sábado, 4 de agosto de 2012

HISTÓRIA DO PÉ E OUTRAS FANTASIAS

Gerana Damulakis

Em História do Pé e outras fantasias (Cosac Naify, 2012), de Le Clézio, com tradução de Leonardo Fróes, há 10 novelas marcantes. Marcantes no sentido de inesquecíveis. Lemos as narrativas e elas nos habitam. Nada há o que se assemelhe ao que está ao nosso lado, não é uma questão de identificação, mas de "pensamento universal". Sobre tal "pensamento universal" o escritor traz para o texto suas reflexões e chega a discutir sobre a história que já carregamos ao nascer. São muitas as histórias que foram traçadas, os pés sabem disso.

Escrever é igual ao metrô. Você já sabe aonde vai, não tem uma escolha infinita de destinações, há horários a respeitar, zonas obscuras e, além do mais, nem sempre é muito agradável. Mas há também tudo aquilo que você não pode prever, o que o transporta (sem querer brincar com as palavras) e expõe, o que o atinge momentânea ou permanentemente. Quero dizer as sacudidas, os ritmos, os encontros. Os olhares trocados, que às vezes deslizam pelo escudo das vidraças, as palavras captadas, os farrapos de frases, conversas, monólogos, instantâneos insensatos, fraturas fracionadas, opus incertum de cacos e de restos em todas as línguas, gestos parados, expressões isoladas de seu contexto, sorrisos extraídos de rostos, comissuras caídas, pálpebras fechadas, reflexos em lentes de óculos, suspiros, bocejos, arrotos. E as nucas, ah as nucas. Nunca se falará o bastante das nucas. Dobradas, oferecidas ao cutelo, ou fartas, musculosas, cortadas por rugas fundas. Nucas próximas ainda da infância, dois tendões pontiagudos escavando o cerebelo, ligados ao trapézio dos ombros. Melhor as nucas que as mãos, porque as mãos se escondem, as mãos se observam, elas já aprenderam a mentir como os rostos. E, melhor que tudo, os pés.

Trecho de "Quase Apólogo" em História do Pé.
Foto: Jean-Marie Gustave Le Clézio, Prêmio Nobel de Literatura 2008.