terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA GLAUBER ROCHA



Espaço Glauber – o Ouro

Ildásio Tavares

Sair de minha choupana em Itapuã onde durmo ao embalo da música das ondas que Debussy tentou captar a vida inteira; sair do meu sossego atlântico, ainda mais de noite, só mesmo por alguma coisa muito sedutora ou muito do meu afeto. Desta vez, eu ainda tive o incentivo de uma musa inspiradora, uma amiga fiel que veio me pegar em casa e, na volta, me deixou no Iguatemi na cara de um táxi. E desta vez o estímulo foi duplo – sedução e afeto.Tratava-se da revitalização do antigo Cinema Guarany, rebatizado de Glauber Rocha e agora devolvido ao público baiano em grande estilo. A inauguração oferecia, de quebra, um clássico, O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, obra prima de nosso genial cineasta.
Este belíssimo filme ganhou, lá fora, o título de Antônio das Mortes para facilitar o público, mas para descaracterizar um aspecto da proposta do mais brasileiro dos cineastas de fazer um cordel cinematográfico, referencializado no título original. Gláuber usa, inclusive, a linguagem do cordel nos diálogos e a parodia no mis-en-scène. A película não podia ser mais nordestina, uma perfeita alegoria das relações de dominação no sertão, flagrando, de forma magistral, a catarse de Antônio das Mortes que desperta de seu letargo de matador de cangaceiros=sertanejos e parte para combater o verdadeiro mal configurado no latifúndio e nos seus coronéis - passa de dragão para santo, ao lado de Mário Gusmão feito S. Jorge. no final.
É digno do primeiro mundo, o espaço Glauber Rocha. Vi algo semelhante em Roma, um espaço multiuso onde assisti a um fabuloso concerto sinfônico. O espaço, não pretende ser uma mera casa de espetáculos. Possui variada vocação cultural – uma livraria, uma galeria, um restaurante quatro salas de projeção finamente equipadas, poltronas das mais confortáveis e com uma técnica de projeção que une o mais bem resolvido da imagem ao mais bem requintado dos sons, o que pude constatar na exibição do filme de Glauber cuja cópia, por sinal, rivaliza com o original em qualidade.
Lembro-me de que vi o filme original no Cine Capri, com Aloysio de Oliveira que aqui estava na produção do filme Capitães de Areia, (obra de Jorge Amado) de Hall Bartlett, diretor de um filme de sucesso na época, Fernão Capelo Gaivota, (Jonathan Seagull). Aloysio fora aos Estados Unidos com o Bando da Lua, acompanhando Carmem Miranda, e trabalhara com Walt Disney. O tempo todo, ele reclamou de defeitos técnicos do filme, na montagem, inclusive. Vendo o filme agora, na verdade não descobri nenhum. Acho que foi pura birra do meu amigo Aloysio que cobrava o filme fosse hollywoodiano, a última coisa que Glauber gostaria para um filme que fez com as vísceras do nordeste de fora.
Espero,que as autoridades prestigiem o esforço criativo que brindou a Bahia com este espaço. À frente da Fundação Gregório de Mattos um poeta da maior expressão, terá o desafio de rechear a praça; de Criar e recriar e de acrescentar mais ouro a este ouro que nos deram.

SPECTOR

Gerana Damulakis

O poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos leu a postagem que Kátia Borges colocou no seu blog, Madame K (http://mmeka.wordpress.com/), no dia 29 de dezembro. Trata-se de um texto de Clarice Lispector com considerações em torno de "se eu fosse eu". Não foi preciso mais: Luís escreveu o soneto seguinte. Desfrutem verso a verso, leiam e releiam.


SPECTOR

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Clarice, “se eu fosse eu” não faz sentido.
É como se eu pudesse ser alguém.
Pois nem ser eu sei ser, quanto mais quem
houvesse além de si haver havido.

Melhor deixar aquém o ser contido
e se deixar além de todo além.
Há muito que essa vida não faz bem
a quem vive pensando ou comovido.

Melhor não ser Clarice nem ser eu,
Clarice, nem ser eu a te dizer
o que é melhor – a ti, que já morreu

em mim o que queria conhecer
o que sentia, o que queria meu
um jeito, no sem jeito de viver.