terça-feira, 30 de dezembro de 2008

ESPAÇO UNIBANCO DE CINEMA GLAUBER ROCHA



Espaço Glauber – o Ouro

Ildásio Tavares

Sair de minha choupana em Itapuã onde durmo ao embalo da música das ondas que Debussy tentou captar a vida inteira; sair do meu sossego atlântico, ainda mais de noite, só mesmo por alguma coisa muito sedutora ou muito do meu afeto. Desta vez, eu ainda tive o incentivo de uma musa inspiradora, uma amiga fiel que veio me pegar em casa e, na volta, me deixou no Iguatemi na cara de um táxi. E desta vez o estímulo foi duplo – sedução e afeto.Tratava-se da revitalização do antigo Cinema Guarany, rebatizado de Glauber Rocha e agora devolvido ao público baiano em grande estilo. A inauguração oferecia, de quebra, um clássico, O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, obra prima de nosso genial cineasta.
Este belíssimo filme ganhou, lá fora, o título de Antônio das Mortes para facilitar o público, mas para descaracterizar um aspecto da proposta do mais brasileiro dos cineastas de fazer um cordel cinematográfico, referencializado no título original. Gláuber usa, inclusive, a linguagem do cordel nos diálogos e a parodia no mis-en-scène. A película não podia ser mais nordestina, uma perfeita alegoria das relações de dominação no sertão, flagrando, de forma magistral, a catarse de Antônio das Mortes que desperta de seu letargo de matador de cangaceiros=sertanejos e parte para combater o verdadeiro mal configurado no latifúndio e nos seus coronéis - passa de dragão para santo, ao lado de Mário Gusmão feito S. Jorge. no final.
É digno do primeiro mundo, o espaço Glauber Rocha. Vi algo semelhante em Roma, um espaço multiuso onde assisti a um fabuloso concerto sinfônico. O espaço, não pretende ser uma mera casa de espetáculos. Possui variada vocação cultural – uma livraria, uma galeria, um restaurante quatro salas de projeção finamente equipadas, poltronas das mais confortáveis e com uma técnica de projeção que une o mais bem resolvido da imagem ao mais bem requintado dos sons, o que pude constatar na exibição do filme de Glauber cuja cópia, por sinal, rivaliza com o original em qualidade.
Lembro-me de que vi o filme original no Cine Capri, com Aloysio de Oliveira que aqui estava na produção do filme Capitães de Areia, (obra de Jorge Amado) de Hall Bartlett, diretor de um filme de sucesso na época, Fernão Capelo Gaivota, (Jonathan Seagull). Aloysio fora aos Estados Unidos com o Bando da Lua, acompanhando Carmem Miranda, e trabalhara com Walt Disney. O tempo todo, ele reclamou de defeitos técnicos do filme, na montagem, inclusive. Vendo o filme agora, na verdade não descobri nenhum. Acho que foi pura birra do meu amigo Aloysio que cobrava o filme fosse hollywoodiano, a última coisa que Glauber gostaria para um filme que fez com as vísceras do nordeste de fora.
Espero,que as autoridades prestigiem o esforço criativo que brindou a Bahia com este espaço. À frente da Fundação Gregório de Mattos um poeta da maior expressão, terá o desafio de rechear a praça; de Criar e recriar e de acrescentar mais ouro a este ouro que nos deram.

SPECTOR

Gerana Damulakis

O poeta Luís Antonio Cajazeira Ramos leu a postagem que Kátia Borges colocou no seu blog, Madame K (http://mmeka.wordpress.com/), no dia 29 de dezembro. Trata-se de um texto de Clarice Lispector com considerações em torno de "se eu fosse eu". Não foi preciso mais: Luís escreveu o soneto seguinte. Desfrutem verso a verso, leiam e releiam.


SPECTOR

Luís Antonio Cajazeira Ramos

Clarice, “se eu fosse eu” não faz sentido.
É como se eu pudesse ser alguém.
Pois nem ser eu sei ser, quanto mais quem
houvesse além de si haver havido.

Melhor deixar aquém o ser contido
e se deixar além de todo além.
Há muito que essa vida não faz bem
a quem vive pensando ou comovido.

Melhor não ser Clarice nem ser eu,
Clarice, nem ser eu a te dizer
o que é melhor – a ti, que já morreu

em mim o que queria conhecer
o que sentia, o que queria meu
um jeito, no sem jeito de viver.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

PAISAGEM: A PONTE ESTAIADA OCTÁVIO FRIAS DE OLIVEIRA


Gerana Damulakis


A definição do Aurélio para o vocábulo ‘paisagem’ é: espaço de terreno que se abrange num lance de vista. O Rio de Janeiro é o campeão em matéria de paisagens belas, paisagens dignas de cartões postais. Tem o Cristo Redentor, o Pão de Açúcar, a própria Copacabana, para ficarmos nos pontos turísticos imediatamente lembrados, porque há outras belíssimas paisagens. A minha cidade vem em seguida: o Farol da Barra, o Porto da Barra, o Elevador Lacerda, uma quantidade enorme de praias, o Farol de Itapuã, para ficarmos também apenas nos lugares mais evidentes. Já a cidade de São Paulo não tem nada que nos faça querer olhar de novo. Claro está que tudo vem do meu ponto de vista, não há pretensão de plasmar verdades absolutas. Voltemos a São Paulo: o Viaduto do Chá ou a vista do restaurante Terraço Itália seriam suficientes para extasiar o olhar? Não acho, embora não esqueça as maravilhosas horas que passei no Terraço Itália em certa noite regada com paixão, por ocasião de uma Bienal do Livro de São Paulo: o manto de luzes que recobre a cidade vista lá das alturas do restaurante, a música brega apropriada para os enamorados, a boa comida e, no meu caso, a companhia do meu amor; foi inesquecível, sempre digo a Aramis o quanto adorei aquela noite já quase no final do século XX. Mas, neste dezembro, retornei a São Paulo carregando a minha tristeza, o peso da perda de meu pai, peso este que não me deixa e traz sombra ao meu olhar; contudo, eu fui com disposição suficiente para, deslocada daqui, abrir meu estado de ânimo para a música de Madonna e acabei me encantando com a vista do meu quarto de hotel no Morumbi: o novo cartão postal de São Paulo, a Ponte Estaiada Octávio Frias de Oliveira, inaugurada no dia 10 de maio deste ano. Achei, num lance de vista, um espaço tão belamente ocupado, me alegrei tanto ao admirar a arquitetura e a grandiosidade da ponte, que aí está a foto tirada do hotel. De noite ela estava iluminada para o Natal, cheia de estrelas, mas as fotos não estão tão boas. Posso dizer agora que a minha paisagem preferida em São Paulo é a visão da Ponte Estaiada.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

LIVRARIA CULTURA

Gerana Damulakis

Na postagem de 30 de novembro último, intitulada “Livraria Cultura”, José Saramago, em seu blog O Caderno de Saramago (http://caderno.josesaramago.org/page/17/), escreveu:
“A última imagem que levamos do Brasil é a de uma bonita livraria, uma catedral de livros, moderna, eficaz, bela. É a Livraria Cultura, está no Conjunto Nacional. É uma livraria para comprar livros, claro, mas também para desfrutar do espectáculo impressionante de tantos títulos organizados de uma forma tão atractiva, como se não fosse um armazém, como se de uma obra de arte se tratasse. A Livraria Cultura é uma obra de arte.
O meu editor, Luis Schwarcz, da Companhia das Letras, sabia que me ia emocionar este portento, por isso me levou. Também me tocou bastante a livraria da Companhia, ver estantes luminosas com obras de fundo, os clássicos de sempre expostos como outros fazem com as novidades. E todos juntos oferecidos ao leitor, que tem o difícil mas interessante dilema de não saber que escolher.”
No dia seguinte, parece que o encantamento ainda tomava conta das lembranças do autor de A viagem do elefante, haja vista o retorno ao mesmo tema: “Ontem deixei aqui algumas frases admirativas sobre as magníficas instalações da Livraria Cultura, em São Paulo. Ao assunto volto, em primeiro lugar para reiterar como justiça devida, a impressão de deslumbramento que ali experimentámos, Pilar e eu...”
A livraria Cultura é realmente uma obra de arte, como definiu meu autor de cabeceira. E ali estive por conta do entusiasmo dele. Na foto, como comentei com Kátia Borges, pareço, metaforicamente, é óbvio, uma criança visitando uma doceria ou uma loja de brinquedos, dado o sorriso de um canto ao outro. Para quem ama os livros, a Cultura é um templo.
Notinha: não estranhem tanta roupa em pleno dezembro, lembrem que havia uma frente fria no sudeste do país na semana dos shows de Madonna e, afora a desculpa verdadeira, lembrem que eu sou da Bahia, terra do sol e da alegria.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

NATAL

Manuel Anastácio


Há natáis que pedem poemas.
Outros não.
Os que pedem, pedem
Poemas de luz celeste em terra escura.
Outros não.
Os que pedem, pedem
Sofrimento em grossos traços de doçura.
E em gritos no tom que eclode
No peito frágil que enfim respira.

Outros não pedem.
Não podem. Não querem. Não são.
Outros não.

Há natáis que pedem o segredo
Que a luz aos sábios segredou
E que em caixinhas guardados
Em ouro, incenso e mirra se disfarçou.
Um traz silêncio, que ele dorme.
Um traz aviso, pelo perigo.
Outro, novidade, que o menino ignora.
Porque é de poema o sobreaviso, o aviso e a demora.
Ou não.



Manuel Anastácio é o poeta que assina o blog Da Condição Humana, cuja entrada pode ser feita pelos meus "Favoritos", ou com o endereço: http://literaturas.blogs.sapo.pt/

Foto do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, de Sweet Painting, retirada do Flickr.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ALÔ, SOLIDÃO!


Gláucia Lemos


No edifício em frente havia um senhor que cuidava dos passarinhos. Suponho que era aposentado. Tinha cabelos brancos e compleição franzina. Caminhava devagar, mas seus gestos eram precisos e cuidadosos. Pelo que eu observava, ele criava os passarinhos.
Todas as manhãs, enquanto eu estava regando a jardineira da minha varanda, via-o no seu quinto andar, à altura do meu, alimentando-os. Só que tinha uma particularidade, os passarinhos viviam soltos, não havia gaiolas nem telas limitando a liberdade dos bichinhos. Ele espalhava a ração sobre o parapeito da varanda, e uma infinidade de aves pequeninas vinha não sei de onde e pousava diante dele, inquietamente bicando os grãos de alpiste. Seriam rolinhas ou outras de porte semelhante. Todas as manhãs.
Havia alguma coisa poética naquela cena, que se completava com a presença de piotas pendentes do teto, em volta das quais, agitando vertiginosamente as asas, esvoaçavam beija-flores.
Nunca vi outras pessoas habitando aquele apartamento. O homem se movimentava rodeado de pássaros, enquanto eu regava minhas plantas no meu espaço.
Contemplava-o por longos minutos, gozando o direito da invasão sem culpa, e me recolhia a meus afazeres que eram muitos, na minha responsabilidade de mãe de três filhos em idade escolar, dona de casa sem empregada, mulher casada com piloto em intermináveis vôos pelos céus do mundo, e tão poucas vezes voando em direção à casa. Aquele velhinho, ao longe, começou a fazer parte da minha vida. Poderia ser meu pai. Se um dia não o encontrava alimentando os pássaros, ficava preocupada. Estaria doente? Teria mudado de endereço? Quem alimentaria os passarinhos na sua ausência? Naqueles dias, a cada intervalo entre o tempero do arroz e o alarme do forno, corria à varanda a ver se estaria de volta. Até que, mais tarde, ou no dia seguinte, ele lá aparecesse, para minha tranqüilidade.
Nisso passaram-se meses sem conta, talvez um ano ou mais, não posso precisar, vivendo a mesma rotina.
Uma tarde, concluída a jornada diária, enquanto descansava a esperar a hora para apanhar as crianças no judô, eu cochilava em cima das páginas de Hemingway, que estava sendo a minha companhia do momento, na absoluta falta de alguém com quem conversar.Com Hemingway eu andava freqüentando bares e estações ferroviárias, entre bêbedos, marinheiros e prostitutas.
Então, soou a campainha da porta. Que visita estaria chegando sem prévio aviso, quem sabe seria o zelador do prédio para medir o gás.
Com má vontade, espiei pelo olho mágico da porta de serviço. Não era o zelador, não reconheci a pessoa, o hall não estava bastante iluminado. Deixei a área de serviço, encaminhando-me à porta da sala , recriminando a portaria por não ter avisado a chegada de alguém.
Torci o trinco. Um senhor de cabelos inteiramente brancos, brancos como talco, estava de pé me olhando, com olhos miúdos e brilhantes, olhos de uma cor quase doirada, e um sorriso que não se completava, apenas se desenhava quase imperceptível na boca pequenina. Um sorriso que quase pedia desculpas por sorrir.
- Boa tarde - cumprimentei e sorri também.
Tenho medo de desconhecidos, mas vendo-o tão frágil, pequeno, parecendo indefeso, não senti receio, o sentimento era de quase proteção.
- Quem o senhor procura?
Ele desvelou o sorriso retido, com dentes pequenos e brancos.
- A senhora mesma. Sou seu vizinho, do edifício em frente.
Então o reconheci. Meu Deus, é o velhinho dos pássaros.
- Pois não? Sei. Pode entrar, faça favor.
Ele entrou, seus passos eram suaves. Sentou-se no sofá em frente a mim, discreto, parecendo tímido.
- Esteja à vontade – animei-o.
Então começou
- É porquê... Vejo sempre a senhora regando as plantas pela manhã. Fico observando o empenho com que cuida delas. São tão bonitas. Fiquei curioso.
- É verdade. Eu gosto de plantas, cultivo flores.
- Eu também gosto. Mas não tenho jardineira. Cultivaria crisântemos. Se pudesse.
- Pode vir vê-las. É só um canteiro.
Levei-o até a varanda.
- Aqui são begônias. Begônias vermelhas. Quando abrem as corolas demoram muito para secar, às vezes aturam abertas até dois meses.
- Demoram tanto assim? Por isso que estão sempre floridas. Parecem rosas, lá da minha varanda pensei que eram rosas.
- É verdade. Parecem um buquê de rosas pequenas. Mas para mantê-las assim é preciso cuidado, nunca molhar os caules. São frágeis. Já os hibiscos só duram vinte e quatro horas. Murcham em um dia.
- As plantas são como as pessoas, cada uma com seus caprichos.
- Ou seus problemas – completei.
Ele concordou afirmando com a cabeça.
Voltamos para a sala, ele se sentou no mesmo lugar. Nunca notara que ele me observava, eu era quem o contemplava com seus passarinhos. Procurei ser gentil.
- Posso servir um café, aceita?
- Aceito. Mas não quero incomodar, é só uma visita.
- A visita me alegra.
Fui para a cozinha. Rapidamente retornei com a xícara fumegando café solúvel. Ele tomou lentamente enquanto falava. A voz era mansa como um chuvisco.
- A senhora gosta de passarinhos?
- Muito. Sempre fico olhando o senhor cuidando dos seus. São muitos, não é?
- Muitos. Mas não são meus. Sou o copeiro deles – ele riu divertido – Não sei de onde vem. Espalho alpiste e eles aparecem.
- E os beija-flores?
- Os beija-flores são uma estratégia. Eu ponho mel na água dos caqueiros e eles vem beber. Não sei como é que de longe pressentem a presença do mel.
- Mel?
- Sim, mel de abelhas. Compro especialmente para eles. Eu não como mel, é açúcar, mas eles não têm restrições, acho que é porque ainda não têm a minha idade...
Ria enquanto falava. Rimos juntos.
Então se levantou e me entregou a xícara com um resto de café.
- Obrigado. Vou embora. Venha lá em casa amanhã para ver os passarinhos se alimentando.
- Está bem. Obrigada pela visita. Vou ver os passarinhos amanhã quando deixar as crianças na escola.
Abri a porta, ele saiu manso como chegara. Voltei para dentro com um resto de sorriso. Eu iria ver os passarinhos, iria sim.
Fui.
Entrei para uma sala quase vazia de móveis. Uma arca colonial junto à parede. Acima, em contraste, imensa tela bastante colorida com motivo abstrato. Havia uma cadeira de balanço austríaca, ao lado de um revisteiro abarrotado em frente à TV de 33 polegadas. Persianas na porta larga envidraçada deixavam penetrar uma claridade frouxa, que não chegava a se espalhar pelo espaço da sala.
O velhinho sorriu ao me ver, e me conduziu à varanda. Rolinhas e outras aves miúdas bicavam o farto alpiste espalhado no mármore do peitoril, indiferentes à minha presença e ao ininterrupto rumor dos carros que transitavam lá embaixo. Permanecemos ali, em silêncio, para não afugentá-las. Ele tinha um olhar carinhoso para as aves, quase paternal. Alguns minutos e voltamos à sala onde tratei de me despedir, sem que ele concordasse.
- Não se apresse. Tenho que lhe servir alguma coisa. A senhora toma chá?
- Não se preocupe, eu tenho que ir.
Ele, porém, já se dirigia à cozinha falando enquanto caminhava.
-. Nunca recebo visitas, por isso não preciso de cadeiras. Sente aqui mesmo na cozinha. Moro sozinho, sabe? Minha mulher morreu há muitos anos, meu filho pouco me visita, não tem tempo, o trabalho...
Havia uma bancada de cozinha americana. Sentei-me em um banco alto, enquanto ele preparava um chá que tinha o cheiro bom de canela, e serviu duas xícaras. Uma colocou em minha frente e começou a tomar da outra. Em silêncio. Os dois. Eu não sabia o que falar. No ar pairava uma cumplicidade. Ele sempre sorria, um sorriso brando, parecendo contente, os olhinhos doirados brilhando entre as pálpebras rugosas. Quando terminei descansei a xícara em cima da bancada e me levantei.
- Agora preciso ir. O chá está muito gostoso, o senhor sabe preparar um ótimo chá. Obrigada por me convidar. Quando quiser, pode ir ver minhas begônias. Agora, porque o senhor falou deles, estou pensando em plantar também crisântemos. Pode ir ver quando quiser, é só avisar.
Fui saindo. Ele me acompanhou até a porta e recomendou:
- Cuidado com a porta do elevador que às vezes fica travada. O perigo do poço!!! Esta semana, eu escapei por pouco, quase caí.Volte outro dia, não precisa avisar, eu não saio de casa. Vou esperar a senhora.
Acenei e entrei na cabine, para o que tive que desemperrar a porta defeituosa. Por que não consertam esta porta? – pensei. Alguém ainda vai cair.
Fiquei com o velhinho na cabeça. Amanhã na varanda vou acenar para ele. Enfim muda alguma coisa, tenho um amigo para me sorrir e apreciar minhas flores. Que velhinho mais simpático!
Dia seguinte fui cumprir minha rotina. Regador na mão, rumo da jardineira. Ele ainda não estava na varanda. Demorei mais tempo cuidando do canteiro, arrumando um espaço para as mudas de crisântemos, enquanto esperava para vê-lo chegar a alimentar os pássaros. Ele não veio. Passei a manhã inquieta, vigiando, a pequenos intervalos. Não apareceu naquele dia. Nem no outro, nem no outro.
Nunca mais o vi. Pouco a pouco os passarinhos abandonaram a varanda. Eu desisti dos crisântemos.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta com 33 títulos publicados. Seu mais recente romance é Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).
Foto "Crisântemos Coloridos", de LoveCats 2006, retirada do Flickr.

domingo, 21 de dezembro de 2008

STICKY AND SWEET: EU FUI!!!

Gerana Damulakis


O atraso de 2 horas no show de Madonna do dia 18 em São Paulo foi irritante, mas quando ela começou, esquecemos de tudo. O estádio apagou as luzes, creio que todos nós ficamos arrepiados e ela surgiu esplendorosa. É um fenômeno, uma prova de determinação, de profissionalismo e ela passa a certeza de que podemos alcançar o que desejarmos se houver persistência. Acabado o show, eu estava rouca. Levei as duas horas cantando, gritando, dançando, até fiz o papel de Justin, já que ele não estava na hora da música "4 minutes". Tudo, o ambiente, a alegria, tudo faz a pessoa sentir a vida intensamente. Pena que no Brasil ela não conseguiu o que pedia em outros países: que ninguém bebesse nem fumasse. Vi muita gente fazendo ambas as coisas e me pergunto para que beber, basta a embriaguez da música, da festa. Garanto que se curte mais profundamente quando se vive em plena consciência, sem bebida para embotar os sentimentos. Mas o espírito de manada faz com que todos achem que só é possível curtir com a cabeça embaralhada. Nossa, eu não queria transformar este texto em crítica aos que bebem. Volto para ela, a mulher de cinqüenta mais bela e mais cheia de saúde, a mulher que é pura energia positiva. Adorei ver e ouvir Madonna, passei 2 horas me sentindo como ela disse: "I am the queen, you are the king".

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

INFINITUDE

Gláucia Lemos


Se me vieres, pouco te pedirei.
Não alteres teus horários
para ajustares aos meus.
Se o fizeres
te amarei com alegria.

Não desafies semáforos
para me veres mais cedo.
Se o fizeres,
a cada dia morrerei de susto,
e te amarei com remorso.

Não me jures amor eterno
para pintares sorrisos em minha face.
Se o fizeres,
pensarei na impermanência dos destinos
e te amarei sem certezas.

Não te peço que respeites meus ciúmes
para me veres tranqüila.
Ah, se o fazes...
Com quanta gratidão eu te amarei!

Só te peço que se um dia me vieres
rasgues de mim todas as solidões.

E me serás da terra, todo o bem,
e todo o mal serás.
E a tua completude
eu amarei sem qualificativos,
com esse amor absoluto de mulher.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Sua vasta obra está atualmente com 33 títulos publicados.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A ÚLTIMA CEIA

Flamarion Silva

Olho minha mulher sentada à mesa. É Natal. Ceamos. Posso olhá-la à vontade, até certo ponto. Cronometro na cabeça o limite do meu olhar. Às vezes, propositalmente, ultrapasso essa barreira cronológica, só para ouvir seus xingamentos, só para sentir no meu coração apaixonado todo o ódio que ela nutre por mim. Ela bate na mesa com sua mão firme, que antes, isto bem antes, me acarinhava. Agora bate. Mas não me fere. Cada vez que a provoco é para que saiamos da inércia em que nossa vida se enfiou. Grita comigo. Minha linda mulherzinha esbraveja comigo e um pouco da comida da sua boca salta e bate no meu rosto, na minha boca. Abaixo a cabeça.
– Homem submisso. Fracote. Molambo – sei que ela diz essas coisas de mim. Mas o que ela nem ninguém percebem é que, ao me abaixar, submisso, o meu amor se nutre um pouco da vida dela. A língua, lenta, lambe o lábio e recolhe o alimento triturado, amassado, salivado pela sua boca.
***
– Quer mais frango? – ela perguntou outro dia. Quando? Olhe como o tempo é engraçado! Faz tanto tempo. Já se passaram tantos Natais.
– Quer mais frango? Vamos, queira, vou servir.
– Posso pegar uma coxa? – pergunto.
– Animal. Animal. Não pode ver comida. Tudo para se amostrar. Quando vê gente fica assim – ela diz, nervosa, e, sem modos e sem paciência, enfia com raiva um garfo enorme na coxa do frango, na maior coxa, na mais gorda coxa, e atira-a dentro do meu prato, respingando óleo na minha roupa branca de festa, manchando-a. Não reclamo, não lhe digo nada.
– Porco. Animal. Não pode ver comida.
***
Sorrio. Não repare, ela sempre foi assim estourada. Veja como me ama: agora mesmo acabou de derramar no meu prato um pouco de carne que sobrou. Ninguém quis.
– Como “ninguém.” Então há mais alguém além de mim e ela?
Nossa! Como a mesa está cheia! Filhos, genros, noras. E netinhos tão lindos!
– Vem cá para o vô, vem.
– Vô não – responde o menino, emburrado – Vô não – e me chuta a canela ferida, e dói, e sinto que sangra, mas não digo nada, ninguém pode perceber, estragaria o momento, não seria higiênico.
O sangue, misturado ao pus da ferida, gruda na calça. É uma ferida antiga que não sara. Já pensou, mostrasse o magoado sangrando e aí mesmo é que ela, com razão, me chamaria de porco.
Sorrio.
– Ah, zanguei – faço uma cara engraçada, de condoído, para o meu netinho.
– Macaco feio – ele me chama.
Todos sorriem. Veja como foi engraçado e como todos se acabam no riso.
– Posso pegar outra coxa? – pergunto.
– Não! Já vou tirar a mesa – e rápida raspa a tigela, os pratos, toda a comida da mesa.
No corredorzinho, indo à cozinha, olho seu corpo de moça, cinturinha delgada, nádegas volumosas, os cabelos compridos... Aspiro o rastro de alfazema que ela deixa.
– Pare de farejar a comida – ela diz, virando-se para mim, gritando, quase soltando, saltando a dentadura da boca, quase caindo de tonta.
***
– Calma, minha mãe. Calma – ouço a voz dela, num outro canto – E o senhor, meu pai, pare de aborrecer minha mãe.
– Ora, minha filha, não fiz nada – respondo, agora percebendo minha filha já de pé, segurando a mãe para não deixá-la cair. Tão parecidas!
Num outro canto, ouço cochichos, sibilos, cicios.
– Internar.
– Onde? Como?
– Mas quem vai querer o traste?
– Agüentemos mais um pouco. Logo emborca, embarca mesmo.
– Vaso ruim não quebra, minha filha – diz alguém com voz cínica, bêbada e esganiçada.
– Não fale assim dele. É meu pai.
Viro-me para ele, o cretino do meu genro e...
– Imbecil! Imbecil! Imbecil!
E três batidas firmes na mesa.
Minha voz saiu clara, mas todos insistem em dizer que, de tão bêbado, nem consigo falar. Deve ser o maldito bolo crescendo na minha boca que me obstrui a voz. E, agora, todos me condenam e chegam ao consenso de que é melhor internar.
– E rápido. Amanhã mesmo. Amanhã mesmo, logo cedo.
Cochichos. Sibilos. Cicios.
***
Daqui a pouco a festa acaba e todos vão embora. Festa de que mesmo? Ah, Natal.
– É tarde. Vocês dormem aqui. Arranja-se lugar.
– Eu tenho pena. Não passa de um doente.
– Então, interna-se. Não há outro remédio.
– Durmam no meu quarto, que é grande. Já está dormindo. Bebeu demais...
– Quê? A festa já acabou? – pergunto-me – Para aonde foram todos? E este silêncio... O maldito relógio. Não consigo ver as horas. A catarata anuviou tudo.
– Meu bem. Meu bem – digo alto, isto algum dia. Dúvidas. Pensamentos. Fantasmas que me assustam – Xô! Xô! Quê? Internar? Levanto-me. Upa, upa, quase caio. Internar? Ora, mas quem eles pensam que são? Separar, separar assim, cruelmente, duas vidas que Deus... E o que Deus uniu, o homem não separe. É um mandamento. Um mandamento. Um... Para sempre juntos, para sempre.
***

Dirijo-me ao quarto dela. O meu fica um pouco mais lá no fundo do corredor. Casa grande... Faz anos que nos separamos. Mas estamos juntos. Repare bem: juntos. É um paradoxo, eu sei, mas o teto ainda é o mesmo. Habitamos o mesmo espaço, partilhamos tantas coisas de anos: o cheiro dela, a voz, o andar, antes lépido e fagueiro, hoje arrastado. É esse som. É esse cheiro de alfazema. Os gritos e os desarranjos. E foi principalmente o ronco que, tantas noites, passo a passo pelo corredor, levou-me ao quarto dela, e lá, quietinho, no escuro, ouvia-o com prazer. De certa forma, esses pequenos detalhes preenchem minha vida, sem os quais não vivo. A faca. E o que Deus uniu, o homem não separe.
A porta aberta.
– Venha, venha por aqui. Escuro, mas o tato já sabe o caminho. Cuidado, o pé da cama. Aqui. Aqui, um momento, paremos. Ouça:
– Ronc! Ronc! Ronc!
– É o ronco dela. Aqui os pés. Aqui a barriga. Aqui a cabeça. E aqui, mais embaixo, o coração.
Ergo a cabeça e as mãos para o céu escuro do quarto e desço de vez, uma, duas, três vezes.
– Meu amor! Meu amor! Meu amor!
***
O escuro do quarto não me deixa ver o corpo. Sinto-o.
O corpo meio curvado, feito criança no útero. Sangue. Criança no útero, abortada. A boca travou.
– Não, não faça birra. Birra é uma palavra do meu tempo, quer dizer “teimosia.”
Os lábios ainda mornos, viçosos e carnudos... Ainda como antes. Sinto-os com os meus. O gosto de sangue na boca. Beijo de sangue...
– Ela apagou – digo por fim, com a certeza de quem desperta de um sonho tenebroso. Acendo a luz e vejo dois corpos na cama. No mesmo instante, minha mulher abre a porta do quarto, olha a cama e vê o corpo ensangüentado. Leva as mãos à boca e arregala os olhos. Um grito de pavor ecoa por toda a casa.

Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo/ EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006).

MARIA DE CADA PORTO




Gláucia Lemos


Foi sob a impressão do filme A ostra e o vento de Walter Lima Filho, que fui à procura do romance homônimo que lhe dera origem, e encontrei seu autor, Moacir C. Lopes, nas prateleiras de uma estante virtual. À minha disposição lá estava o elenco de romances escritos por ele. Ao que parece, a maioria com temática praieira, reveladora de uma preferência bastante sintonizada com a minha.
O autor começou marinheiro, evoluindo no sentido cultural, chegou a tradutor e professor de Literatura.
Sou dos leitores que, conquistados por um autor, não se satisfazem com pouco, vão à cata de sua produção, até o limite que lhe seja imposto. Assim fui atraída por Maria de cada porto, romance com o qual Moacir Lopes inaugurou sua trajetória literária. Ele o escreveu para matar o tédio, durante as viagens de marinheiro, nas horas de descanso, e narrou justamente a vida dos homens do mar, no período da Segunda Guerra Mundial.
O livro tem início com a explosão do navio Bahia, no qual o protagonista, Delmiro, estava servindo. A narrativa, em primeira pessoa, evolui marcada pelos dias em que permaneceu, com vários companheiros, em uma das balsas que ficaram à deriva, todas ocupadas pelos sobreviventes do barco atingido, quase amontoados a ponto de ficarem com pernas e flancos submersos, dado o pequeno número de balsas com que contavam.
O desenvolvimento é bem balanceado. Temos o sofrimento dos náufragos, ao sol e ao sereno, sedentos e famintos, desesperançados de qualquer socorro, sem mínima condição de comunicação com a base ou com outros navios, assistindo a morte de companheiros vencidos por todas as carências, ao enlouquecimento de alguns, e ao suicídio de outros, farejados todos pelos tubarões ao redor das balsas, ou feridos por inevitáveis contatos com as águas-vivas trazidas pelas correntes marítimas. Dia após dia de desespero e noites de atormentadas vigílias. No interregno da narrativa dessas horas, conhecemos as recordações de passagens referentes à vida normal da marujada, fazendo o contraponto pitoresco. Os amores de ocasião ou de sentimento deixados nos portos, as festas e divertimentos improvisados, as brigas, as perseguições e a camaradagem, tudo é exposto com a verdade das diferentes personalidades dos protagonistas. Moacir Lopes é um excelente narrador dos fatos – reais ou fictícios, tornando leve a evolução da história, inteiramente despreocupado de retórica. Interessa-lhe o cunho de verdade dado às ocorrências, a definição do perfil de cada personagem, quase todos identificados por alcunhas bastante criativas, dando-nos, muitas vezes, a impressão de estarmos diante de pessoas vivas agindo e interagindo conforme os fatos.
A Maria de cada porto vem a ser todas as Marias, Dolores, Ninas e Detinhas que os amavam realmente ou só por um dia; que os esperavam em cada porto, ou simplesmente se deitavam com os marujos para lhes proporcionar o carinho ausente durante a longa solidão das travessias. Temos nesse livro um documento, ou um relato vivo, ainda que configurado em estrutura de romance, talvez atos e fatos nascidos da imaginação com raízes na experiência cotidiana de quem experimentou de perto e na pele, as agruras da vida no mar durante uma guerra. Isso com a consciência da absoluta insegurança, e a certeza de que cada olhar ao horizonte, cada passo na rampa de acesso ao barco, cada retorno aos postos após a breve licença em cada porto, cada noite ilusória nos braços de qualquer Maria, poderiam ser os últimos de cada um.

Gláucia Lemos lançou recentemente o seu 33º título, o romance Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

INTROSPECTO

Gláucia Lemos


Gosto de viver comigo mesma,
sou minha amiga.
Quando uma saudade bate o ponto
sou paciente para me assistir
à inútil chuva dos meus olhos.
Lavar o rosto depois,
passar batom,
e ir ao cinema.

Não me incomodo de olhar o reflexo
de um sorriso gasto.
De sentir raiva
por não sentir raiva
de andar sorrindo para a solidão.

Talvez não saiba amar.
Mas é tão feia a noite
quando descubro
que ando gostando de viver comigo mesma.


Gláucia Lemos é poeta, cronista e ficcionista, autora de 33 títulos publicados. A foto traz a capa de seu mais recente romance, intitulado Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

domingo, 7 de dezembro de 2008

O MAGISTRAL CONTO DE NATAL


Gerana Damulakis


Se entrarmos nas histórias que envolvem um homem e uma mulher numa noite de Natal chega imediatamente a lembrança de O. Henry, pseudônimo de William Sydney Porter, com seu magistral conto “O Presente dos Magos”, aproveitando o Natal e a arte de dar presentes inventada pelos magos para narrar uma prova de amor, o amor com generosidade, o menos ambivalente dos amores, talvez o sábio, o mago amor.
Temos um casal pobre: cada um deseja intensamente presentear o parceiro. Eles têm dois únicos tesouros: ele, um relógio de ouro, que pertencera ao avô, mas que levava preso num cordão de couro gasto, fazendo-o sentir vergonha ao consultá-lo: ela, portadora de uma vasta cabeleira, como uma cascata caindo-lhe pelas costas. Sem que um soubesse da angústia do outro para resolver o problema de como obter dinheiro e comprar um presente, acabam demonstrando a mesma intensidade de amor (ou a mesma maneira de senti-lo).
Ele vende o relógio e compra um jogo de pentes de tartaruga legítima, pentes orlados de pedraria, para os cabelos da amada. Ela vende o cabelo, que é cortado tão rente a ponto de conferir-lhe a aparência de um meninote, e adquire um bela corrente de platina digna do relógio do marido. É o conto magistral, sem outros comentários.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

DEZEMBROS



Aramis Ribeiro Costa


A mente lerda, entorpecida, arrasta
Em lentidão o tempo, idéias, membros
A tarde é morna e a própria vida é gasta
Na lassidão completa dos dezembros.

Nas esperanças dos janeiros basta
A vida que desbasta dos novembros
E a tarde se acomoda, lenta e vasta
Na tessitura lorpa dos dezembros.

O mormaço conjuga clima e fados
E em planos inconclusos e adiados
A tarde dezembral planeja e lembra.

São tempos vesperais que sinos plangem
Enquanto idéias poucos ventos tangem
E a mente, mole, sem querer, dezembra.

Aramis Ribeiro Costa é ficcionista e poeta. "Dezembros" está no livro Espelho Partido (FUNCEB, 1996).

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

OS DIFERENTES GOSTOS DO DOMINGO


Maíra Correia



Certas coisas cheiravam a certezas e tinham gosto de domingo, naquele tempo em que domingo ainda era feliz, naqueles dias que domingo significava respirar tão fundo e balançar na rede. Dias de acordar às 5 horas da manhã e ir até a mangueira, com aqueles olhinhos curiosos e uma caneca com açúcar e canela em mãos, maravilhada com a descoberta de que o leite não vinha em saquinhos.

Dias de jabuticaba no pé, vaga-lumes, visitas às plantações de café, passeios de camionete, cavalos selados, alface fresco na horta… Assim foi minha infância, grande parte dela passada em companhia do meu avô, por aqueles pastos, por aquele pomar com jabuticabas e mangas… e por mais urbana que eu seja, são aqueles dias de caçada de vaga-lumes, de andar de trator, de abrir porteiras e passear por entre os pastos, que ficaram na memória como as mais doces recordações do meu avô.

É o cheiro de pé de pitanga que sinto todo domingo e por mais que aquela primeira cadeira do lado esquerdo da mesa esteja vazia, são as mesmas histórias que ecoam pela minha mente quando olho pra ela.

Era sempre assim, ele sentava com uma latinha de cerveja com água tônica ou uma taça de vinho e repetia aquela história de como subiu naquele navio aos 16 anos e de repente estava no Brasil. As risadas ainda podem ser ouvidas ao fundo, quando ele narrava o inconcebível episódio do frango assado que ele esqueceu na mala. A história das três namoradas antes da vovó, o namoro com a vovó no cinema, as balinhas para distrair os cunhados, o casamento em Aparecida, naquele tempo onde não existiam estradas e os carros andavam só a 30 km por hora. O sorriso de canto de lábio e as histórias das caçadas de tatu, de espingardas e de laxantes em garrafas de café… Ah! As histórias com gosto de domingo!

As plantações, as idas até a máquina de arroz, as brincadeiras na palha, olhar admirada todo aquele maquinário que te fazia se sentir uma formiguinha, ficar toda orgulhosa no colo do seu avô, enquanto ele te ensinava como o arroz da palha, de repente, está dentro de um saco e voltar para casa senhora de si, carregando aquele primeiro pacote de arroz que você empacotou, como quem carrega o pote de ouro do fim do arco-íris.

Férias tinham gosto de bolo de milho e pamonha, naquelas tardes em que seu avô chegava com as espigas que tinha apanhado antes da colheita de verdade… e lá estava sua avó na beira do fogão, ensinando as mil coisas que você poderia fazer com o milho, quando, na verdade, você a olhava arteira, imaginando se não poderia roubar um ou outro milho para dar para os cavalos.

Domingo tinha um som peculiar… som de bolero, som de músicas antigas, som de Mercedita tocada na vitrola. Domingo tinha som de vovô… sentado naquele mesmo sofá, tentando entender as particularidades do controle remoto, aquele aparato semi-alienígena. Você sentava no tapete e ria, explicando como ligar. Depois ele veio a se tornar o expert dos controles remotos e descobriu as maravilhas da tevê a cabo e vocês passavam o dia vendo aqueles programas portugueses, onde você não entendia nenhuma das piadas e ele ria e falava daqueles “alfacinhas de Algarve”.

Os dias de shopping tinham gosto de reclamações, onde ele, impaciente, implorava para sua avó comprar logo o que tinha que comprar, mesmo quando ele não ia junto para as compras, ele reclamava quando demoravam… e esperava, sentado naquela poltrona em frente a porta de entrada, só para dizer : “caipiras que são assim, não podem ficar na cidade grande que já se deslumbram”.

Vovô adorava comprar carros, sua maior diversão era escolher camionetes, negociava por meses antes de comprar de fato. Adorava gado, cavalos, leilões e plantações. Vovô adorava dar bezerros de presente… e vovô adorava domingos.

E foi em uma terça que prometemos estar no final de semana naquele hospital, e foi em uma terça que minha mãe disse que ele tinha que melhorar porque no final de semana o levaríamos para casa. E foi em uma terça que ele sorriu e brincou pela última vez e foi em uma terça que ele balbuciou umas poucas palavras, as últimas palavras ditas. Mas esperou o domingo… aquele domingo que prometemos ir ao hospital para levá-lo pra casa e foi em um domingo que o cheiro de pitanga deu lugar ao cheiro mórbido das flores, e foi em um domingo que as gargalhadas deram lugar aos olhos inchados e ao choro. E foi em um domingo que cumprimos nossa promessa, e foi em um domingo que o levamos pra casa, mas não do jeito que queríamos, mas foi em um domingo… assim que chegamos no hospital, porque os domingos eram os nossos domingos… porque minha mãe tinha dito e prometido que meu irmão estaria lá… naquele domingo… e que o levaria pra casa… foi em um domingo.. o último domingo.



Maíra Correia é paulista e publica seus contos no blog http://www.vidaemposts.wordpress.com/
Foto "Santo Domingo sunset", de pericles 1492, retirada do Flickr.

sábado, 29 de novembro de 2008

LUCIDEZ



Manuel Anastácio


Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
dentadas.
Não te lances ao pescoço das cobras
Não te lances
Não
Não te lances
Não te lances aos transes depressivos da repetição
Aos lances regressivos da depressão
Não
Não te lances
Não avances
Deixa-te estar, a ver cada réptil passar sob os teus pés
E a rirem em ti da sua frigidez
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas penadas
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas geladas
Não te lances se tens medo
Se tens medo, não avances.

Mas só se tiveres medo.



Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana: entre em http://literaturas.blogs.sapo.pt/, ou use a entrada pelos meus Favoritos.

"Lucidez", por yang_83, retirado do Flickr.

MANHÃ


Gláucia Lemos


Pela manhã os pombos vêm. Esvoaçam, irresponsavelmente, e se empoleiram na fiação elétrica. Não ficam. Só alguns. A maioria retoma o vôo, manobrando com graça as asas simétricas, à pouca altura, planando como se um grande prazer lhes chegasse da exibição no espaço, na frouxa claridade semi-aberta. O vôo é uma suprema beleza inatingível a muitos. É um poder. Não só de Ícaro foi o maravilhoso sonho. Todos, alguma vez, elaboramos nossas asas de cera e nos alçamos à meta de algum sol. Inútil tentar saber quantos terão se erguido da queda; quantos terão carregado uma sutura no rosto, um coração transplantado, um pé defeituoso, uma cicatriz no peito, resquícios do seu sonho de Ícaro. E todos continuarão tentando, faz parte da programação existencial. Quem a traçou?
Não está fazendo muito sol nesta manhã. A luz vem coada, lembrando manhãs mal acordadas de cidades da Chapada, ou pós-madrugadas de beira-mar. Tampouco está frio o clima; há uma perceptível friagem, que mais parece umidade, muito confortável para se sentir. Silêncio de templo e nenhuma ventilação. Só agora, neste mesmo momento em que escrevo, uma folha da begônia vermelha no cachipo de bambu, em um ângulo da sala, se põe a tremer levemente, anunciando um princípio de aragem.
Ao longe tem início um ronco de motor, como ronronar de gato. Pressinto que principia a findar este momento de paz. Uma hora, na eternidade, de absoluta paz, que raramente se deixa acontecer, pelo menos para mim, que pouca importância tenho para as horas todas da misteriosa eternidade. Hora episódica, como toda paz. Sem calor, sem ruídos, sem preocupações, sem cobranças existenciais, sem discursos, sem insistência de luz intensa ferindo a vista. Instante de comunhão com beleza e bem-estar. Comunhão com Deus.
Os ruídos dos ônibus lentamente vão se multiplicando. Vão conquistando espaços a poluir, dentro do espaço límpido, puro, belo, tranqüilo, que os antecede. O relógio badala sete vezes. A campainha da porta vibra, chega a titular da cozinha. Minha manhã acabou, tem começo a manhã de todo o mundo.
Ouço, dos longes da minha memória, a voz de Agostinho dos Santos: A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor. Não sei se Agostinho sabia que cantava a verdade. Felicidade é fugaz, está no script: Cai como uma lágrima de amor.


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, com 33 títulos publicados.

Foto "Manhã em Itapuã", de Briza Mulatinho, retirada do Flickr.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA REFORMA ORTOGRÁFICA DO PORTUGUÊS

O reconhecimento de uma língua é a afirmação de uma nacionalidade.


Maria da Conceição Paranhos



LÍNGUA PORTUGUESA
Olavo Bilac

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!




É minha intenção esclarecer aspectos relacionados à Reforma Ortográfica do Português, prevista para vigorar em janeiro de 2009, não sem antes tecer considerações que julgo de relevância em torno do conceito de língua.

O Brasil, repetidamente se diz, é um país de sorte porque, apesar das dimensões continentais, todos falamos a mesma língua – é o que se diz. Também é comum ouvir que as línguas européias ou africanas ou chinesas, para citar algumas, têm muitos dialetos.

A unidade da língua não exige a imposição de uma norma única. Entretanto, dentre as línguas românicas, o português é uma das que possui norma mais rígida, ao contrário da língua espanhola com diversidade de normas lingüísticas não só no campo fonético, mas no léxico e no sintático. Uma maior flexibilidade normativa livraria grandes setores da população da inútil e deformante carga provocada pela aprendizagem na própria língua materna de todo um conjunto de “normas” estranhas ao seu saber lingüístico prévio, como tão bem expressou Celso Cunha ao se referir à língua espanhola. (Cunha:1985)

O que é, então, língua, dialeto?

É do lingüista Max Weinreich a boutade : “língua é um dialeto com um exército e uma marinha”. A realidade lingüística de fato, parece confirmar Weinreich. A distinção habitual entre língua e dialeto está plantada em critérios mais políticos do que lingüísticos.

Correndo o risco de não ser lida por monótona, indico o óbvio: língua é um sistema de comunicação formado de sons vocais (fonemas), que se agrupam para formar unidades dotadas de significado (morfemas), que se agrupam para formar palavras, que se agrupam para formar frases, que se agrupam para formar textos.

Para a Lingüística, ciência da linguagem que é, não há nada que distinga língua de dialeto. Ambos os sistemas têm léxico (uma lista de palavras) e gramática (conjunto de regras de como as palavras se combinam para formar frases, parágrafos e textos). Quem fala um idioma nacional e um dialeto regional é tão bilíngüe quanto quem fala dois idiomas. Por que, então, alguns sistema lingüísticos são considerados idiomas e outros, não?

Dialeto ou dialecto (mesmo brasileiros deste modo preferem) vem do grego diálektos, composto de diá, (através), e léktos, (fala). Seria, segundo alguns, uma espécie de fala “errada”, um linguajar defeituoso, não conforme às normas consideradas “cultas”, estabelecidas pelos gramáticos. Claro, neste momento falamos de língua oral, da modalidade oral da língua. A primeira definição de dialeto (que teria inspirado as posteriores) se baseava numa visão que a elite ateniense do período clássico tinha em relação à fala tanto das camadas populares quanto a dos estrangeiros (não-atenienses, mesmo se gregos).

Nos dias correntes, considera-se dialeto qualquer expressão lingüística que não a língua oficial de um país. Um dialeto com freqüência é uma variedade lingüística regional do idioma oficial que ganhou prestígio sócio-econômico – soi disant político e cultural (ah, cultura, quantos crimes se cometem em seu nome!). Mas dialeto também pode ser uma língua sem qualquer parentesco com a língua padrão.

O que faz uma língua ser considerada dialeto – mas isso não é regra absoluta e indiscutível - é a ausência de literatura ou de tradição literária. Por óbvio, o seu não-reconhecimento pelo Estado ou mesmo a sua falta de prestígio – critério extralingüístico, meramente sócio-econômico. Há dialetos que reúnem as três condições, inclusive, porém basta uma delas para que um falar regional seja expurgado enquanto língua!

Em relação à presença de literatura, é preciso lembrar que algumas línguas ágrafas, como as nativas da África e da América, têm rica literatura oral, transmitida por gerações em séculos. No entanto, para as elites brancas ocidentais, ciosas de sua tradição escrita, as línguas ágrafas não possuem literatura simplesmente por não produzirem livros...

Unidade na diversidade

Serafim da Silva Neto insistiu na unidade da língua portuguesa no Brasil, entrevendo as delimitações dialetais espaciais não eram tão marcadoras como, por exemplo, as isoglossas (linhas que demarcam a fronteira de um traço lingüístico) da România Antiga. Entretanto, Paul Teyssier reconhece que na diversidade dos falares essa unidade se rompe.


A realidade, porém, é que as divisões ‘dialetais’ no Brasil são menos geográficas que sócio-culturais. As diferenças na maneira de falar são maiores, num determinado lugar, entre um homem culto e o vizinho analfabeto que entre dois brasileiros do mesmo nível cultural originários de duas regiões distantes uma da outra (1982: 79).

A prática dos estudos sociolingüísticos no Brasil demonstrou que o Português do Brasil é heterogêneo e variável, mas também plural e polarizado. Há dois sistemas heterogêneos: a “norma culta” e a “norma vernácula”, ou Português Brasileiro culto e Português Brasileiro popular – como querem alguns autores

Essa diversidade se fundamenta em condicionamentos de caráter sócio-histórico, haja vista

● o multilingüismo (contacto entre falantes de múltiplas línguas distintas);
● os fatos da demografia histórica;
● a mobilidade populacional dos escravos;
● a escolarização no Brasil, no período colonial e pós-colonial.

O que é uma língua?

O reconhecimento de uma variedade lingüística como língua é questão meramente política, já se disse. Por exemplo, o catalão foi reconhecido pela Espanha como língua oficial, ao lado do castelhano, do galego e do basco, depois de ter sido violentamente reprimido pela ditadura franquista. Em Barcelona, é possível comprar edições bilíngües de periódicos diários como El Periódico de Catalunya, em catalão e espanhol.

O Estado terá sempre que temer. E, justamente por isso, reprimir. O reconhecimento de uma língua é a afirmação de uma nacionalidade.

O ponto nevrálgico é o que diz respeito ao “prestígio” de uma variedade. Alguns falares são estigmatizados por motivos históricos ou sociais. No Brasil, que busca lugar no olimpo do Primeiro Mundo, tudo o que lembre o passado rural é alvo de desprezo. Daí o preconceito contra o dialeto caipira e o nordestino, sagrados como ícones do atraso cultural.

Na tentativa de estabelecer distinção entre língua e dialeto que não se apoiasse em fatores políticos ou sociológicos, alguns buscaram critérios relacionados aos aspectos comunicacionais.

O lingüista romeno Eugenio Coseriu propôs o chamado critério da intercompreensão, segundo o qual dois falares podem ser considerados dialetos da mesma língua se seus falantes conseguem compreender-se mutuamente; caso contrário, teremos duas línguas diferentes.


Fraternalmente desunidos

Os falares se distinguem cada vez mais à medida que nos deslocamos num mesmo território. A comunicação entre moradores de duas aldeias vizinhas pode ser plena, ao passo que a comunicação entre habitantes de cidades distantes milhares de quilômetros é quase impossível.


Língua, língua natural, língua artificial...

Nos próximos cem anos 90% das línguas desaparecerão – os estudiosos o prevêem por dedução lógica. Muitos por não terem o status de idiomas nacionais, sendo em muitos casos línguas ágrafas, de comunidades tribais. A causa dessa destruição em massa de línguas é a constrição dos idiomas ditos de cultura. Nas comunidades tribais da África e da América, o imperialismo lingüístico-cultural branco tem mais um violento aliado: os pregadores religiosos de seitas cristãs fundamentalistas, que combatem não só a fé desses povos, mas também as línguas dos nativos, “coisa do diabo”. Hoje, a língua também é um dialeto com um missionário.

Para alguns lingüistas – e esta parece ser a opinião que prevalece - o português falado em Portugal, no Brasil, em Moçambique, em Angola, na Índia ou na China é uma só língua. As variações ou variantes provêm ora da extensão do léxico, ora da grafia, ora do uso mais ou menos corrente de certas expressões ou estruturas sintáticas, ora da pronúncia, a par da incorporação da influência de outras línguas.

* * *


A Reforma Ortográfica da Língua Portuguesa

Unificação da grafia do português

Unificar a grafia do português nos países lusófonos é antes um gesto político, no qual parece estar o mérito da ação. Encoraja-se a arregimentação em torno de um fator de identidade nacional e um como que “estado de alerta” do vigor do idioma e dos traços comuns entre as culturas que se expressam por meio dele. Isso tende a fazer surgir um maior intercâmbio entre as obras literárias produzidas nesses países.

O português é a terceira língua ocidental mais falada, atrás apenas do inglês e do espanhol.

O filólogo Antônio Houaiss, representante brasileiro durante as negociações com Portugal (que terminaram em 1990), apontara no livro A Nova Ortografia da Língua Portuguesa cerca de 40 mudanças que teriam de ser incorporadas ou à ortografia brasileira ou à portuguesa.

As mudanças, no entanto, dependeram da aprovação do protocolo por Portugal e Cabo Verde. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa existe desde 1990, mas nunca foi implementado, pois precisava da ratificação de todos os oito membros da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Apenas três deles --Portugal, Brasil e Cabo Verde-- haviam começado a adaptar suas legislações ao acordo.

Para agilizar o processo de reforma da língua, os chefes de Estado da CPLP decidiram, numa reunião de cúpula em meados deste ano, que bastaria a ratificação do acordo por três países para que ele passasse a valer. O protocolo assinado pelo Brasil em 21 de outubro de 2004 permitiu a entrada em vigor do acordo com apenas três ratificações.
Testamento precoce

Monteiro Lobato, num de seus livros da série do Sítio do Pica-Pau Amarelo, atribuiu a Emília a tarefa de fazer uma "reforma da Natureza": coisa de corrigir alguns mal-feitos do Criador, e consertar o que parecia errado aos olhos de retrós de uma boneca de pano. Ele também tentou "consertar o Brasil" várias vezes, chegando até a enfrentar prisão devido algumas de suas sugestões.

Nenhum de nós será preso pela reforma da Língua Portuguesa,

Não sabemos se nossa bela língua irá se beneficiar dessa reforma. Mas ela está aí e será a língua que irá comandar os destinos do nosso país.

Inelutável que já é a reforma ortográfica do português (escrito, ainda bem que só!), leia-se abaixo.

Uma vez unificado, o português auxiliará a inserção dos países que falam a língua na comunidade das nações desenvolvidas, pois algumas publicações deixam de circular internacionalmente porque dependem de "versão". Um dos principais problemas que as novas regras vão acarretar, no entanto, será o custo da reimpressão de livros. (VEJA on LINE, agosto de 2007)

[...]

O português, segundo estudos, é a quinta língua mais falada no mundo – cerca de 210 milhões de pessoas – e tem duas grafias oficiais, o que dificulta o estabelecimento da língua como um dos idiomas oficiais da Organização das Nações Unidas (ONU) . A ortografia-padrão facilitará o intercâmbio cultural entre os países que falam português. Livros, inclusive os científicos, e materiais didáticos poderão circular livremente entre os países, sem necessidade de revisão, como já acontece em países que falam espanhol. Além disso, haverá padronização do ensino de português ao redor do mundo. (IDEM)

Sílvio Elia situava o fenômeno lingüístico entre a cultura e a natureza humana. “As línguas não são objetos naturais de estudo, pois se incluem na investigação não das ciências da natureza e sim na das ciências ditas humanas, ou melhor, culturais. Por isso são de natureza essencialmente histórica” (ELIA, 1993, p.103).
Em muitas e distintas oportunidades rejeita a tese de que a língua de um povo é língua natural e que a língua dos chamados homens cultos é artificial.

Hoje sabemos perfeitamente que nenhuma das duas é produto da natureza, pois que ambas representam realidades ‘culturais’, usado o adjetivo com o valor que tem em Sociologia. (ELIA, 1956, p.43).

Portanto, não há língua melhor que outra, já que cada língua representa a cultura desse povo e não há juízo de valor que possa destruir a especificidade de cada cultura – a língua, sua expressão mais relevante

A partir de 1º de janeiro de 2009 as mudanças começam a valer.


Confira o que muda na Língua Portuguesa no Brasil:


Alfabeto

O alfabeto da língua portuguesa passa a ter 26 letras, com a inclusão oficial do k, w e y.

Acentuação

1. Paroxítonas que perdem o acento agudo

1.1. Com ditongos abertos tônicos éi e ói (como idéia, paranóico).


1.2. Com acento circunflexo no penúltimo o do hiato oo (s) (como vôo, enjôo).

1.3. Cujas vogais tônicas i e u são precedidas de ditongo decrescente (como feiúra, baiúca).

2. Hiatos em ee

▪ perderão o acento circunflexo (como crêem, dêem, lêem, vêem).


3. Palavras homógrafas (com a mesma grafia, mas com pronúncia diferente) (como pára, pêlo, pélo e pólo).


4. Trema

Será totalmente eliminadas das palavras portuguesas ou aportuguesadas (como cinqüenta e tranqüilo).

Única exceção: nomes próprios estrangeiros, como “Müller”.

5. Hífen

Não será mais empregado em prefixos terminados em vogal seguidos de r ou s. Neste caso, dobra-se o r ou o s. Exemplos: antirreligioso, antissocial, minissaia.

Será utilizado com os prefixos hiper-, inter-, super- seguidos de palavras iniciadas por r, como “hiper-resistente”.

Também será utilizado em prefixos terminados em vogal (como ante-, contra, semi-) seguidos de vogal igual ou h no segundo termo. Exemplos: micro-ondas, anti-higiênico e pré-histórico.




● A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é composta por oito países: Brasil, Portugal, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

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Obras citadas:
CUNHA, Celso. Em busca de uma norma objetiva. A questão da norma culta brasileira, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, 56-57.
ELIA, Sílvio (1956). Fundamentos Historico-Linguisticos Do Português Do Brasil . Rio de Janeiro, Lucerna, 1994.
_________. Língua e herança cultural. A Língua Portuguesa no Mundo. Colóquio. Letras. Livros sobre a Mesa, 120, abr. 1993, p. 196.
SILVA NETO, Serafim da Silva. (1986[1950)]. Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Presença.
SILVA NETO, Serafim da Silva. (1960). A língua portuguesa no Brasil. Problemas. Rio de Janeiro: Acadêmica.
ROBERTS, I. e KATO, M. (1993) (orgs.). Português Brasileiro: uma viagem diacrônica. Campinas: Editora UNICAMP.
TEYSSIER, Paul. (1982[1980]). História da língua portuguesa. Lisboa: Sá da Costa.


Maria da Conceição Paranhos é formada em Letras, cursou o Bacharelado na Faculdade Santa Úrsula da PUC do Rio de Janeiro, e a Licenciatura, pela Universidade Federal da Bahia. Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal da Bahia. Ph.D. pela Universidade da Califórnia, Berkeley.
Ficcionista premiada nacionalmente, no gênero conto, dramaturga, tradutora, poeta, apresenta significativo número de publicações em livros, antologias, revistas e periódicos de modo geral.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

BRINCADEIRA


Gláucia Lemos


Eu brinco de te amar, de madrugada,
resguardo no meu colo os teus segredos,
e te amo o dia inteiro às escondidas.

Brinco de te esquecer no fim da tarde,
quando se mata o dia no letárgio
do infausto aguardo, e do inacontecido.

À noite brinco que és tu quem me guarda.
Sou a “rainha da cocada preta,”
sou nau onde navegas teus delírios.

A mão direita sem saber da esquerda...
Um olho crê e o outro ainda duvida...
- Ah! eu só brinco para agüentar viver.



Gláucia Lemos é ficcionista e poeta, tem 33 títulos publicados. Seu mais recente romance (foto da capa) é Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

ESSA TERRA


Gerana Damulakis

O romance Essa Terra, de Antônio Torres, foi editado agora pela Best Bolso. Para quem não conhece o primeiro livro da Trilogia Brasil é uma oportunidade e tanto. Preço acessível, edição primorosa. É imperdível a leitura do romance que consagrou Antônio Torres.

domingo, 23 de novembro de 2008

NOTÍCIA À MODA DA CASA


Gláucia Lemos


O encontro foi o de praxe, mas a novidade, o novo endereço.
Poeta mora é em torre de marfim, lá no alto inatingível. Alguns. Alguns também residem em apartamentos, e quando se cansam dos antigos, trocam por novos, assim, tão depressa como se tirassem o escolhido do bolso da camisa. Só assim. Como se fossem figuras de joguinho de computador. Estala o dedo, muda de palácio. Depois é só distribuir e-mail. Novo endereço dois pontos.
E fomos todos reunir na nova moradia do poeta. Novidade? Mais espaço, mais ventilação. O principal, porém, não tem nenhuma novidade, é a acolhida, a descontração do encontro. Grupo pequeno como é bom, meia dúzia de inteligente bom-humor. Reunimos com uma ausência, por conta de acepipe baiano que castigou a leitora crítica, fazendo falta na alegria da noite.
Como sempre, por conta dos afazeres, o casal de doutores chegou por último, para fazer contraponto com a moça que bateu ponto tão mais cedo, que nem o anfitrião tinha chegado à casa.
Jantamos à portuguesa, bebemos à baiana sem álcool, ninguém precisa de combustível para acelerar a animação.
Lá para as tantas, o anfitrião, entusiasmado com a aprazibilidade da varanda, desacomodou todo o mundo da sala para fruirmos a aeração do outro ambiente. Literatura mesmo não aconteceu dessa vez. Literato também joga conversa fora. Até que o doutor tentou iniciar uma conversa pertinente, perguntando a alguém sobre projetos imediatos, mas alguns assuntos interferiram, e o clima da noite estava mais para rir do que para poetar. E rolaram salsichas, pasteizinhos e olhos-de-sogra, refrigerantes diet e comuns, pontuados com piadas inocentes. E lá estivemos, como sempre, até as 10 da noite, quando todos se despediram ao mesmo tempo.
Bom mesmo é uma noite por mês entre amigos despretensiosos, com muita descontração e um tanto de descompromisso; o cotidiano de todos nós já é bastante comprometido com os envolvimentos existenciais que nos são atribuídos pela condição de estarmos vivos e atuantes. Graças a Deus que estamos. E todos, mais uma vez, ficamos felizes, com uma felicidade merecida, aguardando o próximo encontro.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

ATUALIZAÇÃO DA ANTOLOGIA


Gerana Damulakis

Na Antologia panorâmica do conto baiano — século XX — (Ilhéus: Editus, 2004), que saiu na Coleção Nordestina nº 37, procurei uma vasta gama de representantes do conto na nossa terra, incluindo até os contistas bissextos, mas que fizeram nome na literatura. Ainda assim, a crítica, isto é inevitável em se tratando de antologias, apontou ausências. Ora, a antologia deixou de fora os autores não nascidos na Bahia, mesmo que aqui tivessem passado boa parte de suas vidas, pois que há de haver critérios. Ausentes estavam Nelson Araújo, Marcos Santarrita, Ayêska Paulafreitas, Judith Grossman e outros, todos inegavelmente contistas cujos textos antológicos são de fácil identificação porque evidentes em suas obras. Desta feita, na atualização, o critério vai gerar mais ausências. Explico: além de conservar de fora os que não nasceram em terras baianas, estão ausentes baianos que vivem no chamado Sul Maravilha e, talvez, em demais maravilhas Brasil afora. Mas a intenção não é suscitar polêmica, é fruto de fatos desagradáveis. Sem invenção, há autores que residem fora da Bahia que expressaram seu desacordo em fazer parte de antologias produzidas aqui. Como em tantas situações na vida, muitos pagam por poucos, não há como fugir da triste verdade. O caminho foi, para não divulgar nomes, optar por não incluir autores que não residem na Bahia.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

JOSÉ SARAMAGO: 86 ANOS


Dia 16 de novembro José Saramago completou 86 anos. Vale a leitura do texto que ele postou naquele dia no seu blog: O Caderno de Saramago.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

14 DE NOVEMBRO DE 1901: NASCEU SOSíGENES COSTA


O PAVÃO VERMELHO

Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

domingo, 9 de novembro de 2008

O POEMA QUE É UM ROMANCE

Gerana Damulakis


Preciso terminar a introdução da minha antologia atualizada e não consigo. Digo para Cassas que somente depois que concluir a penosa tarefa escreverei alguma coisa sobre seu mais recente livro. Mas algo me puxou, reli o livro de Cassas, senti tudo de novo, aquele encantamento e não vou esperar: vamos ler A mulher que matou Ana Paula Usher (História de uma paixão), editado pela Imago, neste 2008.
Luís Augusto Cassas é um poeta experiente, senhor da palavra, do verso, da estrofe, do poema, fazendo com eles o que desejar. Tenho seus livros e sei do seu caminhar. Não sei é se, por ser este o mais recente livro, sou levada e me posicionar desta forma tão tomada pela emoção, ou se acontece o mesmo a cada vez que recebo um livro dele saído da editora. Sim, porque ele é um poeta que sabe nos arrebatar. Porém, ao ir escrevendo e lembrando que realmente já senti tudo isto por conta de outros dos seus títulos, ainda assim este de agora está me parecendo mais estonteante. É um poema, é um romance, é a história de uma paixão. No final dá uma vontade louca de perguntar se não haveria uma maneira de, em lugar da morte do amor, fazê-lo renascer qual uma fênix. Não, quem renasce não é o amor, é o sujeito amoroso que das trevas procura e encontra a luz. Ora, isto é confundir ficção com realidade. A poesia, por mais confessional que ela possa ser se comparada aos demais gêneros literários, não deixa, por outro lado, de ser a ficção do sentimento. Só que há versos que nos fazem viajar na história da paixão, como em “Torpedo à Moda Antígona”: contigo eu moraria/ numa casinha de palha/ à beira da praia/ onde o vento faz a curva/ e viveria de brisa/ bebendo em teus lábios/ a água que vem da chuva”. É incrível o efeito do livro sobre o leitor, até esqueci que meu olhar deve ser o de uma observadora da literatura e não apenas uma deslumbrada leitora.
O título não deve ser associado nem ao poderoso e emblemático personagem, a amortalhada Senhora Madeline de Usher de Edgar Allan Poe, nem a qualquer outra que se chame Ana Paula, pois não precisamos de pontes. O livro está dividido em partes com seus títulos, contém uma estrutura perfeita, uma organicidade tal que, ao se deparar com seis páginas de prosa, a impressão do leitor é a de que o conjunto em prosa é inteiramente necessário. A prosa vem com o mesmo ritmo dos poemas, numa cavalgada frenética. Leia assim, sem tomar fôlego; depois, releia com calma, aí será de tirar o fôlego!
O poema “Um”, uma conjugação do ato amoroso, está disposto como a seguir: “quando estou em ti/ e tu estás em mim/ inverte-se o princípio/ do início ao fim/ no primeiro momento/ há movimento:/ eu sou tu és/ no segundo momento/ há desfalecimento:/ não sei quem sou/ acaso és?/ no terceiro momento/ viramos fragmentos:/ o nós e o vós/ habitam em nós/ depois não há nada/ e o espírito do só/ recolhe-se ao pó”. Conclusão: é um poema perfeito, leia com amor. Melhor, com paixão. Os poemas “A Cama”, Doença & Cura”, “Herança” ( em linha contínua), “O Vento e a Estrela”, “Dia dos Namorados”, “O Círculo”, “Epílogo”, A Busca do Mito”, “As Núpcias”, suscitam a vontade de começar reproduzindo-os aqui.
“O Discurso de Lilith nos Lençóis de Or” está fechado em cinco capítulos curtos: a primeira mulher, ou seja, o mito de Lilith é irresistível para a literatura, os escritores ficam encantados com a gama de significações encerrada nesta lenda, pois, criados por Deus em condição de igualdade, Adão e Lilith viviam juntos até que ela cometeu o primeiro pecado — que não foi a mordida na maçã — ao proferir o nome d’Ele; expulsa, então, do paraíso graças aos seus excessos, afoiteza e galhardia, e suas inquietações, Lilith passou a simbolizar a desventura, o mal, o diabólico exagero. Adão não suportou a solidão e rogou a Ele uma mulher, mas isto é outra história.Voltando ao “Discurso de Lilith...”, asseguro que é uma peça poética para ser desfrutada com releituras várias, dados a genialidade do discurso e o ritmo impresso; numa certa altura leio: “Sou Sodoma saqueada, Paris desfigurada, Berlim destronada, Londres transtornada. (...) Até ontem fui Noite. Meu nome é Luz”. Já em “A Mulher que matou Ana Paula Usher”, é restaurada “ a luz do meu arco-íris bombardeado”, porque o livro é um reencontro com a luz após um amor doloroso.
O autor sabe trabalhar a matéria amorosa com extrema energia, recorrendo tantas vezes ao acervo mitológico que reforça o imagético mundo de sua poesia. Uma poesia que não receia as exigências discursivas, que conhece os ritmos e os movimentos da língua portuguesa para apontá-los diretamente rumo às brilhantes senhas literárias. O certo é que Luís Augusto Cassas transcende sempre... e daí encanta o leitor.

sábado, 8 de novembro de 2008

DE JOSÉ SARAMAGO

...porque os livros do mundo, todos juntos, são como dizem que é o universo, infinitos...

Ensaio sobre a cegueira

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Gerana Damulakis

Nasceu em 6 de novembro de 1919, em Porto, Portugal. Não há melhor homenagem do que a leitura de seus versos. A poeta, contista e tradutora morreu em 2004, aos 84 anos, em Lisboa. Recebeu o Prêmio Camões em 1999.
Entre os tais versos que me acompanham, como costumo escrever aqui, estão estes:

A bela e pura palavra Poesia/ Tanto pelos caminhos se arrastou/ Que alta noite a encontrei perdida/ Num bordel onde um morto a assassinou.

Mergulhar na poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen, sendo ela uma das maiores poetas da língua portuguesa contemporânea, é mergulhar num mar puro. Digo mar, pois é evidente a importância do mar na sua obra, e digo puro porque a sua é uma poesia que chama por esta palavra.

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


Foto retirada do site http://www.instituto-camoes.pt/

PARABÉNS PARA CRISTOVÃO TEZZA!

Gerana Damulakis
Cristovão Tezza venceu o Prêmio Portugal Telecom de Literatura em Língua Portuguesa com O Filho Eterno (Record), publicado no ano passado. Também ganhou o Prêmio Bravo! Prime de Cultura, na categoria melhor livro do ano, e o Jabuti para melhor romance, além de ter sido agraciado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte.
O escritor catarinense vive em Curitiba e é autor de vários títulos, entre os quais lembro com prazer as leituras de A suavidade do Vento, Juliano Pavollini e Trapo.

Foto de stat.correioweb.com.br

terça-feira, 4 de novembro de 2008

VERSOS INESQUECÍVEIS QUE ME ACOMPANHAM



Gerana Damulakis

Meu primeiro choque com a literatura foi com os versos de Manuel Bandeira. Sim, foi um choque. Habituada aos livros porque a biblioteca da minha casa era enorme e livros eram objeto de conversas cotidianas, eu já andava com fumaças de leitora desde a tenra idade de 7 anos, mas aquela coisa que me deixou estupefata e cuja sensação ainda guardo comigo, esta foi causada pelos versos de Bandeira. Queria muito saber qual era o poema. Lembro da sala de aula, lembro da carteira escolar, lembro do livro de gramática da língua portuguesa, lembro que estava folheando e parei naquele poema e tomei um choque e entendi. Cada vez que leio a poesia de Bandeira (e leio sempre, pois que me faz falta se levo algum tempo longe dos seus livros), penso se estou lendo justamente aquele poema. Nunca saberei qual foi, já que são tantos os versos, as estrofes, os poemas de Manuel Bandeira que amo.
Minha memória está repleta de versos próprios para cada momento. Agora, sei que nunca terei a certeza de qual poema me fez mergulhar sem volta para o mundo da poesia. O que me resta? Como escreveu Bandeira:
"A única coisa a fazer é tocar um tango argentino".

ALEIVOSIA



Nilson Pedro






Cuidado com tudo isso
que não te espera,
que tudo isso que não
te espera nada mais é
que teu fado: e eis que
vem vindo algo mais
que à noite não se vê, não se
distingue na floresta
das visagens, das insônias,
dos meandros deste ser
que se desvela.
Cuidado sobretudo com
as palavras que deixaram
de existir.





Nilson Pedro posta no blog BLAG (http://nilsonpedro.wordpress.com/), com entrada nos meus Favoritos. Foto "Palavras...", por Maria Dalva, retirada do Flickr.

domingo, 2 de novembro de 2008

UM CASO ANTIGO


Flamarion Silva



Não vou afirmar que havia sentimento. Apenas ficando, como dizem os jovens de hoje. Ela também nunca demonstrou amor rasgado por mim. Talvez quisesse também só ficar. Mas olhe a tentação em que o diabo nos meteu. A sua madrinha, não a do diabo, a madrinha da moça, deu-nos a ocasião para pensar que nosso amor era imenso, e tudo simplesmente por ter viajado e deixado a menina sozinha em casa. Tanto bastou para que ela e uma amiguinha armassem um encontro naquele recinto à noite. Convocou-nos, a mim e ao Luciano, para que lá estivéssemos depois de a luz do motor apagar. Foi ponto frisado não deixar ninguém nos ver e, para garantir o sucesso do investimento, tínhamos de ir pelo fundo do quintal.
A Luciano e Zelda coube a cozinha. Eu e ela ficamos com a sala. Percebes como éramos inocentes? Havia dois quartos na casa. Mas, que fazer? A inocência é assim mesmo: um descobrir natural das coisas, sem malícia nem cálculo, um ir na correnteza da vida. Fomos, do corredor para a sala, do encostados na parede para o chão, do chão duro e frio... Dureza e frieza do chão que nos lembrou da cama macia e quente. Por favor, senhor leitor, não vá pensar que essa idéia saiu de nossas cabecinhas, percebeste que a necessidade foi provocada pelo desconforto a que o chão nos acometia. Olhe lá, hein, não te precipites no julgamento. A necessidade nos deu o quarto.
A cama era boa. A lamparina, pendurada num prego, foi regulada para menos. É que a chama tremeluzia e desenhava sombras na parede, dava medo, por fim apagamos, não a nós, a lamparina.
Estávamos bastante acesos; pra falar verdade, pegávamos fogo, e, talvez por isso, a impressão de o fogo já ter queimado nossas roupas.
Queimou-as. O vestido voou longe, foi cobrir os olhos de um São João do Carneirinho que insistia em nos espiar na escuridão.
Ei-la, a moça, nos seus dezesseis anos, irresponsavelmente nua e linda sob a luz da noite que penetrava num espectro através de uma telha de vidro. O corpo moreno, que cheirava tão-somente à química que se formava sob sua pele, embriagava-me o desejo. Decerto que a possui tonto. Tanto foi que, no outro dia, curtindo a ressaca de uma noite de amor, arrependi-me da irresponsabilidade. Ora, meu Deus, virgindade era coisa preciosa por aquele tempo e por aquelas bandas. Que tinha eu de ir fazer mal à menina? Resultado: o pedir cuidado na discrição era pura arte, arte inocente e natural mas arte; ou talvez medo. Assim que a madrinha voltou de viagem, a mocinha contou-lhe tudo. Meu pai foi inquirido pela parte ofendida, assim meio discretamente, o caso não podia espalhar, a menina ficava falada, chamavam-na de furada, era um escândalo. Meu Deus, que vergonha! E agora? Que providência tomar?
Meu pai providenciou-me vermes, disse que eu estava empestado e tinha de viajar. Precisava tratar-me. Viajei.
Hoje, já curado da verminose, repensando este caso, ocorreu-me lembrá-lo com carinho, é que me deu pena, soube que ela não deu sorte na vida. Casou-se, mas assim que o safado descobriu-lhe rapariga, furada, disse: quero não! Largou-a. Outros homens também não a quiseram, só para “ficar”, assim como eu a quis.



Flamarion Silva é autor de O rato do capitão (Selo Letras da Bahia, 2006). Foto "A maçã do amor", de Fabiana Velôso, retirada do Flickr.

sábado, 1 de novembro de 2008

NÃO SOU MADAME BOVARY


Gerana Damulakis


Um grande conto gerará sempre um grande prazer. Eu organizo antologias de contos: panorâmica, histórica, atualizada. E leio romances. Por que vivo tal paradoxo? Ou melhor, por que faço, por que eu continuo fazendo isto; isto de ficar grudada nos romances quando amo ler os contos, quando meu amor escreve contos, quando minha biblioteca está repleta deles? É bobagem tentar analisar todas as contradições da alma humana, além de ser uma terrível falta do que fazer, além de ser inútil e, por fim, além de tudo mais que quiserem. Mas sigo tão intrigada com a minha atitude. Ontem mesmo, ainda ontem, basta o exemplo do ontem, li um conto de James Salter do livro Última Noite, um conto de Bernard Malamud, de O Barril Mágico, e chega. Leio contos às colherinhas de café (parafraseando T. S. Eliot no poema “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”). Feita a leitura dos contos, hora de mergulhar nos romances: entrei no recentemente premiado com o Nobel 2008, Jean-Marie Le Clézio, para devorar Peixe Dourado e igual e antropofagicamente fazer o mesmo com a Crônica na pedra, de Ismail Kadaré (foto), romance de múltipla estrutura, obra de arte. Não sei o que de mim faça (verso de Aramis Ribeiro Costa) com a mania de ler romances. Sei, nesta altura, que não há como temer uma transformação que me leve a ser outra Madame Bovary, só que há vários exemplos na própria literatura que, de tanto ler romances, em lugar de sair pegando homem alucinadamente, a criatura leitora ficou louca. O que é muito pior!