segunda-feira, 28 de abril de 2008

OS SEGREDOS DAS ESTRADAS



Gláucia Lemos




Sempre que vou ao Vale do Capão faço a caminhada dos Gatos. Não pensem que se trata de caminhar em companhia de gatos, os felinos, tampouco na companhia de moços encantadores, sarados, aqueles de sorrisos fabricados para propaganda de dentifrícios. Nada disso, o que até seria agradável. Nem gatos nem cães são encontradiços nessa caminhada. Embora uma vez um cãozinho, com cara de desamparo, estivesse parado em uma ponte e nos acompanhado por todo o percurso, até que, chegados a uma cerca, enveredasse por ela, como se finalmente tivesse encontrado seu rumo, e sequer nos agradeceu a companhia. Mas o episódio foi uma eventualidade. De ordinário, nem gatos nem cãezinhos desamparados.
O fato é que, no Capão, muitos locais têm nomes de famílias que os habitaram nos primeiros tempos em que a região foi explorada. Possivelmente seriam senhores de garimpos, no que a região era pródiga. Não tenho nenhum registro histórico em que fundamente minha suposição de que seriam senhores de garimpos. A verdade é que existem locais com nomes de famílias que lá habitaram, sabe-se lá há quantos séculos, como os Brancos, e os Gatos.
Tudo isso para falar que faço os Gatos todas as vezes, o que significa fazer todo o percurso do local chamado Gatos, em saudável e suarenta caminhada. Em uma dessas vezes, entre os amigos que iam no grupo, havia uma garotinha de uns dez anos, muito esperta e falante, que ficou me observando enquanto eu fotografava as estradas que se ramificavam a partir da principal por onde íamos, sempre que alguma me interessava. Não se contendo mais, falou: Ela está fotografando as estradas... Achando estranho que ao invés de fotografar as pessoas, estivesse fazendo fotos de chãos. Outras pessoas hão de ter pensado o mesmo. Não pensariam, se se detivessem no que me detenho quando vejo, em lugares primitivos, o serpentear de um caminho por entre alas de vegetação espessa, uma estradinha que, às vezes, parece não ter fim e que talvez se vá perder na serra que lá adiante se avista. Um caminho que algum dia, sei lá quando, foi apenas uma trilha rasgada por pés que pretenderam encurtar uma jornada, talvez alguém em fuga, um criminoso, um vingador, um perseguido, um infiel, que buscasse confundir o seu perseguidor e se atirasse entre galhos no mato fechado, na certeza de não deixar impressas na vegetação as pegadas delatoras de sua passagem, e aí começasse uma vereda.
Alguém um dia iniciou a trilha da qual nasceu a estrada que agora se oferece ao viajante, aberta como uma fruta madura a qualquer fome, franca, lisa no chão sem arestas, senão as da folhagem cinzenta que o vento joga dos galhos, onde secaram até o fim do seu tempo de verdor. Senão arestas minúsculas das areias que, em grãos, se espalharam arrastadas pelos ventos, e fizeram a forração crespa dos caminhos. Que pés endurecidos e calosos de caminhadas, pisaram em primeiro passo, os galhos derrubados para abertura das trilhas que ali crestaram por ação da soleima ou da geada, e, ressequidos, viraram pó e depois se desfizeram e se tornaram nada, justificando, no sacrifício de sua seiva, a abertura de um atalho. Por ele um garimpeiro alcançaria mais rápido o seu rumo. Chegaria mais cedo à grota na qual sua bateia perseguia a gema redentora da labuta da esperança. Ou mais rapidamente, quando, no início da noite turva e gelada de neblina, alcançaria a choupana na qual repousaria para recuperar as energias, talvez ou certamente onde o esperavam os braços mestiços e o corpo amoroso e aquecido daquela que seria todo o seu refúgio.
Ah! Quem sabe os segredos das estradas? Dos pés de ida ou de retorno, dos passos de fuga ou de regresso, quem viu pegadas, quem contou as histórias, quem conheceu os donos daqueles pés?
Ao aprendiz de fotógrafo, ladrão de imagens, que se permite violar as estradas para trazê-las impressas no egoísmo do seu prazer, cabe somente imaginar enredos, ter o consolo de colher as sombras do arvoredo banhado de luz, que as projeta no claro-escuro da areia, enquanto seu espírito se perde nas interrogações que jamais terão respostas.




Gláucia Lemos é ficcionista, poeta e cronista, com mais de 20 títulos publicados. Este texto é mais um para o livro que vem sendo construído neste blog. A foto é do Vale do Capão, por jahponeis, retirada do Flickr.

domingo, 20 de abril de 2008

A PAINEIRA


Gláucia Lemos


No Campo Grande, em um ângulo que confina com a Avenida Sete, cresceu de semente tangida pelo vento, ou foi plantada em hora de inspiração, uma paineira. Não é uma paineira, é um colosso, uma obra monumental da natureza. Sempre que passava por ali, nos meus tempos de Escola de Belas Artes, me punha ao pé do tronco, rugoso e formidável, cuja circunferência denunciava séculos de existência, e olhava para o alto a contemplar a fronde, a graça da imensa galharia espalhada em folhas e floração rósea frutificada em paina, larga, imensa e majestosa no seu domínio do espaço. Não sei se ainda lá está, mas desejo que sim.
Sempre pensei em quantas coisas, ao longo dos séculos, seus ouvidos – se ela os tivesse – teriam escutado. Confidências e inconfidências, contratos e conluios de fugas e de vinganças criminosas, ternas palavras de idílios proibidos, traições e vidas negociadas. À sua sombra, quando menos alta a fronde e menos grosso o tronco, quanto forasteiro sedento, adentrando a cidade, teria parado, para do albornoz empoeirado sacar o cantil e matar a sede. À sua sombra quanto escravo teria estacionado seu tabuleiro de peixes, seu balaio de frutas, para rápido repouso das pernas nodosas da sempre jornada no ganho das patacas que apressariam a compra da alforria.
Seus olhos – se acaso os tivesse – a quantos fiéis teriam assistido, sob os véus nas cabeças contritas, os chapéus nas mãos, seguindo charolas e andores de imagens nas numerosas procissões, quantas liteiras passando a conduzir sinhazinhas, mal escondidas por entre as sanefas das janelas, a furtar com o olhar disfarçado os olhares do cavalheiro postado sob a paineira, na hora exata de vê-la passar.
Quantas vezes terá visto transitarem os condenados vestidos nas alvas, a caminho do sacrifício, em lúgubre acompanhamento de padres e carrascos, até a forca armada na praça da Piedade, seguidos do ímpio cortejo de curiosos. Quanta vida pulsante a seu redor e quanta morte inútil, quanto gesto amoroso, quanto sinal disfarçado, quanto crime inclemente, quanto discurso vazio, quanta intriga, quanto carnaval inconseqüente, quanto sonho, quanta dor, quanta história a paineira teria para contar.
Houve um tempo em que, tomada por esses pensamentos, até pensei em escrever um livro que seria uma conversa com a paineira que me contaria tais segredos, e eu teria uma história muito rica. A idéia ficou, a inspiração não aconteceu, porém.
Às vezes me pergunto se as árvores não terão, como os insetos, o seu sistema de comunicação. Se no farfalhar das folhas não conversarão com suas semelhantes, um pouco que seja, das coisas que acontecem, dos fatos que presenciam, dos flagrantes da história, dos costumes dos homens. Se elas se guardam com suas memórias – se as têm — que se irão fragmentar no dia em que, abatidas, se tornarem tábuas, virarem toros, se transformarem em papéis. Talvez papéis que venham a virar livros, nos quais a posteridade aprenda coisas escritas pela humanidade, muito diferentes do que eles já trazem na memória remota das suas próprias folhas. Nunca terei esta resposta porque ela vive o absurdo da minha fantasia. Mas tenho quase certeza de que um livro em branco não está de todo vazio. Nós é que não sabemos ler o que ele guarda.



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Este texto marca o início da transformação de uma idéia em realidade: reunir as crônicas publicadas neste blog em um livro. A capa, seguramente, deverá ter uma paineira. Foto de Gustavo 737, do Flickr.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

SONETO PERIPATÉTICO




Luís Antonio Cajazeira Ramos


Se a solidão adensa com seus frios
humores o silêncio de geleiras,
a esperança derrete como guizos
de festa o gelo em cores de aquarelas.

E se a esperança se contorce em risos,
como a graça incontida de donzelas,
a solidão imposta-se de brios,
como um asco escolástico de freiras.

Essas inseparáveis inimigas
giram em roda efêmera de intrigas...
E a gente atesta, no avançar das pernas,

que a solidão esperançosa, tanto
quanto a esperança solitária, entanto,
são nada, nada mais além de eternas.



Luís Antonio Cajazeira Ramos é autor de Mais que sempre (7Letras, 2007) entre outros títulos.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

OS PORTÕES DE SARAMAGO



Gláucia Lemos


Todo mundo já sabe que sou Saramagólatra incurável. Quanto mais o conheço, mais o quero conhecer. É minha bebida, meu cigarro, meu time de futebol, já que não bebo, não fumo e não me interesso por bola, concentro na palavra de Saramago aquela fixação dos que a têm naqueles vícios.
Estou lendo agora A bagagem do viajante, crônicas, editado pela Cia das Letras. Tão encantador cronista quanto o admirável romancista de O Evangelho segundo Jesus Cristo, e de Memorial do convento. Uma página após outra, delicio-me. Como sempre tendemos a ressaltar alguns textos, poderiam ser alguns outros, mas elejo Os portões que dão para onde? Uma crônica, um momento emotivo que quero dividir com outras pessoas, porque não é justo guardar tamanho modelo da melhor literatura, no egoísmo de um só espírito. Depois de ler Saramago, fica um sentimento indefinível. Quem sabe... Só Beleza.
Não vou transcrever todo o texto, há que se respeitar espaço, mas detenho-me nos três últimos parágrafos, respeitando a grafia original que em alguns detalhes é diferente da nossa ortografia, enquanto convido os que me lêem a este instante de reverência.
É o caso dos portões. Em viagem, quando atravessamos os campos de automóvel, não é raro vermos afastarem-se uns portões enigmáticos em terras meio abandonadas ou já de todo baldias. Ali o caminho esconde-se entre a erva, os arbustos loucos e os detritos vegetais que o vento arrasta. Não sabemos sequer se os batentes abrem para cá ou para lá, e muitas vezes os portões não se continuam em muros ou arames, e tudo isso tem um ar misterioso de terra assombrada. Mas pior ainda é se os portões desapareceram e deles ficaram apenas os dois pilares gémeos, virados um para o outro, como quem pergunta se já não há mais nada a esperar.
“Não me acuse o leitor de obscurantista. Tenho uma confiança danada no futuro e é para ele que as minhas mãos se estendem. Mas o passado está cheio de vozes que não se calam e ao lado da minha sombra há uma multidão infinita de quantos a justificam. Por isso os portões velhos me inquietam, por isso os pilares abandonados me intimidam. Quando vou atravessar o espaço que eles guardam, não sei que força rápida me retém. Penso naquelas pessoas que vivas ali passaram e é como se a atmosfera rangesse com a respiração delas, como se o arrastar dos suspiros e das fadigas fosse morrer sobre a soleira apagada. Penso nisso tudo e um grande sentimento de humildade sobe dentro de mim. E, nem sei bem porquê, uma responsabilidade que me esmaga.
“Se o leitor não acredita, faça a experiência. Tem aí pilares carcomidos, de gonzos roídos de ferrugem, cobertos de liquens. Agora passe entre eles. Não sentiu que os seus ombros roçaram outros ombros? Não reparou que uns dedos invisíveis lhe apertaram os seus? Não viu esse longo mar de rostos que enche a terra de humanidade? E o silêncio? E o silêncio para onde os portões se abrem?

E depois de tanta emoção, fica no coração o silêncio respeitoso pelo autor.


Gláucia Lemos é autora de mais de 20 títulos, mas aqui e agora ela é a fã incondicional de Saramago. Assim como eu.

terça-feira, 8 de abril de 2008

A FLORESTA

Gerana Damulakis


Quando a ânsia surge
e a alma derrete feito gelo,
chegam juntos mundos de medos,
de fraquezas,
de incertezas,
de perguntas.
Quando a espera já não se aguenta,
se olha o tempo, passando sem passar,
se deseja sem esperanças,
se cria relógios imaginários,
então nada resolve
para amenizar, ou para fingir
que tudo acabou.



De Guardador de mitos (Edição do Autor, 1993).

UMA OBSERVAÇÃO

Gerana Damulakis


As nuvens cobriram o azul do céu,
a plena tarde ficou parecendo um
começo de noite.
Cairá uma bela tempestade.
O barulho das gotas grossas de chuva
abafará o som do tráfego,
diminuirá o tom estridente da sua voz,
irá enternecer o sentimento do mundo.
Virá uma tristeza pura
e muda.



De Guardador de mitos (Edição do autor, 1993).

POEMA DO MÊS

VIAGEM

Ana Cecília de Sousa Bastos


Ela registrou seus sonhos no caderno que lhe dei
de presente.
Ela arrumou na mala pedaços de sua alma.
Suas veias abertas sangram em despedida.
Ela diz adeus para lugar nenhum e parte,
sem quandos nem ondes.
Fantasmas melancólicos dormem em sua cama
solitária.

A lágrima sobre a mesa.



Ana Cecília de Sousa Bastos é autora de A Impossível Transcrição - De tudo fica a poesia (Salvador, 2007).

AUTOMN'S LEAVES & GAIVOTAS



Gláucia Lemos


A senhora grisalha recostou a cabeça na almofada do espaldar e se entregou à contemplação da dança das gaivotas. Uma coreografia contínua, sem jamais se repetir. Sempre amara as gaivotas. Nas excursões costumeiras eram elas o seu espetáculo preferido. O marido não saira naquela manhã. Andava indisposto. Seria um mal-estar passageiro, era melhor que ficasse lendo no camarote. Ele não gostava de excursionar, acompanhava-a para ser gentil, preferia uma rede na varanda com um livro policial diante dos olhos. No mar, qualquer motivo servia para permanecer lendo, recolhido, não deveria aborrecê-lo. Ficaria em companhia das gaivotas. Era gostoso o silêncio do convés. Só o ruído das ondas e agora a música de algum rádio, a pouco volume, iniciando os compassos de Automn`s leaves. Fazia tempos não escutava aquela melodia. Lembrava uma excursão, há quantos anos? Trinta? Era solteira ainda. Dançava nas festinhas a bordo. O rosto iluminou-se. As ruguinhas dos cantos dos olhos como que desapareceram, a pele como que se aveludou novamente. A brisa agitou-lhe os fios grisalhos, desfazendo o penteado simples, de cabelos aparados.
Dançara Automn`s leaves noite adentro e depois fora para o convés com o rapaz, aproveitar a lua cheia. Era um rapaz moreno de olhos azuis, tão azuis! Namoraram durante toda a excursão e, encantados, olhavam juntos as gaivotas. Onde andaria agora aquele moço, tão docemente recordado trinta anos depois?
Aquela senhora, parecia já tê-la visto em algum lugar. O sorriso. Era o sorriso, era o jeito de postar-se no convés olhando as gaivotas. Lembrava alguém. Seria possível? Os cabelos grisalhos curtinhos... Ela possuía uma bela cabeleira castanha caída sobre os ombros. Bobagem, seria a sugestão da manhã amena, do vôo das gaivotas, daquela música, no ar. Aquela música... Não, não parecia exatamente com ela, apenas fazia-o lembrá-la. Estava ficando um sentimental com o passar dos anos. Claro. Boas lembranças não precisam ser esquecidas. Para que as vivemos senão para podermos recordá--las? Era uma moça alta, esbelta, aquela parece um pouco menor, e os olhos, os dela eram maiores. Mas o sorriso e o jeito de postar-se no convés. Coincidência. Apenas coincidência.
- Bom dia, senhora. Gosta de olhar as gaivotas?
- São lindas.
- São mesmo. Também perco horas acompanhando seus passeios pelo céu.
- Eu acho que ganho horas olhando para elas. Ganho também em recordações enquanto as contemplo.
- Como eu.
Os olhos azuis e os olhos castanhos encontraram-se e riram ao mesmo tempo demoradamente, tão demoradamente.
- O barco está atracando. Foi um prazer conhecê-la, senhora. Recomende-me a seu marido.
- Também tive prazer em conhecê-lo senhor.
O senhor moreno avançou pelo cais, lentamente. Nos olhos azuis luzia um sorriso de jovem. A senhora grisalha aconchegou o cachecol ao pescoço do marido, apoiou-se em seu braço e começou a caminhar com ele. Sorria, um sorriso de trinta anos atrás.






Gláucia Lemos é ficcionista e poeta. Esta crônica foi publicada na coluna Ultraleve, de A TARDE, há dez anos. A foto das gaivotas é de Matheusgf, retirada do Flickr.

AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS


Goulart Gomes

O livro AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS (Ed. Objetiva), organizado por Joaquim Ferreira dos Santos, merece uma crônica. Poucas são as coletâneas organizadas nos últimos anos que reuniram uma amostra tão bem selecionada quanto esta obra. Classificada cronologicamente, por décadas, o organizador teve o cuidado de escolher trabalhos muito representativos de cada período, numa precisa e deliciosa mostra do que de melhor já se escreveu nesse gênero, no país.

Um gênero que, aliás, já traz em si mesmo um desafio. É que algumas crônicas são evidentes, não deixam a menor dúvida quanto ao seu “caráter”. Mas outras são de difícil classificação, espreitando os limites do conto, das quais são primas. Esse é o caso de alguns textos inseridos na obra: “Os dois bonitos e os dois feios”, de Rachel de Queiroz; “O inferninho e o Gervásio”, de Stanislaw Ponte Preta; “Viúva inconsolável”, de Nelson Rodrigues e “Uma boneca ao relento”, de Ivan Lessa. Mas isso não tira o valor da antologia, ao contrário, enriquece-a e provoca a discussão, para quem gosta de uma boa briga.

A leitura das mais de 300 páginas é só prazer, desde “O nascimento da crônica”, de Machado de Assis até a sensacional “Bar ruim é lindo, bicho”, de Antonio Prata, passando por João do Rio, Lima Barreto, José de Alencar, Rubem Braga, Vinicius, Oswald e Mário, Graciliano, Paulo Mendes Campos, Drummond, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Millôr, Clarice, João Ubaldo, Cony, Ferreira Gullar, Jabor e tantos outros craques da nossa literatura. Confesso que comprei o livro meio desconfiado, ainda “escaldado” pela série “Para Gostar de Ler”, que era “obrigado” a ler na juventude e me deixou alguns traumas. Mas, feridas cicatrizaram: fui resgatado por essa bela obra.

Rachel de Queiroz, em “Talvez o último desejo”, desabafa por todos nós, premidos entre o beijo e o escarro, entre mandar tudo para o inferno e cair de joelhos ante o humano. Em “A Sra. Stevens”, Mário de Andrade nos apresenta uma das suas mais patéticas personagens. Humberto de Campos destrói toda a bucólica ilusão dos casamentos de contos de fadas em “A mosca azul”. Mas, ao contrário, Rubem Braga realiza o sonho de todos os apaixonados em “Os Amantes”. Nelson Rodrigues mais uma vez devassa a alma do brasileiro em “Complexo de vira-latas”. O inimitável Campos de Carvalho retrata toda a desolação de um estrangeiro em “Londres, novembro de 1972” . João Ubaldo faz o desabafo que todo escritor que já viveu situação semelhante gostaria de fazer em “Dialogando com o público leitor” e Arnaldo Jabor faz um terno e cômico relato pessoal em “Meu avô foi um belo retrato do malandro carioca”. Isso só para falar de alguns, não necessariamente os melhores, mas aqueles que mais me encantaram.

Além de extinguir o pouco que me restava de antipatia a crônicas e a seleções de “melhores”, a leitura de AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS me proporcionou horas de verdadeiro prazer, viajando na criatividade e talento dos nossos verdadeiros “heróis”.





Goulart Gomes é autor, dentre outros, de Minimal (Copygraf Editora, 2007).------------------------------------------------Visite: http://www.movimentopoetrix.comhttp://www.goulartgomes.com