segunda-feira, 4 de junho de 2012

DON SOLIDON, DE HÉLIO PÓLVORA: EM BUSCA DO QUE NÃO FOI DITO

Gerana Damulakis

- É a minha veia romântica.
- Não a sobrecarregues. Do contrário, estoura.
HP

Segunda vez que Hélio Pólvora, experimentado contista, incursiona pelo romance. Depois da publicação de Inúteis Luas Obscenas (Casarão do Verbo, 2010), a emoção enriquecida em Don Solidon (Casarão do verbo, 2011) é a grande condutora da narrativa.
Incluindo a literatura, as personagens são: Joaquim Pedro e Anabela, pais de João Pedro e mais outros filhos, além de Marbela, irmã de Anabela, e Severiano; todos carregam, cada um a seu modo, a solidão de todos nós em sugestivos 80 capítulos.
João Pedro revisita sua vida em busca do tempo de outrora: é o menino da Casa dos Limoeiros que abria trilhas na mata com o pai enquanto ia aprendendo o quanto há para resistir e como cortar os obstáculos do caminho. Na revisitação da sua vida, João Pedro desenterra os mortos: Marbela também é avaliada desde o começo de sua decadência quando volta para a casa da irmã para viver um último amor, os restos que Severiano, eterno apaixonado por Anabela, pode oferecer-lhe. A queda de Marbela é emblemática de uma queda maior: o desabamento da Casa dos Limoeiros.
Reviver é testemunhar destruições psicológicas como a de Marbela, fruto da solidão, mas há uma destruição que resistiu mais e conheceu a reconstrução no papel de Joaquim Pedro que, após perder tudo, vai, também emblematicamente, tornar-se oleiro.
Todo o tempo revisitado por João Pedro vem acompanhado da literatura. De mãos dadas com a literatura, Don Solidon suscita em cada episódio narrado um autor, uma obra, um verso que seja. Por vezes a música e o cinema também fazem parte da narrativa, mas ela, a literatura, se faz suprema. Há três mundos entre citações, revitalizando a literatura a cada vez que ela é trazida para o palco da trama.
O romance começa com Joaquim Pedro e Anabela, acompanhados do gato da casa, conversando à noite, sentados rente ao fogão, enquanto o gato está deitado na cinza que é varrida para um lado do fogão a lenha.
O romance termina também com Joaquim Pedro, desta vez recebendo a visita da “velha senhora de negro”, quando seu último pensamento vai para Charles Chaplin, “o mais patético dos palhaços”, mas das suas entranhas desdobra-se uma onda de fel que lhe sufoca o peito e inunda a boca. Mais do que ironia, há sarcasmo no momento em que o romance junta as pontas, seu início e seu fim, com Joaquim Pedro.
O ambiente levanta o tema, rege a personagem, transposta para a ficção as inquietações de João Pedro: as vidas de seu pai e de sua mãe, de sua tia Marbela. Ainda que em certos momentos João Pedro não esteja presente o romance é um romance de formação ou, como disse Ricardo Piglia, um romance policial, porque todo romance é policial. Piglia afirma que no fundo toda literatura é literatura policial, pois sempre existe algo que se quer averiguar, “pode ser um morto que está jogado aí, ou um elemento da vida de um indivíduo”, porque o que se busca é o que não se disse, e esse processo equivale a uma edição, pois é mais importante saber o que não se vai narrar. Os grandes narradores são aqueles que sabem deter um relato no momento em que a alusão, o não dito, ou, enfim, a elipse produz um efeito sobre o que se está dizendo. É o mesmo que dizer: quanto mais for possível manter sob controle o material ficcional e não se deixar entusiasmar com a abundância de informações, maior será a tensão da narrativa.
É Orhan Pamuk quem diz , de outra maneira, quase o mesmo que o argentino Piglia. Em O romancista ingênuo e o sentimental, Pamuk mostra que o leitor busca o centro do romance com extrema atenção e essa é a operação que a mente executa quando lemos um romance e que o distingue das outras narrativas literárias; “é exatamente o fato de que ele tem um centro secreto, longe da superfície do romance, que seguimos palavra por palavra.
Por causa de sua estrutura, adequada à busca e à descoberta de um significado oculto ou de valor perdido, o gênero mais condizente com o espírito e o forte da arte novelística é o que os alemães chamam de Bildungsroman, ou “romance de formação”, que fala da moldagem, da educação e do amadurecimento de jovens protagonistas, à medida que se familiarizam com o mundo. E, conclui Pamuk, “um romance é uma segunda vida”.
No capítulo 35, intitulado “A moça de organdi preto”, um terno capítulo, o leitor testemunha mais uma solidão: uma moça circula todos os dias pela cidade para arranjar marido, pois o tempo já começa a se apresentar implacável e urgente. Há uma marca tão polvoriana: a preocupação com o tempo em seu transcurso físico em oposição a sua experimentação psicológica do íntimo das personagens. E a preocupação vai além porque se apresenta de tal forma vinculada à transformação da sociedade na qual as personagens estão situadas, de modo que suas estruturas vão sendo também problematizadas.
Tudo isto pode ser traduzido pelo que vai sendo desmontado e pelos mecanismos psíquicos que vão sendo desmascarados. Para João Pedro talvez a literatura se faça tão presente por ser uma defesa que protege sua consciência, tal como um mundo onde ele se refugia desde menino quando em lugar de brincar com o caminhãozinho que acabara de ganhar, prefere a leitura, o que não deixa de ser, apesar de tímido, um protesto do menino frente à realidade. Se os livros citados evocam aventuras como as de Dom Quixote, ou se já chamam por cismas como as de Dom Casmurro, seguramente insinuam desde então o Don Solidon – de saída, título de uma música cantada por Amália Rodrigues.
E.M.Forster diz, em Aspectos do romance, que “o teste final de um romance será nosso afeto por ele”. Preciso dizer mais sobre a afeição que desenvolvi durante a leitura por Don Solidon?

Publicado em 04/06/2012, no Caderno 2, do jornal A TARDE.