quarta-feira, 27 de agosto de 2008

ROSA, PODRE E PROSA

Letícia Coelho


E fez – se a rosa em ritmo
Nota, verso e prosa
Emoldurada na mucosa
Inunda pensamentos íntimos
Rói a corda,
Perde a visão de tuas costas.

Entre anseios e desprezos
Sobra o olhar avermelhado
A mão tremula que tenta te alcançar
Que pena...
Ela é boa em enganar,
Te agrada e depois corrompe moralmente...
Gangrena o pensamento
A liberdade que te faz voar.

Quando tocas as notas dela
Dá início ao aleijamento total
És esmagado pelo aroma podre da flor
E é nesse momento...
Que tu te entonteces e reza versos de amor.



Letícia Coelho escreve poemas e contos, já participou de uma coletânea da Editora Komedi/2008 e vai lançar o livro Ensaios Amadores. Foto de .rein., retirada do Flickr.

BELEZA PURA

Fred Matos



conto carnavalesco para cantar

Não me amarra dinheiro não, mas formosura. Este ano, Colombina, não vai ser igual àquele, já detonou o som na praça. O caminhão eletrificado, milhares de watts, decibéis à beça, todas as bocas troando um baiano frevo, balança o chão da praça Castro Alves, não pára, arrasta a multidão pipoca subindo, lentamente, a Carlos Gomes, tem pé na dança. Dinheiro não, a pele escura. No mete o cotovelo vai abrindo caminho, atrás só não vai quem já morreu ou fica esperando outro, que já vem, que já vem, que já vem, umazinha, alemã deve ser, xenhenhém úmido decerto, pendurada no pescoço do negrão filho de Gandhi de sorriso sonso e intenção humana como a minha que transo todas sem perder o tom. Dinheiro não, a carne dura. Um grupo, abadas amarelos pintalgados de tons vermelhos, desce a ladeira de São Bento chacoalhando pandeiros, batendo agogôs, tambores, latas. A chuva bem-vinda pé-d’água desaba refresca e passa. Nessa cidade todo mundo é de Oxum, não se esqueça de mim, não desapareça, Colombina, homem, menino, menina, mulher. Poucos são ainda dominós, pierrôs, arlequins, havaianas, tuaregues, mascarados, nesta multidão com pouca roupa graças a deus. Dinheiro não, moça preta do Curuzu, não me leva a mal, vou beijar-te agora, beleza pura, hoje é carnaval, não faça como aquela que bebeu, bebeu, bebeu e depois se misturou à turba, fugiu. Se a canoa não virar virão marinheiros, índios, cangaceiros e baianas. Quando essa preta começa a tratar do cabelo é de se olhar. No tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru e do seu tacho, flor do dendê, recende o aroma saboroso do acarajé fritando. Peço um, só com pimenta, melhor acompanhamento não há para uma cerveja gelada, não à estupidez, no ponto em que se formem dois cremosos dedos de espuma. Toda a trama da trança a transa do cabelo. Você me puxa, me leva pela mão para o meio da rua, conchas do mar ela manda buscar pra botar no cabelo, a praça fica pra trás, subimos a Chile, à esquerda o Elevador Lacerda, lá embaixo, azul esverdeado, Todos os Santos, o mar da baía onde bóia redondo o Forte de São Marcelo, no horizonte a ilha de Itaparica, toda minúcia, toda delícia, vamos em frente, Misericórdia, Praça da Sé, Terreiro de Jesus de tantas igrejas, não me amarra dinheiro não, mas elegância e agora o Pelourinho para ver ouvir o carnaval de outrora nas fantasias, das bandinhas, dos violões e bandolins do Paroano sai Milhó, não me amarra dinheiro não, mas a cultura: Quem é você, diga logo que eu quero saber o seu jogo, dinheiro não, a carne dura. A tarde cai e da sacada do velho reformado sobrado uma avozinha acena e dança, acena e dança, acena e dança, ao redor crianças jogam confetes atiram serpentinas, beleza pura. Moço lindo do Badauê, beleza pura. Se eu deixar de sofrer como é que vai ser para me acostumar, beleza pura? Do ilê aiyê, beleza pura. Na Baixa dos Sapateiros, dinheiro yeah, beleza pura, sentado neste improvisado botequim, longe o som dos trios, tontura de sons, cores, aromas, a filha da Chiquita Bacana, morena mais dengosa da Bahia, dentro daquele turbante do filho de Ghandi, pede a saideira, é o que há, tudo é chique demais, tudo é muito elegante, beleza pura. Antevendo horas de gozo, minutos que sejam são serão suficientes, manda botar palha da costa e que tudo se transe, sequer percebo, todos os búzios, todos os ócios, que acabou o nosso carnaval nas cinzas de uma quarta-feira. Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios.




Fred Matos é autor de Melhor que a encomenda (FUNCEB, 2006). Foto de quir-k, retirada do Flickr.

BALANÇO GERAL

Gláucia Lemos



Não sei se a vida vale a flor que espreito
Luís Antonio Cajazeira Ramos


O que sobra é a casca da fruta
é o rascunho do texto
é o recibo da conta
é a gota no copo
é o farelo no prato.

O que resta é a pegada no piso
é o bagaço na cesta
é um fio no pente
o batom no guardanapo
o suor na camisa.

O que fica é a ruga no rosto
é a névoa nos olhos.
Na memória que foge
uma lembrança morna,
e um laivo de remorso
boiando no vazio.



Gláucia Lemos é romancista, contista, cronista e poeta. Tem 33 títulos publicados. Foto “El bosc en uma gota”, de queropere, do Flickr.