quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

AVALIAÇÃO ANUAL - PARTE II



Gerana Damulakis


Na parte I da avaliação anual das leituras, Istambul, livro de Orhan Pamuk foi tido como o de leitura mais gratificante, mas se miro o começo do ano, lembro como J. M. Coetzee foi o autor mais lido nos meses seguintes. E tudo graças a um encontro não marcado com Mirella Márcia Vieira Lima, autora de Confidência Mineira — o Amor na Poesia de Carlos Drummond de Andrade (edusp, 1995). Com Mirella e um amigo que a acompanhava o assunto girou em torno das leituras e ela elogiou muito Desonra (Companhia das Letras, 2000), enquanto eu lembrava de Dostoiévski, o mestre de São Petersburgo (Best Seller, 1997), ambos de Coetzee. Naquele dia eu havia comprado Naufrágios (Best Seller, 2003), de Akira Yoshimura, que acabei lendo de uma sentada, haja vista o arrebatamento que tal tipo de leitura me proporciona, por conta da profundidade emocional dos clássicos japoneses (creio que posso incluir este romance na definição para clássico embora o tempo talvez ainda não permita). Mas estávamos com o Prêmio Nobel de Literatura de 2003 e cabe apontar mais um título, Homem Lento, que a Companhia das Letras editou em 2007. Como quero enfatizar, dada a conversa com Mirella, fiz um levantamento dos romances de Coetzee já traduzidos para nossa língua. Li tudo que todavia não tinha lido: Juventude, A vida dos animais, À espera dos bárbaros — este último suscita uma vontade de fazer um paralelo com O deserto dos tártaros, de Dino Buzzati, e o poema de Kaváfis do qual Coetzee se serviu explicitamente no título. Com a maestria de seu estilo cativante, Cotzee pode contar qualquer história, pois aqui o encantamento vem da maneira de narrar. Isto tudo complementou o que já era conhecido, como o passeio com Dostoiévski, Vida e época de Michael K, Eizabeth Costello e Desonra.
Seguindo, do contrário não acabo e fico a escrever sobre livros...Vou destacar, dando um pulo de fevereiro para dezembro, os mais recentes títulos instigantes: Homem Comum, de Philip Roth e Homem em queda, de Don DeLillo, ambos saídos pela Companhia das Letras, 2007. Agora vou colocar aqui uma curiosidade: quantos romances usando o substantivo “homem” no título! Não é coincidência de tradução; em inglês seus títulos são The falling man, para Homem em queda, e Everyman para Homem comum. Já Slow Man é o título original do livro de Coetzee: Homem lento. Algo mais em comum entre eles? Muito em “comum”, dito de formas diversas — vale um texto, que farei de modo “lento” sobre isto, pensando na nossa “queda”, a inexorável condição do “homem”.
Por fim, um olhar para a ilha britânica, pois é de lá o autor Ian McEwan. Dele resenhei Na praia (Companhia das Letras, 2007), para a Tribuna da Bahia, texto que também está neste blog, mas a sugestão vai para Amsterdam (Rocco, 1999), que por si diz muito sobre a razão que faz McEwan ser considerado um dos mais importantes escritores contemporâneos. Parece que esqueço a literatura brasileira: para provar igual fascinação revelo o quanto foi devastador ler Histórias de literatura e cegueira(Record, 2007), de Julián Fuks, sobre Borges, Cabral e Joyce: vale muito este encontro emocionante com os três mestres da palavra.

ALVORADA


Flamarion Silva


Enamoravam-se. Não dos sabidos modos das gentes grandes. Que, também, estas, assim não de forma direta, enrolam os meios feito cipós. Nada dizem, mas, no não dizer, tudo dizem. Entendimento mais doido! Entendem-se. Assim meio bichinhos no farejar do amor.
Quero dizer que sim: enamoravam-se os dois. Porém, olhe só o descabimento! Manuelito de Dasdores, bicho mais feio se tirando de bonito, e logo para cima dela, Nióbe, toda do outro moço, Neco, já enamorada. Mas isso foi quando meninos, cheirando a leite.
Bichinhavam-se. Certos e incertos do amor e das quizilas, emaranhavam-se por caminhos de fontes, rios e matos.
Nhô Manuelito, bicho feio, arrepare que te mato.”
E no bojo do outro, Neco caía feito bicho, todo armado de unhas e dentes. Tudo pelo amor, só existido em sonho, e dormido, pela menina “Nióbe, que é bonita”, e ninguém supõe essa arte. Só Deus, este criador, que entre um bocejar e outro vai tecelando artifícios.
— E façam-se crescidos, Ele diz. E num momento aquela mangueirinha de antes nunca vista, arvoreceu. As paredes da casa, ontem apenas caiadas, Rosaram-se. E toda a gente, até Manuelito, que Deus, por engenhosidade nunca mata, tudo Deus coloriu, modificou, cresceu...
Nióbe bonitona, cheiosa. Neco um tipo fortão, de remar. Manuelito, nem digo, para desgraça de Neco, agigantou-se. Até que ela, a moça Nióbe, a Manuelito ofereceu um olhar derramado, certa feita. Foi quando suspirou:
Tão fortão o Manuelito; iche que arrepio toda!”
Desde então Nióbe teve os olhos despertados para este moço.
Hum, Neco logo se arrochou. Não de forma amostrada, ocultos os músculos, escondida no canto do olho uma outra arte, maliciosa:
Peixeirinha, peixeirona.”
E foi lá na rua do lado de lá que aconteceu um baile. Casa de seu Nezito.
Me concede a honra dessa dança, Dadinha?”
Dadinha toda se vai dançar com o moço que a convida.
Desafastada! Desafastada!”, recomendara o pai que a filha dançasse, pela honra, que é só o que pobre e moça têm.
Mais tarde, festa rolada, regada à bebida, moços empolgados, afogueados, a homens todos tirados.
Dança essa dança, Nióbe?”, pergunta Manuelito. Desconcedido o pedido, se já tão cansadinha a moça, se suara todo um disco com Neco, por vontade e gosto dela e dele; um caco, ela.
Mas Neco, Neco, diabo de premeditação! Bebeu no intento, o Cão.
Nióbe descansada no banquinho. Do outro lado da sala Neco nem diz. Diz, só no olhar:
Vem dançar com eu.”
Mas Neco, fui chamada ind’agora.” ressalva ela.
Chamou, quem, e eu, fui?”
Neco, Neco, fui chamada pelo Manuelito e não fui; isso dá briga.”
Adiante, adiante.”
Nada mais dizem. Já dançam pela sala.
Então é assim, sinhá falsa?” alto diz o moço Manuelito, já apegado no bracinho de Nióbe, repuxando-o.
Desafasta! Desafasta!”, diz, abrindo os braços, Neco.
Desafasta! Desafasta!”, dizem todos, abrindo.
Na sala apenas Neco e Manuelito; Nióbe entre eles.
Neco puxa a faca.
Peixeirinha, peixeirona.”
Manuelito não se acovarda, não. Abre as pernas, ginga o corpo. Um golpe, um bote, coisa assim parecida. Atarantada, a moça, no meio.
Manuelito larga o pé. Neco avança. Entre os dois, a moça. Neco enfia a faca, albiventre de virgem, sangrado.
Branquirubra, Nióbe jaz.




Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo, EGBA, 2006). Coleção Selo Letras da Bahia, 108).
Foto de Mari Curbani, retirada do Flickr.