terça-feira, 21 de setembro de 2010

INÚTEIS LUAS OBSCENAS

O tumulto interior
Gerana Damulakis

O Surdo é o grande personagem do romance de Hélio Pólvora, Inúteis Luas Obscenas (Casarão do Verbo, 2010). Uma história apaixonante que reúne paixões e vinganças bajo la misma luna, como diria um poeta espanhol. O Surdo foi parar no sul da Bahia; viúvo, criou os filhos Jonas e Regina, que se transformam após a primeira das várias paixões da narrativa, quando Jonas se enamora de Celina, filha de um potentado.

Em Valise de Cronópio (Perspectiva, 2004), Júlio Cortázar entende que, para sequestrar momentaneamente o leitor, o estilo de um texto deverá conter intensidade e tensão. A intensidade da ação e a tensão da narrativa resultam do “ofício de escritor”, do que se conclui a existência de variantes tanto de intensidade quanto de tensão.

Inúteis Luas Obscenas tem estrutura plurifocal, à base de camadas superpostas: se uma delas, de dimensão filosófica e existencial, cruza todo o livro, outra, subordinada tematicamente, é circunstancial. Sob tal perspectiva a narrativa se enriquece em artifícios de montagem: os dois estratos marcham, em associação de ritmo, representam momentos num só ímpeto do trajeto. As personagens narram e são narradas entre si; e mais: passam pelo crivo crítico do narrador onisciente.

A tensão interna é mantida em patamar alto, enquanto a intensidade admite alternativa de proposta mista — privilégio este do próprio gênero romance. Na medida em que avança a narrativa da primeira camada, e as personagens se desnudam, o outro plano, como reforço harmonioso de alicerces muitas vezes alegóricos, enfoca questões, reflexões, observações propositadamente caricaturais das personagens colhidas na empreitada dos afazeres e perplexidades cotidianos. Tudo isso sob a luneta do narrador lúcido. Cada personagem do núcleo ficcional se exprime de forma a revelar suas intimidades, o que ocorre por conta dos trechos em itálico, iniciadores dos módulos narrativos da primeira e da segunda parte do romance: “Fuga” e “Purgação dos Pecados”. Tais aberturas, espécie de proêmio do coro na tragédia grega, são confissões como que ao pé do ouvido do leitor. A lua tudo banha com um fatalista palor irônico, porque o romantismo do rapto da donzela pelo cavalheiro pobre travestido de príncipe decerto prenuncia desastre.

Celina, assim nomeada com vistas à Selene grega, deusa de todas as luas, precipita a tragédia, pois é uma lua funesta. As personagens guardam representações: o Jonas bíblico engolido pela baleia e cativo de um exíguo desespero em último grau; Regina, a que rege, pois é rainha, daí o voluntarismo, a necessidade de vingança, quando da ocupação de seu espaço por Celina; e, por fim, o Surdo. Será de fato surdo como aparenta, ou a surdez funciona como anteparo? Na surdez ele se dissimula, ela o instiga a fazer perguntas, algumas perigosas. Fascinantes, todas essas personagens nas suas interações, até mesmo os coadjuvantes como Josefino Calango, ensurdecido, emudecido e cego pela pobreza absoluta.

Em romance de personagens, e que não se furta a cenas dramáticas, como é (ou era) característica do gênero, Hélio Pólvora introduz a novidade de dois epílogos, mas, ao contrário das prosas experimentais, as manobras intelectivas orientadas para as suspensões são completadas e desenredadas por desdobramentos imagéticos, como quer o romancista. Ele deseja que o leitor escolha o epílogo, segundo narração de Regina ou segundo narração de Celina, se não preferir, por acaso, um terceiro. As “leituras” se sucedem.

O romance percorre, nos dois extratos de sua complexa estruturação, a trilha por onde seguem o narrador, as personagens e o leitor, mas sempre atiçados por uma atividade dual: ajustar as interfaces, integrá-las. Finda a narrativa, sabemos que é circular: no início a filha do Surdo é informada da morte do pai, pois a história a ser narrada já fora concluída. Esta sensação de circularidade patenteia o papel do segundo estrato na estrutura. Há impressionismo e simbolismo neste romance tão rico. O impressionismo nas paisagens descritas, tal como se olhássemos um quadro de Monet. O simbolismo está no centro dual enaltecido por imagens da lua: é na lua nova que Jonas vai raptar Celina, montado num cavalo ofegante que a acolhe debaixo de sua janela.

A lua também é pintada, tem cores, a lua é vermelha e é azul. Quando há dois plenilúnios em um mês é o que se chama de lua azul, once in a blue moon, uma vez na vida, ou raramente, ou quase nunca. “Minha lua azul foi Celina”. Este pensamento-chave, núcleo da força temática, segura a narrativa rumo o fim circular, irradia elos de significações analógicas e metafóricas: “Estalou na minha vida como um relâmpago. Tomara que dure mais que um relâmpago”, outro pensamento do Surdo.

As reflexões do Surdo, acentuadas na terceira parte do romance, “No Rio-do-Braço”, abrem sendas luzentes, tão lúcidas ao ponto de rastrear a simbologia de uma viagem maior — a viagem existencial, com as suas paixões, vinganças e quimeras.

Diversos recursos técnicos propiciam um romance que pulsa de vida e imaginação, encerra substância robustecida pela veia artística inquestionável de Hélio Pólvora, mescla de escritor-poeta e filósofo. Assim, o romance evoca a Bíblia, invoca a mitologia grega, traça um conto de fadas, cita obras literárias, recheia a narrativa com ditados populares.

Esse Surdo pensador não deixa de ser o homem telúrico enroscado nas teias de uma ação forjada pelos costumes, tradições, mitos e lendas. A referência ao espaço é precisa — a região dos cacauais do sul da Bahia. No entanto, a reflexão é sobre o homem apanhado no seu espaço interior, quando o tumulto interno se avoluma. Hélio escolhe olhar o homem na proposta maior de descortinar dois mundos: o íntimo e o social, com um toque de fatalidade acumpliciada, que a cupidez, a luxúria, as paixões e as purgações ilustram.

O discurso, tantas vezes impressionista na pintura de paisagens, ao fim e ao cabo sobe a escala do romance épico, inflamado nos braseiros da avivada visão crítica que caracteriza o escritor Hélio Pólvora em todos os gêneros por ele cultivados: visão crítica do homem, de suas fraquezas, ânsias e coragens, da realidade e da sociedade que o condicionam e, muito importante, da linguagem que o traduz. Obra de grande escritor, aquele que nos torna mais impressionáveis e argutos.

Publicado no jornal A TARDE, em 18-09-2010.
Presente também na edição de setembro da Revista Eletrônica Verbo21 Cultura & Literatura: http://www.verbo21.com.br/