quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

UMA BELA CANÇÃO

Gerana Damulakis

Lembro bastante da sensação causada pela leitura do poema "Uma faca só lâmina ou Serventia das idéias fixas", de João Cabral de Melo Neto: um atordoamento, questões sobre a poesia (ela é isso, então é isso?), a estupefação diante da riqueza daquela edificação. Sim, todos sabem, o poeta era um engenheiro, construía poesia. Mas é uma simples canção que tenho vontade de ler agora.

CANÇÃO
-------João Cabral de Melo Neto

Sob meus pés nasciam águas
que eu aprendia a navegar,
onde um perfil eu via
ao céu se abandonar,
e um grito de criança
imóvel no luar.

Sob meus pés nasciam águas
onde um navio ia boiar,
onde mãos de máquina
me saíam a procurar,
deitado numa rua,
perdido num lugar.

in Pedra do Sono

Foto: estátua de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), confeccionada pelo artista plástico Demétrio Albuquerque.
O Circuito da Poesia, em Recife, Pernambuco, é constituído pelas estátuas de:
João Cabral de Melo Neto, na Rua da Aurora (foto acima); Manuel Bandeira, também na Aurora; Clarice Lispector, Praça Maciel Pinheiro; Mauro Mota, na Praça do Sebo; Chico Science, no memorial do artista (Rua da Moeda); Solano Trindade, no Pátio de São Pedro; Ascenso Ferreira, no Cais da Alfândega; e Luiz Gonzaga, na Estação Central do Metrô.

A GRIPE "REBOLATION"

Marcelo Torres

A música mais tocada nas rádios, nas casas, nos carros e nos trios elétricos de Salvador é uma obra de arte chamada Rebolation (baianamente cantada como o “reboleichon”), que é de um grupo de pagode de nome bastante sugestivo - Parangolé.

E não é só na Bahia que o Rebolation do Parangolé está bombando, é em todo o Brasil. Essa pérola musical, obra-prima da novíssima poesia baiana já soma nada menos que 1,5 milhão de buscas no Google - Google que hoje é a palavra da salvação.

Para você ver que o rebolation não é pouca coisa, a imagem dessa dancinha no Youtube já foi acessada 586 mil vezes. Já a procura pela letra no Google é um pouco menor, apenas 81 mil pessoas quiseram conhecê-la.

[Se você acha que é mentira, entre no Google, escreva o termo “rebolation” e veja lá; vão aparecer números de acessos à música, à letra, ao dowload, aos vídeos, ao passa a passo da dança etc, veja lá.]

Alguém disse (parece que foi Nizan Guanaes, sempre ele), que a música baiana não é feita para a cabeça, mas sim para o quadril; não é para pensar, é para dançar. Ou seja, é para você esquecer a letra. E dançar, quebrar, requebrar. Rebolar.

Porque é de lei: todo ano tem que ter uma dança nova na Bahia. Já tivemos o fricote e o deboche, quando Luiz Caldas cantava “Olha a nega do cabelo duro, que não gosta de pentear, quando passa na Baixo do Tubo...”

Depois veio Sarajane cantando “Tá ficando apertadinha, meu amor, abra a rodinha, por favor, abra a rodinha”. Aí surgiu outro sucesso que dizia “Eu vou enfiar uva no céu da sua boca, e aí chupa toda, chupa toda, chupa toda”.

Outra obra-prima, um verdadeiro clássico da música e da dança na Bahia, dizia assim: “Desce mais, desce devagarinho, desce mais, desce mais um pouquinho... E vai ralando na boquinha da garrafa”.

Depois vieram a dança do tchan, o requebra, a volta no gueto, o arrocha, a dança da tartaruga, a dança da manivela, o vixe, mainha, o berimbau eletrizado, o levantou poeira, até chegar o “todo enfiado”, que é a dança do fio dental.

Voltando ao sucesso do Parangolé, ela só tem praticamente duas frases. Uma diz “O Rebolation é bom, bom, bom”, e repete várias vezes. A outra é “O Rebolation, tion, tion/ O Rebolation, tion, tion”, ou seja, “o reboleichon-chon, o reboleichon-chon”.

Enquanto o Ministério da Saúde só pede para o folião usar camisinha, a gripe do Rebolation derruba o Brasil. Matéria publicada neste domingo de carnaval (15/02), no Portal Terra, informa que até garçons de hotéis no Rio de Janeiro estão cantarolando esse hit do axé.

Acredite se quiser, o Rebolation fez a cabeça até do governador de São Paulo, o presidenciável José Serra, e da sua oponente, a ministra Dilma Rousseff. Embora não saibam dançar, eles já botaram o bloco na rua, e já não perdem nem aniversário de boneca, quanto mais carnaval.

Dilma e Serra estavam em camarotes vizinhos em Salvador. Ao passar pela frente dos camarotes, a cantora Ivete Sangalo brincou com os dois presidenciáveis. Do alto do seu trio, ela falou para Serra: “Tá com olhinhos de sono... Toma aí um energético”.

Mais adiante, parodiou uma música para dar uma bajuladinha na ministra. A música é Dalila e um dos versos diz “Vai buscar Dalila, vai buscar Dalila ligeiro”. Pois não é que Ivete cantou “Vai buscar Dilminha/ Vai buscar Dilminha ligeiro”?

Pois é, Serra e Dilma já começaram a rebolar atrás de voto. No São João, certamente estarão no rebolation junino em Caruaru e Campina Grande, comendo buchada de bode, montando em jegue e pegando criança pobre no colo.

Eles deram sorte por pegarem a onda do rebolation. Mas já imaginou se eles fossem candidatos no ano da “boquinha da garrafa”? E se o ano fosse o da dança da rodinha? Já pensou a dança do “todo enfiado”, hein? Como diz o outro, “quéta, minino”.

Em ano de eleição, Serra e Dilma deram as caras no carnaval da Bahia, terra de Jorge Amado e sua Teresa Batista, a rainha do rebolado. E até outubro o Brasil vai ser esse rebolation do Parangolé. O povo que dance. Ou que rebole. “O reboleichon-chon, o reboleichon-chon, o reboleichon-chon”.

Marcelo Torres, jornalista, cronista, baiano, mora em Brasília; email http://br.mc523.mail.yahoo.com/mc/compose?to=marcelocronista@gmail.com e blog http://marcelotorres.zip.net/; caso repasse, não altere o texto e mantenha os dados do autor.