domingo, 4 de julho de 2010

EXCESSO DE SER



Gerana Damulakis

Os poetas e os leitores de poesia têm algo em comum: o sentimento do excesso de ser.
O poeta português Mário de Sá-Carneiro escreveu: “De excesso, morri à míngua”, enquanto Mário de Andrade chegou a precisar: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta”.
São os versos de Mário de Andrade que utilizo em determinadas circunstâncias, talvez em momentos confusos, onde excessivamente sou tantas, ainda que haja a fé — “ Mas um dia afinal eu toparei comigo”.

O poema de Mário de Andrade abaixo conserva a ortografia da época.


EU SOU TREZENTOS...
---------------------Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pirineus ! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.


Ilustração: de Lasar Segall, Mário de Andrade, 1927.