcoforado, escritas três séculos atrás. O que se vê, na verdade, é a mulher se debatendo com uma linguagem proibida. Emily Dickinson enfatiza o “sacrifício da mulher associado à fala considerada ilegítima e à sexualidade considerada subterrânea”. Contudo, as Novas Cartas Portuguesas já comprovavam o desassossego por originar uma linguagem aceitável para o gênero feminino. No princípio do século XVIII, as mulheres começaram a escrever e publicar expressivamente tanto no continente europeu como nas Américas, ainda que o palavreado refletisse a índole feminina firmada na rainha do lar. Apesar disso, a outra faceta virtualizava o mal e no instante em que se dá a autoria, a mulher criadora revelada pula fora da vida privada e, intrusa, faz da atividade cultural, que não lhe é própria, passagem para a simbolização da bruxa malvada. Seguindo essa trilha de condenação, a história e o hábito estéticos determinam a dádiva ou a faculdade de criação artística, como algo especialmente masculino, o que não causa admiração, afinal é a figura Paterna, o criador, o determinador.
Vê-se que pertence a mulher o papel alegórico, diabólico ou celestial, enfim, intercessora entre o criador, artista pois, e o mistério, doutrinando-o para a perversão e/ou lançando-o ao estado de candura. Em suma: musa. Essa posição diferenciada da mulher em relação ao homem permanece até o século XX.
Basta olhar os ideais cristãos da Idade Média apartando o sexo, o gênero, dos demais valores espirituais ou sociais, e, se depois a Inquisição rotula a mulher como emissária do demônio, enviada com o intuito de tentar o homem, então, resta olhar a Renascença, quando um “certo casamento” parece mais harmonioso.
Dando um salto direto para o Romantismo, vemos uma elevação da emoção e dos sentimentos e, com isso, a mulher é enaltecida para ser digna de contemplação. Estamos, outra vez, no século XX porque a conclusão fica a cargo das teorias psicanalíticas e das pesquisas científicas, responsáveis pela mudança relevante da visão humana de gênero, igualando os sexos e seus poderes.
A literatura acompanhou o desenrolar da luta dos gêneros: longe do tempo em que, cercada de lendas amorosas que aumentavam sua fama, a poeta Safo celebrizou os cantos de amor às suas ninfas, a autora obriga-se a criar contradizendo o modelo nascido do protótipo através de personagens representativas de sua contida, represada e acobertada aspiração, de forma a conseguir arremessar os ímpetos revolucionários e a energia do desespero em imagens excêntricas ou entusiasmadas, desfiguradas ou patéticas. É como se o próprio ato de escrever criasse o sujeito insano, “a figura da louca”. Cecília Meireles diz: “Sentada estava a Rainha, sentada em sua loucura./ Que sombras iam passando,/ naquela memória escura?
O interessante é que no final dos 800 está evidente a quantidade de alterações nos temas e nas metáforas, remarcando, portanto, os papéis sexuais devido à necessidade de uma determinação dos gêneros e dado o pesar intrínseco na palavra “fim”, de fim de século, e toda a implicação que essa expressão carrega e produz como convulsão de conceitos.
Acontece a incursão feminina no mundo dos intelectuais, levantando discursos e discussões: é o tempo da guerra dos sexos.
Aqui e ali, uma Francisca Júlia (1874 – 1920) seguindo as diretrizes do realismo, uma Rosália de Castro ( 1837 – 1885), na Espanha, marcando seu nome com eternas letras femininas na poesia. Não resta dúvida de que a prosa foi mais fecunda: na ficção, desde 1678, Madame de Lafayette aparece com La Princesse de Clèves. Impossível não mencionar Madame de Stäel (1766 / 1817), e mais além Charlotte e EmilyBrontë, nos 800, enquanto na Inglaterra, Ann Radcliffe, por exemplo, torna-se a escritora mais popular e mais bem paga no século XVIII; também Mary Shelley, já no Romantismo, cria o mito eterno de Frankentein.
Mas, estamos mirando especialmente a poesia e, para tanto, é indispensável olhar a poeta romântica Emily Dickinson, americana que viveu de 1830 até 1886, tendo uma corrente de sucessores que testemunham sua importância. A pesquisa evidencia a fertilidade dos 800, chegando à contemporaneidade em todo o mundo com nomes como Elizabeth Barret Browning, nascida e 1806, consagrada pelos seus Sonnets From the Portugueses; sem esquecer Christina Rossetti, nascida em 1830, em Londres, irmã mais moça de Dante Gabriel Rossetti.
Na poesia norte-americana, encontramos Hilda Doolittle, nomeada H.D., contemporânea de Pound e William Carlos Williamns, pregadora dos "imagistas” e da “ausência de emoção”, enquanto Mariane Moore perseguia a exatidão com tanto radicalismo que ficou sendo rotulada de poeta cerebral e, de resto, fez uma poesia das mais fluentes na época com seus animais chamados “antipoéticos”, que serviam de isca para pegar o flagrante da verdadeira poesia e, assim “Poetry”, sua ars poética, consta de toda antologia publicada em qualquer parte do mundo.
Ainda, Edna St. Vicent Millay, Prêmio Pultizer, em 1923, ou Elizabeth Bishop, que nos é cara pois traduziu nossos poetas, por exemplo, Drummond. Sem deixar de mencionar Anne Sexton, também Prêmio Pultizer, ombro a ombro com Sylvia Plath devido a nota nova que ambas se preocupam em imprimir à poesia escrita por mulheres, de saída, diferente da frieza de M. Moore, mostrando uma vontade firme de abrir espaços. Anne Sexton, norte-americana, nascida em 1928, morreu tragicamente, suicidando-se em 1974, o que sugere uma comparação com a sorte de Sylvia Plath: vidas sofridas e encantos sublimes, as mesmas inquietações, como em: “Auge”, de Plath:
A mulher está perfeita./ Morto,/ Seu corpo mostra um sorriso de satisfação,/ A ilusão de uma necessidade grega/ Flui pela dobras de sua toga,/ Nus, seus pés/ Parecem dizer:/ Fomos tão longe, é o fim. "
No Brasil, Henriqueta Lisboa, vinda dos anos 30 do século XX, amadurece junto com o nosso Modernismo, e Cecília Meireles desponta, em 1945, com Mar Absoluto. Ainda na nossa língua, Sophia de Mello Breyner Andersen, em Portugal, é voz marcante sem se desfeminilizar. Em 1945, a poesia e a mulher são premiadas com o Nobel de Literatura através da chilena Gabriela Mistral por seu conjunto de obras: Croquis Mexicanos, Desolación, Ternura, Tala.
A poesia escrita por mulheres é fato reconhecido, nomes imortais estimulam ensaios e estudos. João Carlos Teixeira Gomes assinala no livro A Tempestade Engarrafada a convergência das poetas Alfonsina Storni e Florbela Espanca, baseada na paixão e na agonia. O ensaísta diz: “O recalque atávico, de clara conotação freudiana na sua expressão individual (...) denuncia as pressões desencadeadas por 20 séculos da repressão sexual vinda do bojo da concepção judaico-cristã do mundo, que ela (Storni) repele, numa veraz e voraz celebração do impulso erótico e da força dos instintos nos jogos amorosos”: "Pudiera ser que todo lo que en verso he sentido/ no fuera más que aquello que nunca pudo ser,/ no fuera más que algo vedado e reprimido/ de família en família, de mujer en mujer".
Esta é Alfonsina Storni, naturalizada argentina, colocando no modus faciendi da condição feminina a sensualidade sem hipocrisia, tal como fez sua contemporânea Florbela Espanca. Ambas, e isso lembra o outro paralelo linhas acima entre Plath e Sexton, resistem, bravas, quanto ao desejo do homem, daí o caminho da negação: “O amor dum homem? Terra tão pisada,/ Gota de chuva ao vento baloiçada.../ Um homem? – Quando eu sonho o amor dum Deus? ...”.
Já levantei, em outra ocasião, uma semelhança entre Florbela e a brasileira Gilka Machado, nascida um ano antes que Florbela. Gilka expõe na poesia a diferença entre as naturezas feminina e masculina, ao plasmar a verdade do sentimento machista que não traz culpa nem ânsia de amar, pois, na sociedade em que vivemos, este parece ser um pecado essencialmente feminino, herança legada pelo mito de Lilith e por Eva, desafiadoras das leis em nome do desejo.
Gilka for precursora na luta pelos direitos da mulher em alcançar as representações do desejo na poesia, isto é, “não mais um corpo marcado pelo a-menos, mas sim um corpo que pode assinalar a fonte de um novo discurso”. Verseja Gilka: “ Eu sinto que nasci para o pecado,/ se é pecado na Terra amar o Amor:/ anseios me atravessam, lado a lado,/ numa ternura que não posso expor”.
Vale a pena citar um outro tipo de luta das mulheres utilizando a palavra poética: luta mais árdua, luta vã, mas tentativa válida no texto sofrido de Anna Akhmatova (1889 / 1966), lírica tensa e ampla, expressando a amargura da mãe que teme pelo destino do filho e da pátria num momento histórico difícil na então União Soviética. Também Marina Tzvetaeva (1892 / 1941), de vida e destino trágicos, continua a nostalgia e a dor do romantismo que expressa a busca da pátria e do companheiro através da magia verbal e de certa “impostação de voz populista”.
A poesia escrita por mulheres, vista pelo crítico Wilson Martins, marca a distância percorrida pelo feminismo literário, pois a leitura simultânea de uma poeta atual e de uma outra deixa evidente o caminho intelectual, emocional e social efetuado pelo feminismo literário nos últimos 80 anos. O ponto negativo reside na redução da poesia a lugares-comuns e ladainhas obsessivas, desmonetizando a temática do desejo, tanto mais que, para Wilson Martins, ao tratamento literário dado por um Gilka Machado, por exemplo e para ficarmos com uma poeta da qual já falamos, sucede um tratamento filosófico, descritivo e referencial, de resto, um tratamento antipoético.
A responsabilidade de tudo isso fica por conta das tentações do sucesso de escândalo e, assim, Gilka chega a mudar para “Cio” o título do belo soneto que se intitulava “Noturnos”, na edição original de seu Cristais Partidos.
O crítico paranaense mostra com segurança como a temática sofreu um desgaste graças aos sobrelanços inevitáveis da imitação que causou a condenação na medida em que o feminismo literário passou a ocupar o espaço do homem, usando o palavrão, a emancipação sexual e a obrigação do trabalho fora de casa.
Não há como fugir dessa realidade que reflete o extremo alcançado pela nova mulher. O preço pago por tal geração foi alto. Ana Cristina César deixou isso claro na sua poesia. Ela escreveu e pagou o valor: “ Pergunto aqui, meus senhores/ Quem é a loura donzela? Que se chama Ana Cristina? E que se diz ser alguém? É um fenômeno mor/ ou um lapso sutil? “.
Passados os lapsos, enganos, exageros, bravatas e, menos a Lilith do folclore assírico-babilônico, fantasma diabólico, para ser mais um gênero próprio e diferenciado, a mulher que escreve hoje luta com palavras na sempre “luta mais vã”, processando uma das maiores utopias da literatura que é, como ressaltou Laforgue, a conversão do autor ou autora, em personagem de si mesmo.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

ESSE PRAZER SEM NOME






Gláucia Lemos




Apago a luz do teto, deixo o abajur quase em penumbra, e fecho os olhos.
A cabeça permanece a trabalhar no mesmo ritmo em que passou todas as horas do dia. Percebo que na agitação em que a tenho, não há cristão que repouse, como dizia minha mãe. Falta música. Música que me possua e me relaxe. O remédio santo e o sublime prazer. Uma faixa de Louis Armstrong vai me tomar todo sentimento e dissipar a tempestade, o que nunca é difícil escolher.
What did I do to be so, pouco a pouco me vai envolvendo. Sem demora o som do trompete modula, e já não sou a mesma. Divino Armstrong.
Em alguma encarnação fui uma negra em New Orleans, freqüentando os cafés nos quais os blues imperavam absolutos. Em um ângulo qualquer do salão, um negro dedilhava uma guitarra chorosa, tirando o jazz, repetitivo e monocórdio, no improviso do lamento a prantear a infância ao abandono, uma mãe embriagada, um pai morto na linha do trem, e etecetera, etecetera e tal. Ninguém lhe concedia atenção, pois qualquer um outro ali estaria, fazendo a mesma coisa, e ninguém lhe daria atenção. O quadro fazia parte do contexto.
Em uma plataforma um sax-tenor, um cover de B.B.King, animava o salão, permanecendo por exaustivas horas a se encantar na busca à blue note fugidia.
O som de Armstrong me penetra. Eu tinha um cansaço, tenho agora a magia da música que me estraçalha o coração e a alma, na voz rascante, e me convence de que jamais saberei expressar o que se passa em mim quando me entrego à possessão de um blue. Eis um prazer sem nome. Sinto desfalcado o meu vocabulário, meu idioma carente de palavras novas, alguma especialmente moldada ao sentimento no qual eu, inteira, me envolvo, desfeita e misturada - fisicamente misturada - como uma massa amolecida e amalgamada aos sons, à melodia e à harmonia, aos acordes e aos arpejos. Sinto-me despersonalizada, deixo inteiramente de ser, até o agudo final, limpo e declinante, do trompete que se perde quase sem sentirmos, como em um gemido macio que arrematasse um abraço amoroso.
Em algum tempo perdido na eternidade – se eu tivesse suficiente credulidade para afirmar que vivemos diferentes tempos – fui plantadora de arroz, às margens do Mississipi, e entoei spirituals em templos anglicanos. Minha alma teria sido impregnada dessa cadência nostálgica, e dessa melancolia sensual que embala e comove. Teria sido amante de algum Louis Armstrong, ou abandonada por um Coleman Hawkins. Ou simplesmente teria sido glorificada por algum mero plantador de arroz das margens do Mississipi, que cantasse gospel nas igrejas, e freqüentasse os cafés escuros de New Orleans, como eu. Se assim eu tivesse sido. Se eu acreditasse na existência de outros tempos nos quais houvesse vivido e convivido.
Estou no meu tempo e no meu espaço, corre na minha seiva uma mistura ibérica de complexa definição, meu coração brasileiro o é cada vez mais. Sou amante de Armstrong com o amor amado nas faixas dos CDs. Jamais serei abandonada por Coleman Hawkins, obviamente, ele não se evadirá das faixas em que o tenho gravado. Quanto ao plantador de arroz, ainda não conheci nenhum, e pela ‘desadmiração’ que voto ao mandatário daquelas bandas, não tenho a menor intenção de ir a New Orleans nem a qualquer dos outros estados daquela União.
Estou novinha em folha, minha alma apaziguada, dormirei tranqüila. Amanhã talvez faça um belo dia de sol nesta minha cidade que amo.



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Tem mais de 20 títulos publicados e vários prêmios literários. Esta é mais uma crônica para um livro que nasceu aqui, neste blog. Foto de Louis Armstrong, por discoverblackheritage, retirada do Flickr.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

SE TU ME ESQUECES (If you forget me)

Voz de Madonna, cenas do clipe "The Power of Goodbye".


Pablo Neruda

Quero que saibas
uma coisa.

Tu já sabes o que é:
se olho
a lua de cristal, o ramo rubro
do lento outono em minha janela,
se toco
junto ao fogo
a implacável cinza
ou o enrugado corpo da madeira,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz, metais,
fossem pequenos barcos que navegam
para essas tuas ilhas que me aguardam.

Pois ora,
se pouco a pouco deixas de me amar,
de te amar, pouco a pouco, deixarei.

Se de repente
me esqueces,
não me procures,
já te esqueci também.

Se consideras longo e louco
o vento das bandeiras
que canta em minha vida
e te decides
a me deixar na margem
do coração no qual tenho raízes, pensa
que nesse dia
a essa hora
levantarei os braços
me nascerão raízes
procurando outra terra.

Porém,
se cada dia,
cada hora,
sentes que a mim estás destinada
com doçura implacável.
Se cada dia se ergue
uma flor a teus lábios me buscando,
ai, amor meu, ai minha,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga nem se esquece,
do teu amor, amada, o meu se nutre,
e enquanto vivas estará em teus braços
e sem sair dos meus.

Tradução de Thiago de Mello.

SUICIDA



















David Nobrega



Um dia quente, realmente muito quente.
Na mesa do café da manhã, ao lado das contas a pagar, sua carta de demissão. Sobre esse calhamaço, uma nota simples: "Cansei de viver. Desculpem-me pela covardia."
Resolveu se matar na noite anterior, após o jantar. Ela, que era seu ponto de equilíbrio jogou a aliança dentro de sua taça de vinho, dizendo simplesmente que amava a outro. Fazer o quê? Partiu deixando a chave e levando sua vida.
Pensou a noite toda na melhor maneira de se matar. Passou pelo enforcamento, pelo envenenamento e pelo tiro. Mas o medo de errar e ficar vivo e sequelado lhe fez desistir dessas idéias.
A melhor opção então, seria se atirar do alto do prédio onde trabalhara por tantos anos. Com seus 30 andares, não haveria nem tempo de alguém lhe prestar socorro. Pá, pum. Sem problemas futuros.
Subiu ao topo, deu uma última olhada ao horizonte poluído da cidade, sua cidade com quem tivera tantos amores e desentendimentos. E saltou...
Parecia um sonho irreal. Tanto tempo fazia que estava caindo, e mesmo assim não havia passado ainda pelas janelas do último andar. Uma queda em câmera lenta...
Quando finalmente passou pelo vigésimo nono andar, viu seu pai à janela. Seu pai, que fora seu ídolo até sua morte, aos 42 anos. Uma morte que desestabilizou a família e fez com que sua mãe fizesse das tripas o coração para poder manter seus três filhos. Hoje, todos formados, ela vive confortavelmente instalada, com todos os mimos possíveis. "Esqueci de escrever para ela"- lembrou-se, tarde infelizmente.
Deu um até breve para seu pai. Era bom saber que ele estava por ali, aguardando por ele.
A queda agora parecia mais rápida e, ao passar pelo vigésimo andar, da janela notou uma multidão lhe chamando. Amigos que ele estava deixando para trás. A turma do futebol e da cerveja. Os colegas de escritório. Uns, a quem ele não era muito chegado, aplaudiam sua atitude. Outros, os amigos mesmo, choravam, como se estivesse já morto.
Dali para frente, a cada andar que passava, mais rápida sua queda parecia. Em cada andar, um conhecido ou uma imagem de si próprio, como memórias, mas vividas. Era como se cada segundo fosse uma eternidade, onde ele podia ver sua vida refletida em vidros de janelas.
Ao chegar ao primeiro andar, o último antes do contato com o duro concreto da calçada, viu sua amada. Aquela mesma que ontem lhe disse que não o queria mais. Seus olhares se cruzaram e ele viu o horror estampado em seu rosto: "Sim, você é a causa disto"- disse. Foi a única vez que lhe deu vontade de chorar e gritar de ódio, de impotência.
O baque surdo que desmanchou seu corpo em fragmentos que nunca mais seriam um todo foi indolor. A única sensação foi de tristeza, pois da boca de sua amada ainda pode ouvir, distintamente: "Eu ainda te amo..."


David Nobrega criou e escreve nos blogs coletivos, pseduo-poemas ( http://www.pseudo-poemas.blogspot.com/) e no Canto dos contos ( http://contodecanto.blogspot.com/).Vai fazer uma exposição com suas fotos em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com poesias suas e de outros poetas convidados. Dia 19 de julho.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

RÉSTIA DE LUZ

Ildásio Tavares


Para Gerana



Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão barata (mas limpa e asseada)
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Resistir, quem havia de?

Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou até o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras de palhinha puídas; e a
bacia de louça cor de rosa em que te lavavas depois,
ocultando teu gesto,constrangida,
para não te banalizares – tua aura de
deusa profanada por uma intimidade prosaica.

Quanta vez este teu recato ante a promiscuidade
me excitou, te enlacei por detrás
e te trouxe de volta ao vendaval da cama!
Tu sempre resistias. Você é louco, menino? Ele chega
cedo do trabalho. Olhe aquela réstia de luz na persiana
que engatinha sorrateira a caminho da noite. Mas
resistias um resistir indeciso, querendo mesmo te
entregar, e desta vez com mais volúpia.

É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito envergonhado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num desses dias em que
sentimos a terra tremer embaixo de nós e até pensamos
que era o trem. La estava a réstia de luz que engatinhava
pela persiana, prestes a engendrar a noite.


Não sei se foi ele, se fui eu ou que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.
Faz bastante tempo que nos vimos.
Foi no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa, conversar.
Era um final de tarde. Tinhas pressa.
O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, rapaz, diga.


Eu tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor, cerzir retalhos do passado
como uma colcha de delírio.
Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.

Com um ar preocupado, consultaste
teu relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era outra
pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.





Este poema está no livro 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares - Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2006). O poeta dedicou-me o poema porque eu ouvi todas as modificações que ele fez ( e foram muitas) por vezes até altas madrugadas, quando ele telefonava por conta de uma nova solução. Valeu a pena, ganhei, em papel, todas as versões que o poema teve ao longo de sua feitura. E, assim, ele a mim foi dedicado.


Foto de Zé Eduardo, do Flickr.

A BAGAGEM DO VIAJANTE

Gerana Damulakis


(sobre a crônica de José Saramago)








Quem já leu os romances de José Saramago está acostumado com a alta qualidade literária de livros como Memorial do convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, Ensaio sobre a cegueira etc; daí que esse leitor pode pegar as crônicas do mesmo autor, pensando, claro!, em encontrar textos de muito boa qualidade também, mas sendo crônicas, pode ser que espere desde logo aquele “desleixo” — digamos assim — inerente à pressa com que se escreve o gênero dito menor da literatura. Ledo engano, vã espera. Saramago é sempre Saramago, seja qual o gênero que escreva. Não se lhe nota queda de qualidade, não se lhe aponta um texto aquém dele mesmo.
Mestre no relato de curto fôlego, José Saramago expressa-se com concisão nas suas crônicas, mantendo, durante todo o tempo da leitura, o interesse, como se estivesse conversando com os leitores de jornais. A crônica é uma prosa, nos dois sentidos; no sentido de gênero e no sentido de quem conversa — e aqui estamos diante, então, daquela faceta da crônica que fez o nosso Adroaldo Ribeiro Costa, cronista por 25 anos diariamente no jornal A Tarde, de Salvador, Bahia, intitular sua reunião de crônicas como Conversa de Esquina.
A ironia, um dos tropos da retórica, vê-se presente, como de resto em todo aficionado do gênero, para olhar o mundo de forma a redimir todos os leitores. Afinal, “crônicas, que são? Pretextos ou testemunhas?”, pergunta-nos Saramago. A resposta pode ser o que cada um espera que seja: o lugar onde o escritor pode falar por nós, quando usa um timbre que reivindica; o espaço da perplexidade ou da constatação; o momento de reflexão filosófica ao alcance de todos ou, enfim, um exemplo de uma tomada poética tirado agora, oportunamente, da coletânea de textos publicados no diário A Capital (1969) e no semanário Jornal do Fundão (1971-72), intitulada A Bagagem do Viajante ( Companhia das Letras, São Paulo,1996, 205 pp.):

"Por causa de tudo isto me veio uma grande vontade de chorar. Ninguém me via, e eu via o mundo todo. Foi então que jurei a mim mesmo não morrer nunca".

Portanto, parece ser simples preconceito o rótulo de gênero menor; o que há é o escritor menor ou o escritor maior diante de determinados gêneros. Assim, o que coloco aqui é a capacidade de Saramago frente à crônica, sem queda, repito, da qualidade literária que lhe é freqüente no romance.
Outro ponto a considerar diz respeito a nacionalidade desse texto que nós — incluo-me no que hoje vejo como um julgamento apressado — estamos acostumados a rotular como “um gênero brasileiro”, quando mais não fosse, “carioca”, o que é mais localista ainda. Cabe refletir: mas se se acha a crônica nos jornais do mundo inteiro, se existem esses espaços para que os jornalistas desenvolvam um texto parecido com a nossa crônica, como considerá-la apenas nossa? O que difere o texto jornalístico das colunas de opinião dos periódicos mundo afora em relação aos nossos textos, talvez seja o humor sempre presente na crônica brasileira; e é com este argumento que vem a aquisição da crônica para a cultura nacional. Em outros países, essas pessoas que ocupam esse tipo de espaço no jornal são chamados de colunistas, o que, entre nós, não tem o mesmo sentido de cronista. Inserindo a tomada de posição acima na avaliação dos textos de Saramago, motivo do enfoque, constatamos que o escritor português faz crônica no estilo brasileiro. Por outra, não poderíamos olhar a questão sem xenofobia, e avaliar com mais profundidade a colocação e concluir que, independente da nacionalidade, a crônica adquire esse jeito de ser quando escrita por pessoas que a ela se moldam com facilidade, tal como se para escrevê-la tivessem determinado quociente de sensibilidade?
Com o jeito de ser da crônica, José Saramago registra a vida contemporânea, olhando o mundo ao redor para fazer uma primeira leitura, e, deitando no papel o texto para a segunda leitura do mundo. A observação atual pode levá-lo à uma lembrança de infância, ao estarrecimento ou à notificação apenas de um ocorrido que , se agora é irrelevante, depois pode ter importância dentro da recriação de uma época.
E, a propósito de um outro ponto levantado aqui, sobre a crônica ser uma conversa, sabe-se que conversar é uma arte, haja vista Sherazade. Imagine, então, quando tudo é um monólogo, quando a resposta pertence a um interlocutor que você não escuta, não vê, não conhece. Manter a conversa dentro dessas condições é como falar sozinho, contudo, espera-se que ocorra o eco. E isso se dá, seja nos comentários da turma reunida, seja através de uma manifestação do leitor explícita em carta ou, quando possível, por telefone, ou, quem sabe, ao encontrar o cronista na esquina. Afinal, estamos mesmo tratando de uma “conversa de esquina”.
Analisando esse gênero, para o qual ando me debruçando com especial interesse, notei que não escapa aos cronistas em geral o tom de confissão. Por tal veio, intitulei um capítulo de um pretenso livro da seguinte maneira: Hoje estou triste! Saramago não foge à regra, e, na crônica “Natalmente crónica”, acaba confessando-se:

Acontece porém que tenho fortes razões para não estar de bons humores, o que me permite esquivar-me desta vez, se alguma outra caí em tão ingénua fraqueza, ao jogo cúmplice do amplexo universal... Mas o leitor também lá tem a sua vida, quem sabe se dura e difícil, e não há-de aceitar que eu lhe agrave as amarguras. Desculpe o desabafo.

Constate-se o “desabafo”, a confissão e a inclusão, com segurança, deste cronista no rol dos que lá um dia resolvem “admitir” suas “amarguras” para o leitor. E é aí que acontece a cumplicidade, terminando por viciar, porque criamos o hábito de ler “o que diz hoje” o nosso amigo: a pessoa abre o jornal e vai direto procurar aquele canto onde sabe que encontra outro ritmo verbal, outro ritmo de pensamento diferentemente do restante do periódico.
O século passado consagrou a crônica, e o ganho foi da literatura, enriquecida com o texto mais verdadeiro: o texto que traz o “eu” que fala por todos. Sim, porque a crônica tem um “eu” muito rico, pois se poético quiser sê-lo, pode; se meramente narrativo de um caso esdrúxulo, idem; enfim, se ali se coloca, diz por todo um grupo de opinião; ademais de tudo isto, o “eu” do cronista está livre das amarras que a qualquer outro gênero são impostas em nome da arte. Reunindo todos esses “eus” no seu “eu” de cronista, José Saramago desfila pelo gênero com beleza e poeticidade, com mão firme do prosador que é e com o tom de grande conversador que a crônica requer.
Ampla como gênero, na hora de passar do jornal para o livro, são as características literárias de cada texto que contam pontos para a escolha da seleção. Independente das circunstâncias em que foram escritas, as crônicas ficam submetidas a um crivo, onde não importa a carga brilhante de humor e ironia frente às colocações do autor porque o que ressalta é o aspecto literário.
No total, o cronista português, motivo desse texto, transforma os fatos e os sentimentos do cotidiano em situações e sensações que merecem “não morrer” com o jornal do dia, entrando, assim, para fazer parte do que é perenal, ou, por outra, fazendo literatura.




OBRA CITADA: Saramago, José: A Bagagem do Viajante. Companhia das Letras, São Paulo, 1996.
A foto de José Saramago foi feita por Miguel A. Lopes, retirada do Flickr.

domingo, 6 de julho de 2008

UM BEIJO ROUBADO

A. Pedro






Que filme lindo! E por mais tendenciosa que esta opinião possa parecer, não é bem assim.Ouvindo pareceres controversos e alguns bem estapafúrdios, abri o coração e fui ver despido de todo e qualquer pré-conceito, esperando qualquer coisa. A surpresa foi das melhores.Réu confesso da obra de Wong Kar Wai, me arrisco a dizer que seja ele uma das coisas mais legais da atualidade- e um dos que mais sabem retratar o amor e todas as suas dores na tela. Talvez o melhor. Diretor chinês de longa data iniciou-se na década de 80, mantendo uma produção intensa e significativa durante os anos 90, quando passou a fazer sucesso em território não asiático. Mas foi a partir de 2001 que ganhou notoriedade, ao ganhar algumas indicações e levar um prêmio técnico. Amor a flor da pele, conta a sensível história de dois amantes presos pelas convenções sociais de uma Hong Kong secentista. As histórias de Kar Wai são permeadas por amores trágicos, oprimidos. Dramas recheados de lirismo e poesia. Crueza não é o seu forte. Assim, como a maioria dos profissionais de cinema que se destacam pelo mundo, dá agora o ar da sua graça em Hollywood. E é por isso que Um Beijo Roubado divide tantas opiniões. A sua aventura no cinema estadunidense mantém o lirismo, a poesia, a sensibilidade. Mas não foca na tragédia das personagens- por mais que todas elas sejam compostas por histórias sofridas, a atenção não está voltada para lá. Uma mulher desiludida com o relacionamento que termina, entra num bar para deixar as chaves de casa. Trava, então, um diálogo com o dono do estabelecimento, onde desenvolvem uma relação afetuosa e dúbia. Mas antes de se deixar envolver, ela decide deixar a cidade e viajar pelo país, encarando uma jornada solitária para se libertar do passado. Nesse climinha de Road movie, ela vai conhecendo personagens singulares, que vão, passam pela sua vida, marcando-a. Um elenco magnífico de estrelas competentes é reunido para apoiar Norah Jones, na sua estréia fofa como protagonista. Jude Law se despe da estonteante beleza cinematográfica habitual, para encarnar um dono de bar verossímil, bonito e com alguma simplicidade. Rachel Weisz aparece como uma femme fatale decadente, ex-mulher de um alcoólatra amargurado (David Strathairn). Ainda há também a participação de Natalie Portman, gloriosa, fabulosa, maravilhosa e cansativamente bem adjetivada para a eternidade por quem vos escreve. Assumo e afirmo a tietagem tendenciosa e quase-vulgar aqui.O filme todo possui uma deliciosa atmosfera de madrugada, bem conhecida por insones assumidos. A fotografia abusa das cores quentes e de ângulos inusitados, capturando grande parte das cenas atrás de vidros e vitrines, expondo as histórias e dores (por mais que não seja esse o tema, insisto) das personagens. É tudo lindo e dá uma vontade absurda de rever. Wong Kar Wai acertou mais uma vez. E ele arrasa!
A. Pedro assina o blog Primeira necessidade (entrada pelo meu). É crítico de cinema e teatro.