sexta-feira, 22 de maio de 2009

RECORDAÇÃO


Gerácimo Damulakis


Ouço: DEM, DEM, dem, dem... dem. É o sino estridente, mas conhecido. Sinto as pernas frias, abro os olhos, vejo as cobertas nas mãos do sensor. Daí espreguiço-me. Eis mais um dia qualquer. O sótão do velho colégio é sempre frio ao amanhecer e muito mais frio é o banho que vem logo em seguida.
Numa carteira grande e negra, espécie de mesa de estudo, escrevo em um caderno bastante rabiscado, de capa mole, que cisma com a independência. O toco de lápis de ponta rombuda fere o papel fortemente. O caderno divide-se em folhas brancas e folhas com linhas. Escrevo: “22 de maio de 1940. Ditado”.
A velha professora, uma mulata gorda, inicia o ditado com voz alta, clara e muito explicada. Nada difere dos ditados anteriores, e o passar das horas que se arrastam tão vagarosamente faz crescer a ansiedade pelo recreio. Por fim o sino toca e me acorda imediatamente, mas me acorda de outro sono, aquele das fantasias.
Esse sino que me tirou do devaneio, soa agora com voz de soprano, bonita e alegre. Em poucos instantes o fundo do colégio enche-se de crianças, de buracos para o jogo de gude, de cheiro de merenda.
A topografia do grande pátio de recreio é toda minha conhecida. As elevações e os buracos, os pequenos montes de capim e os batentes de alvenaria. Tal um soldado que conhece o campo de batalha, lanço-me não à luta, mas ao jogo de gude. Sabendo como sei todos os truques, faço uso do terreno para ganhar muitas gudes.
Estou em grande dia. Meus dedos de unhas cheias de barro acertam sempre. Não adiantam os pedidos difíceis dos adversários:
— Quero gude presa, sem correr um tiquinho.
— Para onde pede?
— O buraco mais longe.
Logo tenho o bolso cheio. Chego a chamar a atenção e sinto orgulho. O prazer em mim foi tanto que a minha memória guardará o prazer de então como uma lembrança que faz sorrir.
No meio do recreio ecoa um repetido chamado do meu nome para comparecer à secretaria. Que chamado inoportuno e irritante! Não quero ouvi-lo. Insistem e estou na obrigação de abandonar o jogo. A secretária da diretora diz:
— Vista-se e vá lavar as mãos. Você com essas unhas sujas de barro! Um horror! Seu pai está aí, que é que ele vai dizer?
Molemente desloco-me dentro do colégio. A secretaria é o último lugar aonde quero ir. Dentro de mim um turbilhão de sensações e atitudes decididas que quero tomar. Ninguém entende ou procura entender o meu desinteresse em ir ao encontro de meu pai.
Transponho a porta. Paro ao ver meu pai. Depois, me lanço aos seus braços fortes e acolhedores. Choro sem dizer nada. Tenho-o de encontro ao meu corpo e sinto o tecido gostoso, linho branco, que ele costuma usar. Não lembro nada do que falo ou do que ouço, apenas vejo uma caixa de presente envolta em papel fino e verde. O tempo é curto. Volto choroso ao recreio. Só então me dou conta de que hoje é o meu 22 de maio.
Anos mais tarde, escrevo a data num papel para iniciar uma carta. Sem consciência do porquê, começo a pensar no passado e procuro entender aquelas vacilações que me invadiam por ocasião da visita do pai. Mas o tempo voou sem eu sentir. Outros 22 de maio surgiram sem maiores emoções. E agora farei os vinte e três anos tão sonhados. Os prazeres, as sensações e os sonhos não são mais os mesmos que tenho agora; ainda assim muita coisa tem seu equivalente. Meus olhos parados a analisar a topografia de um terreno podem conter a mesma expressão de quando eu observava o pátio do recreio. Apenas uma sensação, a estranha e esquisita, inexplicável na época, aquela sensação com a chegada de meu pai, essa não se repetiu mais. Em meio a meus pensamentos, entra a minha secretária e me avisa:
— Seu pai está aí e lhe chama.
Olhei a data no papel em que escrevia e me dei conta: é dia 22 de maio.



Publicado em 06/01/2001, no suplemento Cultural de A TARDE.

Encontrei um papel com este conto (melhor dizendo, com esta crônica) que meu pai escreveu aos 23 anos de idade, no dia 22 de maio, data de seu aniversário. A meu pedido, Florisvaldo Mattos, sempre carinhoso comigo, publicou no Cultural e quando meu pai abriu o jornal teve uma surpresa enorme. Abaixo, Florisvaldo colocou: Gerácimo Damulakis é contista, engenheiro e empresário. Foi muito gostoso aquele dia. Meu pai nunca foi contista, sempre foi engenheiro e amava seus oleodutos e gasodutos Brasil afora, mas adorou ser contista por um dia.

A foto acima (meu pai e eu) é colorida, mas foi com um propósito que postei em preto e branco. Hoje, neste 22 de maio, meu pai está em cores apenas no meu coração e no coração de Jorge, meu irmão. GD