sexta-feira, 28 de setembro de 2007

NÃO HÁ MAIOR OBRA-PRIMA

O site www.jornaldedebates.com.br está levantando a seguinte questão: qual a maior obra-prima da literatura brasileira? Postadas as considerações abaixo, por entretenimento, vale passear pelas obras que vão ocorrendo após a pergunta do mundo virtual. Primeiramente é bom avaliar a pergunta. A expressão "maior obra-prima" traz algo que incomoda: talvez seja a redundância encerrada no termo. A obra que já é prima, já é uma obra maior. As obras de uma determinada literatura se encaixam em degraus variados. No patamar estão as que alcançaram um nível de qualidade que as equipara. Em tal patamar, na nossa literatura, convivem, sem favor, desde O Guarani, de José de Alencar, Memórias Póstumas de Brás Cubas, do grande bruxo Machado, até Mar Morto, de Jorge Amado e Grande Sertão: Veredas, de Rosa.
Para restringir o número de obras, vale determinar um período: últimas décadas do século XIX e todo o século XX. E mais um limite interessante: ficar com obras escritas por autores já falecidos. Temos a obra-prima O Cortiço, de Aluísio Azevedo; Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, e a igualmente maior Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, do mesmo Lima, um escritor voltado para o romance social com estilo singular; listo, ainda, José Lins do Rego, tanto com Fogo Morto, quanto com Pedra Bonita; os romances como Terras do Sem-Fim, ou os exóticos e sensuais como Dona Flor e Seus Dois Maridos, do nosso Jorge Amado são inesquecíveis, portanto maiores; e o Érico Veríssimo do monumental O Tempo e o Vento; o intimismo revolucionário de Clarice Lispector, que fez uma horda de seguidoras; sem esquecer Rachel de Queiroz de O Quinze e o Graciliano Ramos com a economia verbal, outro mestre, de Angústia e São Bernardo; o grande Guimarães Rosa e a grande linguagem; enfim, são muitos os autores e são muitas as obras que se destacam em excelência. Tantas, lado a lado. E isto abordando apenas a ficção, mais precisamente o romance, porque se adentrarmos o universo da poesia, o patamar defendido terá uma lotação considerável. Como o intuito é apenas o da diversão, pode-se puxar uma obra dentre aquelas: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Mas enfatizando que não existe a maior, existem as maiores obras.

Gerana Damulakis

O OGRO QUIROMANÍACO



Tudo começou quando percebi que minha aparência de ogro urbano estava sendo levemente observada por dois olhos vivos, ávidos e fugidios como os de uma criança. Alê surgiu envolta numa beleza branca, tímida e brilhante. Não sei quanto tempo ela me olhou, contudo posso afirmar que foi uma olhadela bem suave como ela própria. Aos poucos pude notar que Alê era dona de um semblante singular, incomum e pouco prosaica. Ao que me parece não são todos os olhos que desnudam a pele branca e límpida de Alê. Não sei como surgiu essa curiosidade de espiá-la, talvez em retribuição à observação primária feita por ela a mim. Entretanto e provavelmente ela mesma não se dava conta de que observava sem querer. Talvez curiosa pelo meu aspecto monstruoso. O fato é que não conseguia desviar o olhar daquela criatura do universo. Natural, encantadora e quiçá enigmática como o próprio cosmos. Nossos olhos passaram então a encontrarem-se uns aos outros numa rapidez e timidez contumaz. Um afinco só atestado por nós dois. Sabíamos que não iríamos além de só fazer nos perceber. Vontade não me faltou, pelo menos a mim, de sentar e conversar, lógico sem procurar assustá-la, pois apesar de fantasiar e dominar as palavras muito bem, meu aspecto, como já falei, era talvez carunchoso. Jamais procuro arrefecer meu semblante bestial. Queria, no entanto iniciar uma conversa de horas, dias. Semanas até. Por vezes e naturalmente, quando meus olhos pousavam sobre ela, sem que me visse, registrava seu corpo em minha memória itinerante e desejava-a numa volúpia voluntariosa. Em meu pensamento o sexo de Alê eram dois lábios grossos e fibrosos, tinha os pêlos pretos e bem aparados. Além de uma ou outra sarda ao redor. O botão do clitóris em cima, rijo e inchado pedia minha língua áspera. O visco, o fio de baba ligava-se à minha boca e eu ouvia o sussurro rumorejante do gozo de amor de Alê.
Numa manhã servi-lhe café. Esperei propositalmente o momento em que Alê se aproximou da mesa posta e lhe ofereci a minha gentileza. Ela sorriu e perguntei-lhe o nome. Sorrindo mais ainda, com os dentes brancos a mostra, Alê respondeu e quis saber o meu. Acho que exalei uma espécie de elixir de Dom Juan, ou o espírito, alma, qualquer coisa que valha nesse sentido, de Dorian Gray que me tomou como cavalo. Derramando de vontade e desejo, penetrei em toda profundidade dos olhos de Alê. Pude então notar como realmente são vivos, sôfregos, ansiosos por palavras e pensamentos. Pus então na minha cabeça que só eu com minha verve de escritor poderia municiá-los. Desde então passei a procurá-los sempre. Veio em minha memória recordações de Beatriz de Dante. Ou da senhora de Rênal de Stendhal. Ou até mesmo Charlotte que deixou o jovem Werther louco de paixão letal e suicida. Quanto a Dante, não sei se é preciso passar pelo inferno e purgatório para depois encontrar Alê no paraíso. Até porque acho que já estou purgando há tempos. Minha aparência de bicho-papão e minha mulher, Cuca zangada, me colocavam na barca do auto-do-inferno.
Numa noite, entretanto pude ver um aspecto diferente no rosto de Alê. Estava séria e preocupada conversando com algumas pessoas. Fiquei inquieto e apreensivo e com atenção redobrada nos olhos tentei ler os seus lábios. Não entendi de todo, mas provavelmente Alê falava de alguma cirurgia, equipe médica ou coisa do gênero. Fiquei sabendo através de perguntas distraídas que Alê era médica. Encetei uma conversa despretensiosa com a mãe dela, na sua iminente ausência e colhi algo sobre ela. Mesmo assim Alê continuou enigmática para mim. Não tive sensação de déjà vu, ainda bem, posto que as pessoas são sempre parecidas e certas vezes, são iguais. Sobretudo as mulheres. Com Alê não tive essa impressão de início, nem de meio. Espero que no final eu não me decepcione. Em poucos dias senti toda essa gama de sentimento por uma pessoa até então desconhecida.
No dia seguinte, da janela do hotel que me encontrava, pude ver Alê tocando violão. Tive a impressão que olhava para meu quarto, para a mesma janela em que eu a espionava. O vidro era fumê, portanto eu a via, ela por sua vez não fazia idéia que havia alguém por trás do vidro a espreitá-la. Contudo através daquele vidro escuro percebi a alma de Alê. Lá longe, ela com sua brancura do infinito possuía um feitiço da lua. E como por osmose, notei que Alê me queria. Queria sugar todo o meu eu intelectual e interativo. Por isso sorria para mim. Por isso trocava olhares furtivos. Por isso conversava distraidamente com minha mulher zangada, enquanto eu torcia para que fizessem amizade para eu ficar mais tempo perto daquela suntuosa magnitude do universo. Por isso deixava as coxas e o baixo ventre bem ao alcance de meus olhos. Eu ficava viril e latente quando via de relance o talho. Ao mesmo tempo, quando a olhava perdido em meus pensamentos, sonhando no vai-e-vem das minhas mãos, dos meus punhos de ferro, percebia o tempo passar vagarosamente entre eu e Alê. Aos poucos aquela nuvem branca que eu via e desejava a ponto de masturbar-me e gozar sufocantemente, num soluço renitente, distanciava-se de mim num êxtase delirante de pensamento e seu clímax vertido com ímpeto. Agora eu via a minha mulher, a Cuca zangada, sentada na mesa da beira da piscina sozinha e inerte na cadeira de rodas junto com a criada.
Alê, por sua vez, explodiu no universo, transformando-se em nuvem de pensamento de Onã.

Carlos Vilarinho
cronista e contista, autor de As Sete Faces de Severina Caolha & Outras Histórias (FUNCEB, 2005), Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, 103)

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

NA PRAIA, um romance de Ian McEwan

A literatura inglesa contemporânea passa por um excelente momento e, com algum atraso, podemos acompanhá-la em ótimas traduções. Por exemplo: um dos mais importantes prêmios literários do mundo é o Booker Prize. Pois bem, estão nas livrarias os concorrentes e os vencedores deste prêmio nos últimos anos. No mais alto patamar de qualidade encontramos Arthur & George, de Julian Barnes, Não me Abandone Jamais, de Kazuo Ishiguro, e o vencedor O Mar, de John Banville. Um deleite para quem sente verdadeiro prazer na leitura e gosta de comparar e eleger. Os três livros são excelentes, mas O Mar tem uma força quase trágica que, seguramente, garantiu o prêmio. Por outro lado, o final do livro de Ishiguro é impactante. E assim vamos, como aficionados pela arte literária, lendo e debatendo os valores, encantando a alma.
Nesta última leva de lançamentos há outro escritor, igualmente premiado com o Booker, e muito festejado mundo afora. Trata-se de Ian McEwan. O romance, que na nossa concepção mais rígida em termos de gênero, seria considerado uma novela, ou, como dizia Jorge Amado, um “romancinho”, intitula-se Na Praia e está na lista dos mais vendidos de todas as revistas que fazem este tipo de pesquisa. Todavia não se define como um best- seller. Está na lista, tal como está Travessuras da Menina Má, de Mario Vargas Llosa, ou seja, ambos são exceções porque nada têm da famosa mistura de crime, sexo e um monte de informações que se querem eruditas para impressionar.
Na Praia é uma trama passada nos anos 60, quando a revolução sexual estava perto de irromper, mas ainda guardava seu poder de explosão. A noite é a das núpcias de um casal virgem. O desastre emocional, que resulta na definição da vida futura deste par inexperiente, traduz os costumes de uma época e chega além, pois que atinge o social em variados aspectos dentro de um tempo firmemente datado.
Certa crítica, exigente por conta de outros títulos mais fortes de Ian McEwan, tais como Reparação e Sábado, chega a apontar deficiências, como o pouco aprofundamento do autor ao descrever o íntimo da noiva; entretanto, será que não cabe ao leitor, não apenas o gosto, mas também o direito, de imaginar, de ser um co-autor e completar a obra? Houve quem escrevesse que perto da obra sinfônica de McEwan, Na Praia soa como uma peça de câmara, porém ressaltou que, ainda assim, a execução é irretocável. E o que unânime é a entronização de Ian McEwan como o melhor ficcionista vivo da melhor das literaturas nacionais. Assino embaixo.
GD

OS ANJOS CAIADOS DE ARIOVALDO MATOS

Com data, na ficha catalográfica, registrada em 2005, mas impresso em 2006, o romance Anjos Caiados, de Ariovaldo Matos, foi publicado mediante convênio entre a Assembléia Legislativa do Estado da Bahia e a Academia de Letras da Bahia. A edição, muito bem cuidada, vem trazendo textos importantes, além da cronologia da vida do escritor, seja o jornalista, seja o ficcionista. Encontramos testemunhos tal como o de Othon Jambeiro, assinando “Ari, um jornalista”, enquanto Jorge Amado assina “Um ficcionista baiano”. Já o saudoso Guido Guerra, que foi responsável pela reunião dos contos de Ariovaldo Matos, organizando e selecionando os textos do volume intitulado A Ostra Azul, publicado em 1998, comparece com “Trajetória”. Ariovaldo dedica o romance à memória, entre outros nomes que lhe foram caros, do jornalista Flávio Costa. E agradece a paciência dos que “suportaram suas fantasias de repórter”, entre os quais, primeiramente está Joaci Góes.
Mas, vamos ao romance. São três partes, construídas com uma dose de experimentalismo digna do Cortázar de Rayuela (O Jogo da Amarelinha), como bem notou Guido Guerra, por conta da estrutura multifacetada que recorre ao diálogo teatral, que usa cartas e poemas, que insere, enfim, narrativas várias. O romance teve origem no conto “A construção do sonho” e, por isso, Guido deixou justamente este conto fora da antologia A Ostra Azul, respeitando seu desdobramento, ou o fato do conto ter atingido outro gênero, que lhe seria mais próprio. Muito rico, portanto, é Anjos Caiados. Porém, muitos gostariam de conhecer o conto citado por Guido, daí que seria interessante que Fred Matos, filho de Ariovaldo, também contista e já com livro publicado, em 2006, pelo selo Letras da Bahia, da Fundação Cultural do Estado/ Secretaria da Cultura e Turismo, intitulado Melhor que a encomenda, trouxesse o texto para o público de hoje.
A linguagem é prioridade em se tratando de Ariovaldo, ela é senhora e dona do começo ao fim de qualquer narrativa escrita por ele, porque não se faz a leitura sem sentir admiração, sem deslumbrar-se com o seu fluir livre de obstáculos, ainda que num romance elaborado com tanta complexidade, que lança mão de tantos recursos e de muitos personagens. O tema vem revestido da mistura de religiosidade e sensualidade, da cultura judaico-cristã e dos pecados da carne. A personagem Liúba é bela e sensual. O Padre Eugênio é padre e é homem, e o resultado é a transgressão.
Jornalista, dramaturgo, contista, romancista, muito premiado, traduzido inclusive, Ariovaldo Matos fixou seu nome na literatura baiana. Em 2008 sua morte fará 20 anos. Há contos que ficaram de fora quando Guido fez a seleção. É tempo para organizar outra reunião com tal material.
Gerana Damulakis

POETRIX, de Goulart Gomes

EQUILIBRAÇÃO

aprender uma nova lição:
o ponto de equilíbrio
é o ponto de mutação




TRADE MARX

o lucro não é o fim;
a mais-valia que anseio
é o que vale mais em mim

50 ANOS ON THE ROAD



No dia 5 de setembro de 1957 foi publicado o livro On the Road, de Jack Kerouac. Por conta do aniversário de 50 anos, a editora Viking lançou, pela primeira vez em formato de livro, a versão original que o autor datilografou em um rolo de papel para telex de 36 metros de comprimento. O manuscrito difere da versão final por não ter parágrafos, por ser maior em 120 páginas, por trazer os nomes verdadeiros dos personagens, por conter descrições sexuais sem censuras, afinal, é fruto de uma escrita enlouquecida que levou três semanas para ser concluída, contando uma aventura que se prolongou por sete anos. Após três revisões, o que era memória virou ficção, ganhou adornos literários e Neal Cassady, amigo de Kerouac, passou a ser chamado de Dean Moriarty, enquanto surgiu Sal Paradise, personagem com base no autor, formando um par que atravessa os EUA bebendo, ouvindo música e se envolvendo com todos que cruzam seu caminho.
Da “batida” do jazz associada ao misticismo oriental nasceu o termo “Beat”, em 1952, cunhado por Kerouac para o “movimento que daria voz ao espírito de uma geração em revolta contra o conformismo e a respeitabilidade dos EUA da Multidão Solitária”, segundo Malcolm Bradbury, em O romance americano moderno (Jorge Zahar Editor, 1991). Por outro lado, é certo que a palavra beat tem uma gama de outros sentidos: vai da “batida”, até “botar o pé na estrada” (beat the way), passando por “trilha”, “furo” (jornalístico), mas Kerouac ouviu da boca de um marginal com o sentido de “exaltada exaustão”.
Ainda que William Burroughs tenha sido mais importante como experimentador e, ainda que a expressão poética deste clima emocional tenha ficado por conta do longo poema “Howl” (“Uivo”), de Allen Ginsberg, é o romance de Kerouac, aqui traduzido como Pé na estrada, editado pela L&PM, com tradução, prefácio e delicioso posfácio de Eduardo Bueno, que marca a “prosa bop espontânea”, que influenciou uma horda de escritores nos anos 60.
Não parece necessário que haja uma idade certa, tanto para ler Pé na estrada, quanto para ler O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, parece mais possível que haja o leitor certo para estas narrativas que vivenciam tão profundamente a juventude, sendo até melhor fazer a leitura quando já se está olhando, na segurança da praia, como as ondas são revoltas. A revolução comportamental gerada por On the Road inclui gente como Bob Dylan, que fugiu de casa depois de ler o livro. Basta que o leitor seja capaz de lembrar a inquietação, o fascínio pelas descobertas e o sonho de liberdade, para que usufrua totalmente tais caminhadas. A dupla de Kerouac cruzando o país inteiro a partir da Rota 66, desbrava, transgredindo, outra estrada: a que se vai construindo ao abandonar a infância. A “bíblia hippie”, o mito On the Road, para usar o chavão proporcionado pelo livro-prisão, ofuscou suas outras obras, como The Dharma Bums (Os vagabundos iluminados). Jack Kerouac morreu em 1969: estava apático, sem nenhum espírito de aventura.
Gerana Damulakis

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

POEMA DO MÊS -

MARÇO

Senta-te comigo nos primeiros
degraus da escada como se nada
valesse mais que a contemplação
do instante, música fixando o corpo.

Ouve o rumor do vento nas palmas
redondas e verdes, a relatividade
com que o sol desenha arabescos
no passo singelo das nossas filhas,

o aroma da quietudade emanando
da mesa desfeita - saudade do
fruto que não provamos, acolhidos
que estamos pelo vôo de um pássaro.

Márcia Tude

domingo, 9 de setembro de 2007

BELEZA E TRISTEZA


A literatura japonesa do século XX pode muito bem ser definida, ou condensada — mas isso já é perigoso — usando-se o título de um dos seus livros mais emblemáticos: Beleza e tristeza, de Yasunari Kawabata. Escritor de ficção, ensaísta e crítico literário, além de mestre de uma geração inteira de prosadores do quilate de Yukio Mishima ( que cometeu suicídio em 1970, pelo método seppuku), Kawabata ganhou o Nobel de Literatura em 1968, dentre outros prêmios, como a medalha Goethe. Beleza e tristeza (Globo, 2004) é o último livro de Kawabata (1899-1972) e, de certa forma, funciona como um aliciador para que se vá buscar a leitura de outros títulos como O país das neves, A casa das belas adormecidas, do qual Gabriel García Márquez confessa ter uma dívida quanto à criação de seu Memória de minhas putas tristes (Record, 2005), ou ainda, Mil Tsurus e Kyoto, todos os quatro editados pela Estação Liberdade.
Sempre deixando bastante presente a tradição japonesa através da música, da dança, da arte do chá e das festas, Kawabata, em Beleza e tristeza, monta uma história apaixonante em torno de um escritor que retorna a Kyoto para ouvir os sinos dos templos budistas no final do ano, mas seu intuito verdadeiro é reencontrar um amor de juventude. Sua amada, uma pintora famosa, vive com uma aluna, a qual formará o terceiro vértice do triângulo. A sensualidade e a delicadeza encerram as páginas de Kawabata com a mesma pungente constatação da fragilidade da vida, plasmada na fugacidade e transitoriedade de tudo. Assim, a solidão, o amor e a morte são questionados, como também o sentido da arte.
Ao lado de Yasunari Kawabata estão escritores no mesmo patamar de qualidade: o já citado Mishima (1925-1970), Jun’ichiro Tanizaki (1886-1965), do espetacular As irmãs Makioka (Estação Liberdade, 2005), Haruki Murakami, nascido em 1949, produzindo romances tão bem estruturados como Minha querida Sputnik (Objetiva, 2003), Akira Yoshimura, de Naufrágios ( Editora Best Seller, 2003), e ainda Kenzaburo Oe que, em 1994, repete o Nobel para o Japão. Uma vez adentrado tal universo fica difícil deixar de lado tantas leituras sedutoras: é um mundo fascinante, uma narrativa com um toque diferente, além de sedutor, envolvente e impressionante. Como este passeio é impressionista, resta dizer que a sensação que a literatura japonesa cria no leitor é resultado das reflexões aprofundadas, que partem da intuição e rumam, sem ilusões, para o encontro com a fatalidade: se for a sorte ou se for a adversidade, não há medo; é resultado, ainda, do ritmo elegante, estético mesmo.
Todos os títulos têm tradução direta do japonês, o que prova que se acabou o tempo do amadorismo na área da tradução, acabou-se o tempo em que Rachel de Queiroz traduzia o russo Dostoiévski do francês: o tempo das traduções levianas. Está aberta mais uma janela no casarão da literatura, com o nosso acesso ao melhor da literatura japonesa.

Gerana Damulakis

domingo, 2 de setembro de 2007

A trilogia de Antônio Torres



Na Flip 2007, realizada neste começo de julho, a Editora Record levou o escritor baiano Antônio Torres para representar a literatura brasileira. O mais recente romance de Torres, Pelo fundo da agulha, teve, em Parati, quase que um relançamento, haja vista que foi editado em 2006. Mais do que merecido, Pelo fundo da agulha tem tratamento especial porque vem fechar a trilogia iniciada com o romance Essa terra, de 1976, hoje já definitivamente consagrado com várias reedições e traduções. Passados 20 anos surgiu O cachorro e o lobo, retomando a vida do personagem Totonhim numa volta ao sertão, partindo de São Paulo, para onde fora no final de Essa terra. No total são 30 anos, de Essa terra até Pelo fundo da agulha, de Totonhim menino e rapaz, que deixa o Junco baiano — hoje Sátiro Dias — rumo a São Paulo, até o bancário aposentado Antão Filho, ou seja, o idoso Totonhim. Tantas foram as tragédias: a ida do irmão Nelo em busca do sul maravilha e sua volta de malas vazias e seu suicídio como redenção pelo pecado de não ter vencido; a loucura da mãe com a perda do filho; a solidão do pai; a viagem de Totonhim, também para fazer uma vida fora do sertão; o retorno de Totonhim, apenas como uma vista, mas que faz o pai temer mais um suicídio; a constatação da velhice da mãe que, apesar da vida sofrida e de uma insanidade temporária, ainda é capaz de enfiar a linha pelo buraco de uma agulha. Mas Totonhim não é Nelo, não há sina registrada e, então, vem o retorno que se dá como quem passa a vida a limpo: em São Paulo, deitado a relembrar, o aposentado, separado da mulher e dos filhos, conta com uma vida inteira que, enfim, pode receber um ponto final. Pelo fundo da agulha já encontra o personagem assim, com a vida feita e refazendo o caminho através da memória, pois chega a hora de, sem sair do lugar, passar os fatos e as sensações pelo túnel do tempo. O romance leva o leitor nessa viagem de uma forma tão envolvente que, se este mesmo leitor não tiver lido Essa terra e O cachorro e o lobo, seguramente irá em busca deles. É irresistível, inclusive, uma releitura dos livros anteriores, pois queremos mais, sempre mais, após fechar o volume Pelo fundo da agulha.
Gerana Damulakis

CONTO DO MÊS

O VESTIDO PRETO


Aramis Ribeiro Costa


Virgínia sentia-se particularmente triste, naquela tarde. Andando pelas alamedas do shopping, pensava mais na sua vida de trabalho, rotinas e privações do que apreciava as vitrines que, afinal, pouco representavam para ela, já que não havia intenção de comprar coisa alguma. O marido era um homem trabalhador, e ela também trabalhava, mas os salários de ambos apenas permitiam que pudessem viver uma vida decente, com os dois filhos na escola, a mesa posta, a roupa necessária, as contas pagas. Diversões, nada além da televisão rotineira, da praia aos domingos e dos eventuais passeios aos shoppings, com os gastos controlados.
Naquela tarde, após o trabalho, sentindo o tédio da sua vida ainda maior do que nos outros dias, resolvera andar um pouco sozinha pelo shopping, antes de ir para casa. Seus passos eram lentos e sem rumo, e os olhos passeavam pelas vitrines como se efetivamente se interessassem por elas. De súbito, chamou-lhe a atenção um vestido, posto em destaque na vitrine de uma pequena loja. Era um vestido preto, de tecido fino, com um acabamento perfeito, que lhe pareceu belo e extremamente elegante no manequim.
Virgínia parou. Diante do vestido, que representava o contraste da sua vida modesta, sentia um misto de encantamento e frustração. Jamais tivera um vestido daquele, jamais teria um vestido daquele. Pensava isso, quando notou que uma vendedora saíra da loja e observava-a.
— Boa tarde — disse afinal a vendedora, sem sorrir. — Posso ajudá-la?
Virgínia ia dizer que não e afastar-se. Mas teve a curiosidade de saber quanto custava aquele lindo vestido preto.
— Este vestido — apontou ela, com encantamento. — Quanto custa?
Em lugar de responder, a vendedora olhou-a de cima a baixo, sem pressa, avaliando com olhar experiente as suas roupas simples, e não apenas as roupas, mas todo o conjunto que denunciava uma pessoa sem posses.
— Este vestido? — perguntou enfim a vendedora, não se sentindo animada a revelar o preço. E disse: — Este vestido é muito caro. Nós temos outros, mais baratos. Você não quer ver outro?
Foi como uma bofetada. Não era tola. Aquela mocinha acabara de insinuar que ela não podia comprar aquele vestido. Sentiu-se ofendida, humilhada. Mas não retrucou a ofensa com palavras. Controlando-se, disse apenas:
— Não. Eu quero ver este.
A vendedora tornou a olhá-la inteira.
— Você quer saber o preço, não é? — perguntou com desdém.
— Não — tornou a dizer Virgínia, procurando dar à voz uma entonação firme. — Eu quero experimentar o vestido.
Por uns momentos, a vendedora não saiu do lugar. Finalmente, dando-lhe passagem, indicou a porta com um gesto:
— Entre. Qual é o seu número?
Virgínia disse, a moça pegou um vestido exatamente igual ao da vitrine, entregou-lhe. Virgínia tomou-o e dirigiu-se ao reservado. Tirou a roupa que usava e vestiu-o, mirando-se no espelho.
— Então? — perguntou a vendedora do lado de fora do reservado, por detrás da porta fechada.
Diante do espelho, Virgínia permanecia em êxtase. Olhava-se, olhava-se. Nunca se vira tão linda, na verdade nunca pensara que ficaria tão bela vestida daquela forma. O vestido caíra no seu corpo esbelto como se fora confeccionado sob medida.
— Ficou bom? — insistiu a vendedora, do lado de fora.
Virgínia abriu a porta, mostrou-se; queria que ela a visse. A vendedora não escondeu a surpresa. Voltou a olhá-la de cima a baixo, porém agora com admiração. Virgínia sorriu.
— Então? — perguntou. — Quanto custa este vestido?
No mesmo instante a vendedora voltou a olhá-la como no começo, como se a pergunta a fizesse lembrar-se com quem tratava. Disse o preço, olhando-a nos olhos. Virgínia estremeceu. O vestido era muito mais caro do que ela imaginara. Na verdade, representava para as suas posses uma pequena fortuna. Além disso, para quê ela queria aquele vestido? Onde, quando o usaria? Voltando à atitude inicial, a vendedora tornou a sugerir:
— Você não quer experimentar outro mais barato?
— Não! — respondeu Virgínia energicamente. — Eu quero este!
Em seguida, agindo muito rápido, para não pensar, fechou a porta do reservado, tirou o vestido, tornou a vestir a sua roupa, abriu a porta e entregou o vestido à vendedora, juntamente com o seu cartão de crédito, dizendo:
— Pode embrulhar.
A moça obedeceu, agora toda sorrisos. Ao entregar-lhe o vestido, dentro da sacola com o logotipo da loja, sorriu ainda mais amável e disse:
— Obrigada à senhora. Volte sempre.
Virgínia deixou a loja com passos firmes, a cabeça erguida, segurando com firmeza a sacola com o seu vestido preto. Mas, logo adiante, quando já não podia ser vista pela vendedora, foi diminuindo os passos e abaixando o olhar. Uma fortuna. Uma fortuna. Como explicaria ao marido aquela compra inútil, como pagaria aquele valor? O suor descia por suas costas, empapava-lhe a roupa; a alça da sacola rasgava-lhe os dedos. O vestido preto. Que loucura. Que loucura.

O QUE É TER OLHO CRÍTICO

Um texto sobre literatura, saboreando avaliações para apontar quais, dentre tantos recursos da arte literária, determinado autor recorreu, pensando sua disposição e que condições ele criou para que a ficção se desse, tudo isso não deixa de ser tão prazeroso quanto a própria ficção, seja a prosa, seja a poesia, que é a ficção do sentimento. Alguns disseram que a crítica é a forma moderna da autobiografia, outros já acham que o crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê, mas o escritor argentino Ricardo Piglia, em Formas Breves (Companhia das Letras, 2004) diz mais bonito: “A pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras”. E Aramis Ribeiro Costa completa acertadamente dizendo que o olho crítico é a transformação da visão pessoal em um critério objetivo.
A razão para tal digressão sobre a crítica talvez tenha vindo da leitura de A literatura na poltrona, de José Castello, sub-intitulado “jornalismo literário em tempos instáveis”, perfeito para quem faz a crítica sem pretensão acadêmica, ou talvez venha da leitura do Pequeno manual de procedimentos, de um escritor argentino de primeira água chamado César Aira. É difícil escolher para quem conceder certa preferência e estender o comentário, mas como José Castello é mais conhecido, já vem de O poeta da paixão (Companhia das Letras, 1994), sobre Vinicius de Moraes, O homem sem alma (Rocco,1996), sobre João Cabral de Melo Neto, Na cobertura de Rubem Braga (José Olympio, 1996), Inventário das Sombras (Record, 1999) e outros, haverá oportunidade de dedicar-lhe outras linhas.
Ficamos, então, com César Aira, um ficcionista que seduz inteiramente o leitor. Na Flip deste ano, ele estava no lançamento de sua caixa com dois livros: As noites de Flores e Um acontecimento na vida do pintor-viajante, ambos pela Nova Fronteira, acompanhados por uma reunião intitulada 13 variações sobre César Aira, de Carlito Azevedo. A caixa é imperdível, porque se pode constatar a aplicação de todas as reflexões que o autor fez sobre a literatura no livro supracitado em torno dos procedimentos, o tal manual, este igualmente imperdível, mas apenas para quem sente o deleite na leitura sobre literatura, a ponto de “olhar criticamente”. Contas feitas, aportamos no que foi objeto do início deste texto, por conta do ensaio “Best-seller e literatura”, do brilhante César Aira. Chega-se, arredondando estas linhas, enlaçando-as com o começo, para terminar com as palavras de Aira, que tão bem compreende o olho crítico, o que percebe a diferença entre um O código Da Vinci e um volume como A morte de Ivan Ilitch: “... lendo-o [o best-seller] se aprende história, economia, política, geografia, sempre à escolha e de forma divertida e variada. Lendo-se literatura genuína, no entanto, não se adquire nada além de cultura literária, a mais inofensiva de todas”. Aí está uma colocação genial usando a ironia pela via da humildade! Fiquemos, pois, com a literatura genuína e a sugestão citada na comparação: A morte de Ivan Ilitch, do grande Liev Tolstói.
Gerana Damulakis