sábado, 25 de julho de 2009

"SOU TEMPLO PRESTES A RUIR SEM DEUS"

Gerana Damulakis


Na primeira data de troca de presentes da história de nossas vidas, Aramis e eu demos a mesma coisa um ao outro: a obra completa de Mário de Sá-Carneiro, da Editora Nova Aguilar. Uma coincidência inesquecível! Eu já possuía, em dois volumes, um de poesia, outro de prosa, Mário de Sá-Carneiro, pela Círculo de Leitores, de Portugal. Mas, gosto de ter duas vezes ou mais os livros preciosos de poesia, até já contei quantos Manuel Bandeira eu tenho. Criatura recorrente!
Acabei de ler Suicídios Exemplares, livro de contos de Enrique Vila-Matas, escritor espanhol que vem me encantando cada vez mais. No final, ele colocou um trecho da carta de Mário de Sá-Carneiro para Fernando Pessoa, de 31 -03-1916:
Mas não façamos literatura. Pelo mesmo correio (ou amanhã) registradamente enviarei o meu caderno de versos que você guardará e de que você pode dispor para todos os fins como se fosse seu (...) Adeus. Se não conseguir arranjar amanhã a estricnina em dose suficiente deito-me para debaixo do “metro”... Não se zangue comigo.
Lembrei-me do ritmo pendular do soneto “Estátua Falsa”, de Sá-Carneiro. Há um mundo formado neste poema, um mundo que vai aos “céus” e diretamente vai ao “mar”, sobe e desce. E a leitura do verso: “nada me aloira já, nada me aterra”, essa leitura vai criando um pêndulo imaginário. Cada verso é extremamente rico: constrói um eu inseguro, sem valor, portanto falso, que impregna até a tristeza. As metáforas funcionam para moldar o mundo criado como ele é mesmo e, não como uma relação com outro. O penúltimo verso não tem como qualificar, creio que é exatamente como cada um de nós pode se sentir alguma vez diante da vida, se perdemos a pessoa que era um ser maior, como na perda do pai: “sou templo prestes a ruir sem deus”.
ESTÁTUA FALSA
Mário de Sá-Carneiro

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

in Dispersão