sexta-feira, 28 de setembro de 2007

NÃO HÁ MAIOR OBRA-PRIMA

O site www.jornaldedebates.com.br está levantando a seguinte questão: qual a maior obra-prima da literatura brasileira? Postadas as considerações abaixo, por entretenimento, vale passear pelas obras que vão ocorrendo após a pergunta do mundo virtual. Primeiramente é bom avaliar a pergunta. A expressão "maior obra-prima" traz algo que incomoda: talvez seja a redundância encerrada no termo. A obra que já é prima, já é uma obra maior. As obras de uma determinada literatura se encaixam em degraus variados. No patamar estão as que alcançaram um nível de qualidade que as equipara. Em tal patamar, na nossa literatura, convivem, sem favor, desde O Guarani, de José de Alencar, Memórias Póstumas de Brás Cubas, do grande bruxo Machado, até Mar Morto, de Jorge Amado e Grande Sertão: Veredas, de Rosa.
Para restringir o número de obras, vale determinar um período: últimas décadas do século XIX e todo o século XX. E mais um limite interessante: ficar com obras escritas por autores já falecidos. Temos a obra-prima O Cortiço, de Aluísio Azevedo; Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e a igualmente maior Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, do mesmo Lima, um escritor voltado para o romance social com estilo singular; listo, ainda, José Lins do Rego, tanto com Fogo Morto, quanto com Pedra Bonita; os romances como Terras do Sem-Fim, ou os exóticos e sensuais como Dona Flor e Seus Dois Maridos, do nosso Jorge Amado são inesquecíveis, portanto maiores; e o Érico Veríssimo do monumental O Tempo e o Vento; o intimismo revolucionário de Clarice Lispector, que fez uma horda de seguidoras; sem esquecer Rachel de Queiroz de O Quinze e o Graciliano Ramos com a economia verbal, outro mestre, de Angústia e São Bernardo; o grande Guimarães Rosa e a grande linguagem; enfim, são muitos os autores e são muitas as obras que se destacam em excelência. Tantas, lado a lado. E isto abordando apenas a ficção, mais precisamente o romance, porque se adentrarmos o universo da poesia, o patamar defendido terá uma lotação considerável. Como o intuito é apenas o da diversão, pode-se puxar uma obra dentre aquelas: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas enfatizando que não existe a maior, existem as maiores obras.

Gerana Damulakis

O OGRO QUIROMANÍACO



Tudo começou quando percebi que minha aparência de ogro urbano estava sendo levemente observada por dois olhos vivos, ávidos e fugidios como os de uma criança. Alê surgiu envolta numa beleza branca, tímida e brilhante. Não sei quanto tempo ela me olhou, contudo posso afirmar que foi uma olhadela bem suave como ela própria. Aos poucos pude notar que Alê era dona de um semblante singular, incomum e pouco prosaica. Ao que me parece não são todos os olhos que desnudam a pele branca e límpida de Alê. Não sei como surgiu essa curiosidade de espiá-la, talvez em retribuição à observação primária feita por ela a mim. Entretanto e provavelmente ela mesma não se dava conta de que observava sem querer. Talvez curiosa pelo meu aspecto monstruoso. O fato é que não conseguia desviar o olhar daquela criatura do universo. Natural, encantadora e quiçá enigmática como o próprio cosmos. Nossos olhos passaram então a encontrarem-se uns aos outros numa rapidez e timidez contumaz. Um afinco só atestado por nós dois. Sabíamos que não iríamos além de só fazer nos perceber. Vontade não me faltou, pelo menos a mim, de sentar e conversar, lógico sem procurar assustá-la, pois apesar de fantasiar e dominar as palavras muito bem, meu aspecto, como já falei, era talvez carunchoso. Jamais procuro arrefecer meu semblante bestial. Queria, no entanto iniciar uma conversa de horas, dias. Semanas até. Por vezes e naturalmente, quando meus olhos pousavam sobre ela, sem que me visse, registrava seu corpo em minha memória itinerante e desejava-a numa volúpia voluntariosa. Em meu pensamento o sexo de Alê eram dois lábios grossos e fibrosos, tinha os pêlos pretos e bem aparados. Além de uma ou outra sarda ao redor. O botão do clitóris em cima, rijo e inchado pedia minha língua áspera. O visco, o fio de baba ligava-se à minha boca e eu ouvia o sussurro rumorejante do gozo de amor de Alê.
Numa manhã servi-lhe café. Esperei propositalmente o momento em que Alê se aproximou da mesa posta e lhe ofereci a minha gentileza. Ela sorriu e perguntei-lhe o nome. Sorrindo mais ainda, com os dentes brancos a mostra, Alê respondeu e quis saber o meu. Acho que exalei uma espécie de elixir de Dom Juan, ou o espírito, alma, qualquer coisa que valha nesse sentido, de Dorian Gray que me tomou como cavalo. Derramando de vontade e desejo, penetrei em toda profundidade dos olhos de Alê. Pude então notar como realmente são vivos, sôfregos, ansiosos por palavras e pensamentos. Pus então na minha cabeça que só eu com minha verve de escritor poderia municiá-los. Desde então passei a procurá-los sempre. Veio em minha memória recordações de Beatriz de Dante. Ou da senhora de Rênal de Stendhal. Ou até mesmo Charlotte que deixou o jovem Werther louco de paixão letal e suicida. Quanto a Dante, não sei se é preciso passar pelo inferno e purgatório para depois encontrar Alê no paraíso. Até porque acho que já estou purgando há tempos. Minha aparência de bicho-papão e minha mulher, Cuca zangada, me colocavam na barca do auto-do-inferno.
Numa noite, entretanto pude ver um aspecto diferente no rosto de Alê. Estava séria e preocupada conversando com algumas pessoas. Fiquei inquieto e apreensivo e com atenção redobrada nos olhos tentei ler os seus lábios. Não entendi de todo, mas provavelmente Alê falava de alguma cirurgia, equipe médica ou coisa do gênero. Fiquei sabendo através de perguntas distraídas que Alê era médica. Encetei uma conversa despretensiosa com a mãe dela, na sua iminente ausência e colhi algo sobre ela. Mesmo assim Alê continuou enigmática para mim. Não tive sensação de déjà vu, ainda bem, posto que as pessoas são sempre parecidas e certas vezes, são iguais. Sobretudo as mulheres. Com Alê não tive essa impressão de início, nem de meio. Espero que no final eu não me decepcione. Em poucos dias senti toda essa gama de sentimento por uma pessoa até então desconhecida.
No dia seguinte, da janela do hotel que me encontrava, pude ver Alê tocando violão. Tive a impressão que olhava para meu quarto, para a mesma janela em que eu a espionava. O vidro era fumê, portanto eu a via, ela por sua vez não fazia idéia que havia alguém por trás do vidro a espreitá-la. Contudo através daquele vidro escuro percebi a alma de Alê. Lá longe, ela com sua brancura do infinito possuía um feitiço da lua. E como por osmose, notei que Alê me queria. Queria sugar todo o meu eu intelectual e interativo. Por isso sorria para mim. Por isso trocava olhares furtivos. Por isso conversava distraidamente com minha mulher zangada, enquanto eu torcia para que fizessem amizade para eu ficar mais tempo perto daquela suntuosa magnitude do universo. Por isso deixava as coxas e o baixo ventre bem ao alcance de meus olhos. Eu ficava viril e latente quando via de relance o talho. Ao mesmo tempo, quando a olhava perdido em meus pensamentos, sonhando no vai-e-vem das minhas mãos, dos meus punhos de ferro, percebia o tempo passar vagarosamente entre eu e Alê. Aos poucos aquela nuvem branca que eu via e desejava a ponto de masturbar-me e gozar sufocantemente, num soluço renitente, distanciava-se de mim num êxtase delirante de pensamento e seu clímax vertido com ímpeto. Agora eu via a minha mulher, a Cuca zangada, sentada na mesa da beira da piscina sozinha e inerte na cadeira de rodas junto com a criada.
Alê, por sua vez, explodiu no universo, transformando-se em nuvem de pensamento de Onã.

Carlos Vilarinho
cronista e contista, autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005), Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 103)