sexta-feira, 8 de maio de 2009

PEQUENA TEORIA DO CONTO


Ildásio Tavares
Para minha filha contista

Certa feita, perguntaram a Mário de Andrade, ó que é um conto? Mário respondeu: “Conto é tudo aquilo que chamamos de conto.”
Na certa, um dos corifeus do movimento porralouca da Sampa Desvairada queria pontificar sobre o primado da liberdade de criação, contra tudo que pudesse significar regra, norma, gramática, academicismo. Muito antes do surgimento da arte conceitual. O poetão modernoso de Andrade estava criando o conto conceitual. Mas não é assim. O buraco é bem mais embaixo.
O conto, concebido de maneira informal, é um gênero antiquíssimo.
Nas sociedades mais primitivas de coletores e caçadores, os homens reuniam-se à roda da fogueira para desfilar narrativas necessariamente curtas, porque muitos queriam narrar e todos tinham que ter vez. Na África, os griots saíam debulhando peripécias pelas aldeias. Na Grécia antiga, os aedos, os rapsodos, cantavam e contavam, como mais tarde os trovadores medievais. Eram narrativas curtas, conceito básico do conto, que, nesta forma concisa, objetiva e intensa começa a ser caracterizado com mais frequência a partir das Mil e uma Noites, rosário de histórias interminável em que Scherazade salva-se da degola a que eram condenadas as mulheres anteriores do sultão mantendo aceso o interesse do marido com suas primorosas narrativas.
Mas, afinal de contas, que diabo é um conto? Antes de tudo, um gênero que, se no passado tomou a forma de poema narrativo, passa a partir do Decamerão de Bocaccio e dos Canterbury Tales de Chaucer a fixar-se como prosa e se consolida em toda sua inteireza a partir de Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, criadores do conto ocidental clássico. Estes dois autores, principalmente, é que definem a fronteira entre um conto e uma história bem contada. Esta última limita-se a narrar um fato, um acontecimento sem nenhum compromisso além do espaço denotativo. Conta, reproduz, discorre e pronto. Já o conto cria um micro-cosmo de plurisignificações em que o menos importante é o plot, o enredo, a peripécia. O que interessa são as implicações humanas e a composição daquilo que chamarei a alma do texto. Importa não o quê contar, mas como contar , porque e para que.
Um conto é algo mais do que sua simples linguagem. De início se define estruturalmente como uma narrativa com princípio, meio e fim, conduzindo a uma surpresa no final . O hábil contista iludiria o leitor para pegá-lo com as calças na mão no fim. Nesse respeito, o escritor americano O. Henry é inimitável. Sua habilidade de tapear o leitor para surpreendê-lo no final é magnífica. A kick in the end . Mas este truque começa a se vulgarizar.
O conto moderno despreza princípio, meio e fim; despreza a pirueta da surpresa; mergulha na paisagem interior do personagem, cujo perfil psicológico supera a peripécia. Um conto passa a ser um flash, um instante de vida, um pulsar do personagem e o tempo interior prevalece sobre o cronológico. Não há mais a necessidade de fotografar exteriores mas de radiografar as personalidades.
A peripécia vira um personagem. O conto é um retrato da alma.

Foto: capa da reunião de contos O amor é um pássaro selvagem (Imago, 2000), de Ildásio Tavares.