sexta-feira, 27 de junho de 2008

TRAGÉDIA GITANA



(sobre a vida e a obra de Frederico García Lorca)





Gerana Damulakis

Numa bela tarde em Madrid estávamos, eu e uma amiga brasileira de Pernambuco, sentadas numa das mesinhas da calçada de uma cafeteria da Gran Vía. Depois de algum tempo calada, em plena contemplação, observando a quantidade de gente que sobe e desce aquela grande via, minha amiga exclama:
— E pensar que os próprios espanhóis foram capazes de matar García Lorca!
O destino de Lorca, sendo ele um filho da Espanha, assassinado pelos contra-revolucionários do período inicial da guerra civil, converteu-o num emblema, um símbolo a proceder e encabeçar, premonitório, a extensa lista das vítimas de um futuro próximo, isso às portas da Segunda Grande Guerra. Era verão de 1936, quando Granada se tornou palco da execução de um poeta apolítico, por um pelotão do exército do Generalismo Francisco Franco.
Seja na forma ou no timbre, as canções ciganas e o romanceiro popular comportam-se, na história, como exemplos de estruturas folclóricas, trágicas, alicerçadas em lendas.
Devedora e seguidora dos legados folclóricos e da lírica espanhola, a poesia de Lorca tem a marca da confluência da vanguarda e do realismo, havendo se iniciado, entretanto, sob a influência do surrealismo e do ultraísmo tendente ao escândalo, ao desejo de surpreender pela via da ironia e da obscenidade. Sendo exemplo da popularização das correntes de vanguarda fornecido pela literatura de sua terra, Lorca fincou seu nome não apenas como poeta mas também como dramaturgo. Já dizia ele que “a representação dramática é a poesia que se levanta do livro e se faz humana, fala e grita, e chora e se desespera”. Seu grupo de atores ambulantes, La Barraca, viajou pelas províncias de Espanha exibindo a sua dramaturgia. Entre as 15 peças de Lorca, O malefício da Borboleta, Yerma, A casa de Bernarda Alba, Mariana Pineda, A sapateira prodigiosa, sem dúvida é Bodas de sangue a mais conhecida, traduzindo a gente e a paixão espanholas, que resultam da mistura excepcional de povos “calientes”, como os árabes e os mouros.
Os ciganos, que têm por pátria o mundo, chegaram à Espanha, como a muitos outros lugares, fugidos do Egito, por ocasião do êxodo lendário. Listz, cantor de suas glórias, acreditava que a música era a verdadeira epopéia deste povo nômade e panteísta, que se caracteriza pelo medo e pela superstição. A filosofia aciganada alicerça os temas essenciais de Lorca desde seu Libro de poemas, ainda que a crítica aponte influências de Rubén Dario e de Antonio Machado. Sem deixar de encontrar também o populismo e a já falada ciganidade, este primeiro livro é visto como um tímido começo se comparado com os mais acentuados momentos do tema carnal cigano; tema presente no definitivo Romancero, de 1928.
De 1918 a 1928, as escolas líricas agitaram com seus “ismos”. Lorca é tido como o poeta mais afinado com o Ultraísmo, uma derivação do Barroco espanhol, um retorno da tradição, que lhe confere a elegância e ao mesmo tempo a liberdade dentro do sentido da poesia moderna. Dissolvido o grupo ultraísta, o poeta já entrevisto se agiganta com seu genial Romancero Gitano, editado pela Revista de Ocidente, em fins de 1928, que reúne 18 poemas plenos de sentido popular, tomando o romance típico da poesia hispânica desde o século XV. Os temas obsessivos cabem à perfeição: a paisagem andaluza, a “gitanaria” e o erotismo.
Entre 1931 e 1934 apareceram, em várias revistas espanholas e americanas e em antologias de poetas contemporâneos, os poemas de Poeta em Nueva York. Escritos enquanto Lorca esteve na residência estudantil da Columbia University, os textos poéticos mostram a solidão no meio hostil, porque diferente da sua civilização; a solidão acaba por deixar evidente que a poesia de García Lorca é fruto de seu meio e de seu fado, enfim, de sua raça, do cigano que trazia em si.
Quando o poeta voltou ao seu país, escreveu a elegia exaltada no Llanto por Ignácio Sánchez Mejías (Pranto por Ignácio Sanchez Mejías), onde se mostra certeiro e sem vacilos. Daí que se chega àquela velha conclusão de que quanto mais regional é o autor, mais universalidade ele alcança. O tema do mais alto lirismo andaluz, a ciganaria, confere unidade e sentido épico à obra lorquiana. O mistério regional é buscado na sua profundidade, daí que atinja a amplitude pelo que conserva de tradição e história.
Em 3a. edição bilingue, a Martins Fontes e a Editora da Universidade de Brasília acrescentam 14 sonetos inéditos à Obra Poética Completa de García Lorca, ilustrada pelo próprio poeta. É um volume precioso para os amantes da verdadeira poesia do século XX.
Estátua em homenagem a Frederico García Lorca na Plaza de Santa Ana, em Madrid, por Julio López Hernández

FOGUEIRAS, ENQUANTO TEM


Gláucia Lemos



Este ano vivi um São João aquecido. Fogueiras, muita fumaça carregada pelo vento noturno, muito espoco de bombas, e danças de faíscas pelo ar. Muito vulcão jorrando das calçadas e tanta espada arriscando a segurança dos combatentes corajosos. Fogo no ar, enfim, uma noite iluminada por uma luz que negava a nossos olhos o prazer tranqüilo de contemplar a luz das estrelas.
Havia muitos anos que não via fogueiras. O fogo é um elemento que nos proporciona um especial espetáculo de beleza. O braseiro tem um vermelho particular, brilha sem fosforescer na raiz da chama, enquanto essa se inflama amarelada quase da cor da abóbora, evoluindo sorrateira e inconstante, se elevando volúvel como em uma coreografia mentirosa, sem jamais se fixar, e acaba sendo uma ilusão que fenece sem cinzas. A chama é apenas uma ilusão.
Há muita verdade na associação do fogo aos sentimentos do coração. Paixão que arde como fogo, chama de amor, morte de amor associada a cinzas, e por aí vai.
Quanto a mim, prefiro dispensar a chama dessa paixão e acreditar no sentimento escondido que permanece na raiz da chama, no braseiro que queima quieto, e ainda permanece por muito tempo depois que a chama se extingue. E ainda quando aquele vermelho da brasa, por força das chuvinhas que sempre caem nas noites de São João, as mais frias do ano, quando ele arrefece e já não brilha para o sabermos vivo, o carvão que se apresenta negro e aparenta frieza, permanece ardente, queimando em segredo, e se lhe dermos um sopro vigoroso, estalará de leve, e se mostrará na força do braseiro que alimentara a chama anterior. Assim é o fogo das fogueiras, assim são os sentimentos amorosos mais profundos, quando os chuviscos das noites juninas da vida os ameaçam e os cobrem do negrume do carvão aparentemente apagado. Um sopro e voltarão a arder. Porque a chama é ilusão, mas a brasa é a verdade do fogo.
Perco horas contemplando uma fogueira queimando, uma fascinação. Optei por esse privilégio, neste ano. O São João que não é mais, e nunca mais será, como as noites de junho da infância da minha geração, sequer da geração dos meus filhos, ainda é uma festa de alegria, embora tenha perdido a graça da credulidade nas adivinhações tão comuns e praticadas pela juventude de ontem. Não é preciso espírito saudosista para comparar as melodias ingênuas e o ritmo dos baiões do Gonzagão com a invasão sem propósito do axé. Até o forró que era dançado alegremente aos pares frente-a-frente, agora está contaminado por passos mirabolantes de rock. A dama há que se embolar pelas costas do cavalheiro, de vez em quando, e outras acrobacias. O advento do progresso às vezes invade indevidamente alguns espaços que, por tradição cultural, deveriam ser preservados. Incluindo a solta dos balões que pontuavam o espaço com suas luzes cada vez mais distantes, cada vez mais distantes, romanticamente viajando para o nunca mais, e que, por motivos mais que justificados e corretos, foram apagados definitivamente. No entanto, ainda temos os bailes nas cidades pequenas, os forrós puxados a sanfona ou a CDs, as fogueiras estalando, fabricando fumaça espessa, e tirando lágrimas dos nossos olhos. E o sempre licor de jenipapo, de mão em mão, descontraidamente, brindando ao santo que tanto foi sacrificado e cuja homenagem faz a festa mais brilhante do ano.
E viva São João, enquanto ainda tem!

Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Autora de mais de 20 títulos e muito premiada. Foto de jvc, retirada do Flickr.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

A MÚSICA DE PAN NA POESIA


(sobre a poesia de Dylan Thomas)



Gerana Damulakis




Pan costumava divertir as ninfas tocando suas alegres toadas ao som de sua flauta. Um dia, teve o atrevimento de desafiar Apolo. Tmolo, o ancião deus da montanha, atuou como árbitro da competição. Acorreram encantadoras ninfas, assim como homens e mulheres mortais e, entre eles, o rei Midas. Pan começou sua atuação com a sirinx e arrancou melodias rústicas. Midas escutava embevecido. Quando Pan terminou, adiantou-se Apolo com sua lira de marfim. Com seus dedos tirou, das cordas da lira, notas celestiais e os ouvintes foram tomados de prazer e respeito. Tmolo concedeu o prêmio a Apolo. O rei Midas censurou em voz alta a decisão: segundo ele, o prêmio correspondia a Pan e, por isto, Apolo fez com que orelhas de asno adornassem a cabeça do rei. Há qualquer coisa dessa transgressão, dessa violação escandalosa de Pan na poesia de Dylan Thomas (Uplands, País de Gales, 1914 — Nova Iorque, EUA,1953).
A poesia de Dylan Thomas surge, por volta dos anos 40, em meio a alvoroços e à divulgação, com uma concepção de reação à voz mais intelecutalizada do grupo representativo da literatura inglesa, como W.H. Auden, Stephen Spender, Lois MacNeice e outros. Entretanto, embora Dylan pertença, do ponto de vista cronológico, à geração de 30, sua poesia não vem imbuída das preocupações políticas da vanguarda esquerdista; ao contrário, há um romantismo na “dicção apaixonada e rapsódica”, que traz também um tanto da tradição do barroco inglês.
A flauta de Pan cria uma vida própria, e não podemos esquecer do “pânico” que esta melodia desperta, talvez devido a uma estranheza na maneira dessa sensualidade expressiva: “Uma vela sobre as coxas/ Aquece as sementes da juventude e queima as da velhice; Onde nenhuma semente se agita (...)/ Sem animo ou amurada, os poços do céu/ Jorram até as bordas,/ Prenunciando num sorriso o óleo das lágrimas”.
É incontestável o número de poemas de Dylan que se tornaram conhecidos mundialmente. “O Jovem e grande poeta”, como a crítica intitulou-o, deixou gravado em disco, para a Caedmon Records (em 1952 e 1953), em Nova Iorque, com sua voz bela e potente, toda a “tradição bárdica” ressuscitada dos poetas do País de Gales, sua terra natal. Todo o prestígio despertado é conseqüente dessa tradição restaurada e advém da sonoridade do verso de Dylan. Seu empenho é, acima de tudo, perseguir a sonoridade das palavras; o compromisso, além de brincar com o vocabulário, é com a preocupação musical. Esta tendência de tratar as palavras como coisas é alertada por Allen Tate: “A crença de que a própria linguagem pode ser realidade, ou que por encantação pode criar uma realidade é uma superstição que encontramos, em inglês, em Hart Crane, Wallace Stevens e Dylan Thomas”. Assim é que ele confere concretude à expectativa abstrata, como no poema “Houve um Salvador”: “Verteste uma lágrima de júbilo do dilúvio sobrenatural/ E reclinaste a face numa concha em forma de nuvem: Agora estamos sós, tu e eu, na escuridão”.
O tom oracular, as ressonâncias bíblicas, a densidade das metáforas, a fortuna de emoções, tudo concorre para fazer a poesia de Thomas parecer hermética. Digamos que as palavras, em meio à inquietação caótica, procuram a verdadeira ordem e prosseguem nessa procura: “A bola que lancei quando brincava no parque/ Ainda não tocou o chão”. Esta inquietação e sua existência são a força criadora de Dylan Thomas.
Ainda que seja iníquo reduzir Dylan a uma mitomania de época, não há como negar que toda uma animação em torno do poeta deu o crédito necessário para seu reconhecimento. Em seis meses, após sua morte, a edição britânica dos poemas reunidos vendeu 25 mil exemplares. Em certa biografia, Paul Ferris intitula o posfácio “Dylan Thomas como indústria”, para mostrar como o mercado foi montado em cima de relíquias da vida do poeta, como se Dylan atendesse a uma necessidade “quer como rebelde contra a sociedade mecanizada ou como figura romântica reconhecida por todos”, e mundo afora, o autor que resume todos os fenômenos do universo no amor, ficou entre os maiores do século XX ao lado de Yeats, Eliot e Auden.
No panorama da literatura universal, conclui-se que Dylan Thomas vem do simbolismo, “sendo representante de um neo-realismo” de entonação específica, ornamentada com elementos míticos. A maestria está na técnica, na potência de uma vilanela, e mais, as expressões singulares através de imagens insólitas, enfim, tudo o que soma para definir a poesia de Dylan, aproxima-o de um “surrealismo populista” que o torna precursor dos mitos dos anos 60 do século passado.
No seu “Manifesto Poético” , Dylan Thomas explica suas influências e as justifica: “Três das influências dominantes sobre a minha prosa e minha poesia publicadas são as de Joyce, da Bíblia e de Freud”. De James Joyce, a extrema curiosidade, a experimentação no campo lingüístico, a exploração do vocabulário. Da Bíblia, o conceito divino é visto tal como os poetas metafísicos: John Donne, Henry Vaughan, Richard Crashaw, George Herbert e, mais perto de Dylan, a poesia de Gerard Manley Hopkins. De Freud, Thomas nos diz que “nenhum escritor honesto seria capaz de se furtar à influência de Freud devido ao trabalho pioneiro no campo do inconsciente, mas não necessariamente dos próprios textos de Freud”. No que tange ao predomínio de James Jouce, vale ainda acrescentar que o título do livro de contos de Dylan, Portrait of the artist as a young dog (Retrato do artista quando cão, em impecável tradução de Hélio Pólvora), tem uma explicação quanto à semelhança com o título Retrato do artista quando jovem, de Joyce: “Como se sabe, a expressão que se usa para designar uma série de incontáveis retratos pintados por seus artistas é ‘Retrato do artista quando jovem’ — um título absolutamente honesto”. E Thomas enfatiza: “Joyce usou, pela primeira vez, essa expressão comum à pintura como título de uma obra literária”. Dylan, na verdade, serve-se de tudo. Como ele mesmo explana: “Dirijo todos os recursos na direção que entendo”.
Contudo, ao contrário dos surrealistas, ele “articula o que emerge de seu subconsciente e seleciona, a partir da massa amorfa das imagens, aquelas que melhor atendam ao propósito, que é escrever o melhor poema de que for capaz” Encontramos truques, trocadilhos, gírias, sprung rhythm (o ritmo inventado por G. M. Hopkins). E ainda: certo ímpeto barroco, o visionarismo de Blake, e o seu próprio sonho verbal: o virtual, aquele impulso poético manuseado em função da beleza. Diz Dylan: “Poesia é aquilo que me faz rir, chorar ou uivar, aquilo que arrepia as unhas do meu dedo do pé, o que me leva a desejar fazer isso, ou aquilo, ou nada”.
A melhor maneira para ler a poesia de D. Thomas é deixar que ela atue primeiramente sobre os ouvidos, com o intuito de adquirir uma familiaridade para, por fim, perceber o conteúdo íntimo dos “estímulos sonoros entrelaçados”. De resto, basta evocar Pan e se surpreender com essa melodia inesperada em meio ao absoluto silêncio de uma tarde quente. Sem pânico, apenas embevecimento.

Dylan Thomas - poemas reunidos (1934-1953) com tradução magistral do poeta Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991.

terça-feira, 24 de junho de 2008

ANJO LÍRICO DOS PAMPAS


(sobre a lírica de Mario Quintana)


A morte é a libertação total:
a morte é quando a gente pode, afinal,
estar deitado de sapatos
Mario Quintana

Gerana Damulakis

Foi Augusto Meyer quem disse que “a verdadeira história de um escritor principia na hora da morte”. Desde que Mario Quintana morreu aparecem mais e mais quintanólogos que chegam, a exemplo do que fizeram Meyer e Fausto Cunha, para mostrar o valor do lirismo do anjo dos pampas.
Ele estreou em livro com 37 anos, portanto, como se diz, foi uma estréia tardia. Não faltava editor. Érico Veríssimo, então secretário da Editora Globo, cobrava o livro com insistência. Mas é apenas a publicação que pode ser chamada de tardia porque a obra já estava pronta. O próprio Mario conta que os críticos dividem seus livros em três fases: a simbolista (do primeiro livro. A Rua dos Cataventos, até Sapato Florido); a realista (até O Aprendiz de Feiticeiro); a surrealista.
No entanto, não houve essa evolução. Em todos os livros há poemas da época em que A Rua dos Cataventos foi publicado. Quando os críticos disseram que finalmente Quintana havia sido conquistado pelas formas mais avançadas de poesia, ele respondeu que já havia chegado antes. O que ocorreu foi uma ordenação lógica, e não cronológica, dos poemas.
Ninguém melhor do que o poeta para explicar qual era a sua intenção: “Reuni os sonetos com seus companheiros de lirismo um tanto boêmio, as canções com suas irmãs de dança, os quartetos filosofando uns com os outros, porém num riso mal contido, os poemas em prosa proseando amigavelmente sobre isto e aquilo, os poemas oníricos com suas perigosas magias de aprendizes de feiticeiro”.
Se fases indicam coisas sucessivas, elas não aconteceram. A poesia de Quintana traz sempre suas características principais: o humanismo do seu conteúdo e simplicidade (enganosa simplicidade) de sua forma.
É preciso não ser apressado para não concluir erradamente rotulando Quintana de “poeta fácil”; na verdade, essa facilidade imediata é uma ilusão, uma aparência, porque não há soluções fáceis, ele sabe ser simples recorrendo, muitas vezes, à linguagem popular através de um trabalho artesanal com as sutilezas e recursos poéticos. Mario dizia que jamais esperava que o santo da inspiração baixasse, antes puxava-o pelo pé, e isso dá trabalho: trabalho poético.
E como é melódica a poesia de Quintana! Certa vez, Fausto Cunha perguntou ao poeta qual era o seu compositor favorito, porque, crítico atento, já havia associado esta poesia à música. Mario respondeu: “Mahler, Na música de Mahler, como na minha poesia, há uma inquietação terrível, aqueles motivos que nunca chegam a uma solução”.
Sobre suas influências, ele confessava abertamente a admiração por Antonio Nobre e Guilaume Apolinaire, mas advertia que os poetas que a gente estima têm um significado muito grande, porque não se dá, propriamente, influência, mais sim confluência; a gente só gosta de quem se parece com a gente.
Quintana levou uma mágoa ao morrer em 5 de maio de 1993: a de não ter entrado para a Academia Brasileira de Letras. Entretanto, foi sempre muito festejado. Introduzido na vida literária por Cecília Meireles quando, em 1927, enviou poemas que a poeta publicou no suplemento literário do Diário de Notícias, Mario Quintana teve aceitação imediata. Em 1966, Manuel Bandeira, em sessão da Academia Brasileira de Letras, fez uma saudação a Quintana, com um poema que se incorporou definitivamente à biografia do poeta do Rio Grande do Sul. As duas primeiras estrofes já evidenciam a admiração de Bandeira:

Meu Quintana, os teus cantares
não são, Quintana, cantares:
são, Quintana, quintanares.

Quinta-essência de cantares...
insólitos, singulares...
Cantares? Não! Quintanares!

O título de Príncipe dos Poetas Brasileiros, em 1989, foi pouco para Quintana. Poeta presente na maioria das antologias nacionais e estrangeiras, também gravou vários discos de poemas, arrebatou muitos prêmios literários, foi muito louvado. Carlos Drumond de Andrade dizia que a lírica de Quintana “é uma tradução para o simples, de muitos mistérios”. Também tradutor, Mario deixou sua marca desde o primeiro trabalho para a Editora Globo, de Giovanni Papini, Palavras e Sangue, depois, como integrante da equipe de tradutores da mesma Globo, verteu para a língua portuguesa, obras de Proust, Joseph Conrad, Voltaire, Balzac, Virginia Woolf, Maupassant, e tantos outros.
Trabalhou na imprensa, no Estado do Rio Grande e no Correio do Povo. Mario Quintana - o Mario é assim mesmo: sem acento - nasceu em Alegrete, Rio Grande do Sul, em 30 de julho de 1906. Mario morreu em Porto Alegre, aos 87 anos. Ele disse: “Não gosto que me adjetivem, eu sou um substantivo”. Portanto, vamos ler Mario, o Mario Quintana.
A escolha vai para o soneto "Da vez primeira em que me assassinaram", cuja estrofe inicial traz os versos antológicos: "Da vez primeira em que me assassinaram/ Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.../ Depois, de cada vez que me mataram/ Foram levando qualquer coisa minha..."
É o entendimento do que é comum a todos que está presente no conteúdo lírico verdadeiro, daí a perenidade do poeta, deste poeta imortalizado pelos leitores.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

ENJAULADA COM FEBRE DE AMAR




(sobre a angústia de amar na poesia de Florbela Espanca)




Gerana Damulakis

O poeta geralmente sofre da síndrome de ser vário. Walt Whitman vociferou: "Sou vasto. Contenho multidões". Fernando Pessoa inventou os heterônimos para multiplicar-se. E Mário de Sá-Carneiro chegou a dizer: "Morro à míngua, de excesso" e, sendo tantos "já não me sou". Enquanto o nosso Mário de Andrade proclamou ser trezentos, trezentos e cinqüenta, mas precisamente. Há qualquer coisa de Iago (em Otelo, de Shakespeare): "Não sou o que sou". Florbela Espanca completa: "E neste sonho eu já nem sei quem sou...".

A poeta portuguesa não escapou a essa tendência de sentir sua personalidade multifacetada. Fez-se princesa, castelã, sóror e, cada uma - como diz José Régio em estudo crítico - "morta, ressurgirá em todas as mulheres beijadas pelo homem que a amou". Como nos contos de fada, Florbela traz a concepção de viver encantada. Por tal, Jorge de Sena atenta que a poeta se transforma em seres de outros reinos, e crê que só terá esse encanto quebrado com a vinda da morte. A poesia de Florbela Espanca, como um diário, registra os estados de espírito, os seus vários: da ansiedade à depressão, do delírio da paixão à exaltação ilimitada. Daí ser terna ou voluptuosa, daí doar-se e se sacrificar ou apiedar-se com imensa comiseração de si mesma: "Tantas almas a rir dentro da minha!".

Tudo está escrito em linguagem desinibida, de fácil acesso. Primeiramente, expressando-se pela forma de Antero, principalmente no que tange à opção pelo soneto. De qualquer forma, seu modus faciendi é inerente a ela própria enquanto mulher, revelando uma sensualidade sem hipocrisia. Algo nos lembra que se assemelhe a este aspecto de Florbela, certamente as Cartas de Amor de Sóror Mariana Alcoforado. Na literatura brasileira, Gilka Machado (1893-1980), nascida um ano antes que Florbela, fala com igual sensualismo em seus versos impregnados de desejo e volúpia.

Retornando ao ponto de partida, a variedade de seres em Florbela justifica-se por este misto, esta mescla de emoções que a sensualidade encerra: insatisfação - o amor sempre quer mais -; exaltação - sensação de plenitude ao ser tomada pelo amor que julga ser total, mas logo mostra sua pequenez; "O amor dum homem? - Terra tão pisada,/ Gota de chuva ao vento baloiçada.../ Um homem? - Quando eu sonho o amor dum Deus?...". Para tanto, ela deve se transformar mais uma vez e, aqui, Florbela almeja ser aquele que o mundo cristão venera como idealização da mulher "(...) Onde couber/ O mal da vida dentro dos meus braços./ Dos meus divinos braços de Mulher!". Conseqüentemente, a insatisfação prevalece, pois que não há amor capaz de render a poeta. Ela segue com sede deste amor: "Grito o teu nome numa sede estranha,/ Como se fosse, Amor, toda a frescura/ Das cristalinas águas da montanha!".

A poeta não alcança a saciação: "Sede de beijos, amargor de fel,/ Estonteante fome, áspera e cruel,/ Que nada existe que mitigue e a farte!". Sem preconceitos, essa angústia por tamanha vontade de amar está liberta de amarras, justamente para mostrar os conflitos da alma feminina e sua volubilidade: "Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: Aqui... além.../ Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente.../ Amar! Amar! E não amar ninguém!".

Ousada e sincera, Espanca afirma: "Quem disser que se pode amar alguém/ Durante a vida inteira é porque mente!". E declara: "Eu não sou de ninguém!...". Sendo tantas, ela é única com estes versos tão explícitos da condição humana frente ao amor e suas vicissitudes, que o transforma em vários sentimentos. Enfim, as transformações dos estados de alma fazem do poeta aquele que expressa a variedade, o dinamismo da vida. Quem define bem este ponto é o Prêmio Nobel de Literatura de 1981, Elias Canetti, em A consciência das palavras (Companhia das Letras, 1990), abordando o ofício do poeta: "O mais importante é que ele (o poeta) seja o guardião das metamorfoses". Não tendo como escapar, a história e a imediatividade da vida de um poeta estão inseridas em suas metamorfoses. E se o poeta em questão é poeta do amor e sua superfluidade, a imagem é como a revelação exuberante no ápice da escrita desse erotismo que, acima de todo o universo dos sentidos, mescla carne e espírito na voragem das mudanças ou transformações. Georges Bataille, em O Erotismo (L&PM, 1987), diz que o "interdito existe para ser violado": proposição cumprida por Florbela, que revela a multiplicidade do ser mulher em várias vozes. E a dela é das que o tempo não mata; na verdade, desperta, anima para dar-lhe mais vida a cada nova leitura.

A foto da capa do meu O rio e a ponte, do qual retirei este texto, é de Edward Hopper. Foto da estátua de Florbela Espanca em Évora, Portugal, retirada do Flickr, assinada por moitas61.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O RIO E A PONTE


Gerana Damulakis



Ao dar a este meu livro o título O rio e a ponte -À margem de leituras escolhidas, editado pelo Selo Letras da Bahia, eu procurei metaforizar a relação entre a leitura e a percepção da mesma leitura, buscando, com obstinação, a despretensão, e, com isso, atingir o leitor que é capaz de admirar e encontrar prazer no ato de ler um pequeno ensaio e, quem sabe, através deste, ir procurar um prazer maior dando um mergulho; ou seja, busquei instigar aqueles que são sensíveis à literatura.

Excetuando o texto sobre José Saramago, que saiu na revista do Gabinete Português de Leitura, Quinto Império, os demais textos reunidos foram escritos para o suplemento Cultural do jornal A TARDE, cujo editor naquela altura, Florisvaldo Mattos, foi o principal responsável pela existência destes escritos, dados seu estímulo e sua confiança na minha capacidade de expressão frente ao grande público do maior jornal do Estado da Bahia e do nordeste do país.

Como o público do jornal e da revista é seguramente maior que o do livro, lamenta-se o pouco espaço destinado aos assuntos literários na imprensa escrita. Lembrando o grande ensaísta José Paulo Paes, influência confessa no tocante ao meu caminhar pelos bosques da leitura, transcrevo seu pensamento com respeito ao modo de encarar a crítica: "Por ter de enfeudar-se cada vez mais na universidade, a crítica, capitis diminutio, passa a ser uma atividade setorial, ela que nascera vocacionada para o urbi et orbi".

A miscelânea que acaba por conter um denominador comum, que é o objetivo de suscitar curiosidade sobre livros e autores, justifica-se por ser uma reunião de textos escritos ao longo de alguns anos sem o propósito de compor um livro, mas que se mostrou viável graças ao objetivo supracitado.

Creio que sempre haverá os que desejam perseguir o prazer do texto sobre a obra para, como pensava T.S.Eliot, redobrar o dito prazer.



Esta é a nota liminar do meu livro O rio e a ponte, que terá alguns dos textos postados aqui no blog.

terça-feira, 17 de junho de 2008

AS QUATRO FOLHAS DO TREVO


Gláucia Lemos

Descobri uma touceira de trevos em um canteiro. Há muito tempo não encontrava um pé de trevo para exercitar minha busca à felicidade.
Agachada, demorei-me mexendo nas hastes, frágeis, que mãos sem cuidado não podem afastar. Caçava um que tivesse as quatro folhas do talismã. Não havia nenhum. Essa incontida busca à felicidade... Estamos sempre a persegui-la, sem sequer sabermos onde, em qual objeto, em que ser, em que ação, em que pessoa daremos com ela. E até nos confortamos com seus símbolos.
Fugitiva e escorregadia, ela nos escapa a cada momento, a cada tentativa. Ou somos nós que, na ansiedade por possuí-la, e não desconfiando sequer da sua forma própria, do seu impreciso conteúdo, ficamos a bater a cabeça, a gastar os sapatos e a ralar a alma, a nos animar com as miragens pelas quais ela nos ilude. É ela que nos ilude, ou somos nós que nos envolvemos prazerosamente nas ilusões que nós próprios criamos na pressa de tê-la? Ela está sempre apenas onde a pomos / e nunca a pomos onde nós estamos. Assim pensava Bilac (ou Vicente de Carvalho? Minha memória me trai.)
Mas nós não queremos a felicidade que manipulamos, que movemos de um a outro lado, que podemos pôr em algum lugar. Sonhamos a utopia de uma felicidade que lá um dia apareça de asas abertas, enormes, todas em plumas cor de ouro – ou brancas também servem - e nos envolva dizendo: Cheguei! Sou a tua felicidade! E ela nos entregue - enrolada para presente, ou desenrolada mesmo - uma pessoa que nos ame definitivamente – nada disso de infinito enquanto dure, ame mesmo no duro definitivamente, sendo sob medida para os nossos braços como quer a canção, mas não só para os nossos braços, também sob medida para as nossas emoções, que não ronque de noite, não tenha mau-humor, não seja arrogante, nem sofra de gastrite nervosa, e venha envolta em uma nuvem – que pode ser leve – de paciência para a TPM e o atávico consumismo feminino. E sobretudo que, de vez em quando se lembre de que nós, mulheres, existimos, e nos sorria. Queremos uma felicidade que nos traga aquele emprego cujo chefe seja generoso e bem-educado, ou de preferência sejamos o chefe de nós mesmos, pois sabemos ser suficientemente responsáveis, e nosso salário cubra não só as nossas necessidades, mas também os nossos sonhos. Queremos que ela nos traga filhos, ah! como prescindir dos filhos? Filhos que nunca adoeçam, que nos amem e reconheçam que fazemos tudo para que estejam bem, e também entendam que pais são humanos e erram. Filhos que, acima de tudo, se sintam muito felizes.
Não nos conformamos com a felicidade minguada que possa caber nas nossas inexpressivas mãos, para que tenhamos o arbítrio de manejá-las. Essa é sempre pouca para nós. Felicidade que se preza e que nós merecemos há que ser monumental e alegórica. Porque tudo, enquanto sonhamos, é monumental e alegórico, temos a psicose do grandioso para podermos sofrer a inacessibilidade a nossos sonhos.
E assim vamos nós, até que um dia, entramos naquele restaurante pequeno e aconchegante, no qual costumamos almoçar quando estamos na praia, e somos recebidos com o abraço do dono, na sua sincera simplicidade, e o sorriso de quarenta e quatro dentes feitos de coco, daquele cozinheiro que é mestre e doutor no mais delicioso ensopado de mariscos, e nos sentamos ao lado de um jardim de graxas, escutando o silêncio de uma rua tranqüila, nos entregando aos beijos de uma brisa levíssima como um adejo de beija-flor, a alma em paz mais que sempre, fechamos os olhos, e então nos descobrimos pensando: isto, este momento, é felicidade.
É verdade que depois passa. Saímos do estado de divindade e voltamos à guerrilha da cidade grande, retomamos as defesas para não sermos engolidos pela competição, pelo banditismo, não sermos pisados pela inveja, pela intriga, pela falsidade, pela fome de destruição dos nossos semelhantes tão dessemelhantes. E cá estamos outra vez mexendo nas touceiras à procura de um trevo que tenha brotado com as quatro folhas do talismã.
No entanto, enquanto isso, quem sabe, acontece o beijo de um filho, a palavra de um médico confirmando a saúde, a presença de alguém inaugural adentrando os portais da nossa vida, o prêmio que se estava disputando, o encontro com um amigo de quem se tinha esquecido há tanto tempo, e você, e eu, voltamos a pensar: isto, este momento, é felicidade!




Gláucia Lemos é autora de mais 20 títulos. Esta crônica vai compondo um livro que nasceu aqui neste blog. Foto de Daniel Freire, retirada do Flickr.

domingo, 15 de junho de 2008

MOVIMENTO METAFÍSICO


Carlos Vilarinho


Uma, duas, três
Mil almas que eu tenha
Em dez, vinte ou trinta vidas...

Em um ou dois sóis
Brilhando ou refletindo
Mil constelações.

Deles eu vejo outro eu
Fora de mim.
Sem que eu mesmo
Veja algumas sombras...

Mais estão, em eus distantes.
Assim díspares e dissonantes.
Em terras e oceanos
D'eus em instantes?

Quantos milhares de mim há?
Que nunca formam outros
Em vão.
Só em translação.



Carlos Vilarinho é ficionista, mas também está atendendo ao chamado da poesia. Foto de "obuscadorcosmico" retirada do Flickr.

JUNHO


Gláucia Lemos


Deixa-me partir a teu encontro
ferir a fronte no frio de junho
a te levar a cicatriz mais funda

do lenho que em meu ombro verga o dorso
e dói-me em dor de pele
em sangue e fogo.

Calvário que não chega.
Dá-me teu ombro,
nele inflamada a chaga
dessa cruz
no meu ombro levada.

Deixa-me partir
para que te tenha.
Faze-me o fim nos mesmos cravos teus
e a minha dor, em ti,
fira mais funda.

Se é o que tens que fazer
faze-o depressa.
Que junho já agoniza em frio e sangue.




Gláucia Lemos é ficcionista premiada, mas também é poeta e por isto topou participar desta maratona de poesia. Foto de luisbess, retirada do Flickr.

quarta-feira, 11 de junho de 2008

SONÂMBULA



Luís Antonio Cajazeira Ramos


A Gerana Damulakis


A vida passava, o amor não chegava.
Aguardava (a esperança a guardava)
o que não acontecia, quem não vinha.

Desenhava a felicidade na fumaça das horas,
debruçada sobre o parapeito dos sonhos,
vendo a todos transeuntes do deserto,
sob a sacada das emoções perdidas.

Improvável Penélope, tecia ilusões de partida
para confins imaginários sob o lençol diáfano,
manchado do sangue virgem dos seus desejos,
satisfeitos na solidão de núpcias de nuvem.

A vida passava, a dor não chegava
ao pesar da vigília, a que o engano negava
acordar os galos e deitar os lampiões...
E beladormecia na eternidade em que se perdera.

E não se sabe que bruxa, que fada,
que fado a vida reservara a seu destino
de Cinderela das vertigens.




Este poema de Cajazeira está em Mais que sempre (Editora 7Letras, 2007), acho que fui a primeira a opinar sobre ele, daí a dedicatória. Na foto, Cajazeira e eu em algum lançamento de livro, ambos estávamos olhando para o autor enquanto este autofotografava.

terça-feira, 10 de junho de 2008

A IDADE DA VIDA



Carlos Vilarinho



Toda manhã
Quando nasço.
Fico inquieto,
Preso ao laço
De uma atmosfera juvenil.

Não, não me embaraço,
Somente crio semente ambulante
E tomo espaço.

À tarde, já envelhecido.
Alquebrado e carcomido.
Leio figuras e imagens
Em sonho sonâmbulo
De outros personagens.

À noitinha, de madrugada
Sem dormir e medicado
Sinto-me ontem,
com saudade e já delicado.
Cochilando de olho aberto
À espera de Caronte.




Carlos Vilarinho tem um livro de contos, está escrevendo um romance, mas também sentiu a poesia que está no ar. Será o inverno?

Foto Lukas Jakobczyk - Caronte, por brightonsinger, do Flickr.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

UM POEMA DE KÁTIA BORGES


E se perderam no parque
como se fosse possível
encontrar na jaula dos leões
a criança que sumira
na penúltima visita. Nada


denunciaria os olhos tristes
por trás das lentes escuras
e, do sorriso da boca, o giz
da secura, nada denunciaria
que se perderam no parque
como se fosse possível
encontrar-se.






Kátia Borges é autora do livro De volta à caixa de abelhas (Selo Letras da Bahia, 2002). Seu blog, Madame K, tem entrada pelos meus "Favoritos".

Foto de Omar Júnior, retirada do Flickr.

sábado, 7 de junho de 2008

A PALAVRA

Gláucia Lemos





Tarda
e se faz longe e tarda.
Para cá do âmago do meu sacrário
e foge,
palavra úmida do escondido soluço.



Viesses
como rebentação viria,
grito de cataclismo,
ou rio,
a escandir sobre a tela pautada,
teu ritmo de dor.


Viesses,
fogo em coivara a estalar,
ou frágil flama em lenho de fogueira.
Viesses,
casca a ragar-se da amêndoa,
inflamando ignota e vívida.



E após tua voz no traço
- sangue impresso -
o silêncio,
vencendo a agonia do silêncio,
seria
a perseguida paz.











Gláucia Lemos é ficcionista premiada e tem mais de 20 títulos publicados, mas o blog está em tempo de poesia. Foto de Rodolfo Oliver, retirada do Flickr.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

UM POEMA DE CARLOS VILARINHO


Despedida
Travo a língua,
Guardo a lágrima contida,
Engulo o gosto de sangue na saliva,
Despejo o resto da bebida,
Esvazio o prato da comida,
Beiro ao desespero ante ao colapso da despedida...

Nada mais há entre nós.

Não sei quando perdi a identidade de ser alguém pra você...
Talvez no momento em que roí incertezas de quem era... de quem estava por ser...
E apesar de tudo, nunca quis abrir mão do Ser...

Ontem, li na capa de um livro: é preciso separar pra crescer,
Mas de que adianta ser grande se já não Sou com você?

Sinto-me como uma garrafa boiando na correnteza...
Estou sem tampa...
Encho... Esvazio...
Entendo que isso é o que movimenta o meu estar no mundo...

Nada mais quero ser,
Apenas estar,
Com quem acaso encontrar.



Carlos Vilarinho é ficcionista, cronista e, para surpreender a madrinha, enviou este poema.
Foto de Camafunga, retirada do Flickr.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

DE TARDE


Gerana Damulakis


O que fiz com a vida?
Embrulhei para presente,
depois joguei longe, embora.
Como esquecer o passado?
Entro em casa,
pego meus livros,
meus pedaços de mim.
Passo a noite rolando,
criando esse ser poeta,
deixando pra lá
outros sonhos, até você
(imagem que se sobrepõe).
Comigo se foi a manhã,
estou em plena tarde,
tratando de não perder
o relógio de vista.
O passado volta
(no futuro) e esse
sentimento é apenas
uma reação química
reversível
e velha - automática -
dos meus sentidos.
De Guardador de mitos (Edição do autor, 1993).

QUANTA-COISA


Goulart Gomes



A Ciência é o novo Deus da Civilização
já não cremos na Filosofia
ignoramos a Religião
somos todos são-tomés
e toda a nossa fé
sustenta-se numa equação.
Não preciso que um físico
japonês ou alemão
acelere uma partícula
quebre o prótão e o neutrão
para me provar que existe
uma outra dimensão
pois quando contemplo as estrelas
(sóis perdidos na imensidão)
sons dos astros me preenchem
e aceleram meu coração:
a razão não prova nada
só aumenta a confusão.
Cercados de incertezas
manipulamos a Natureza
em busca de explicação:
se eu modifico o fato
nunca vou jogar os dados
Ele sabe o resultado,
velocidade e posição.
Pode a probabilidade
conviver com a exatidão?
Muitos Mestres já falaram
muitos mais repetirão:
São infinitas as moradas
escolha a sua mansão.




Retirado do site de Goulart Gomes: www.goulartgomes.com/. Há entrada nos meus "Favoritos". A foto é de Miguel Valle de Figueredo, retirada do Flickr.

domingo, 1 de junho de 2008

Sobre o ROMANCE D'A PEDRA DO REINO




Goulart Gomes



“Nobres senhores e belas damas de peitos brandos”:


Fiquei espantado ao terminar a leitura do livro ROMANCE d’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA, de Ariano Suassuna José Olympio Editora, 9ª. ed, 2007). Imediatamente assisti o DVD da mini-série produzida pela Rede Globo (incluindo os extras), e meu assombro duplicou. Quando recebi, das mãos de Ariano, o meu exemplar autografado, em Recife, no dia 10 de dezembro de 2007, não fazia idéia da preciosidade que me era entregue, o verdadeiro prêmio literário que me foi concedido, naquele dia.

A partir de experiências pessoais: o assassinato de seu pai, o convívio com os tios, que inspiraram os personagens Samuel e Clemente (no filme, interpretados pelos atores baianos Frank Menezes e Jackson Costa); referências históricas: as conturbadas lutas e revoluções da década de 30; míticas: a volta do rei Dom Sebastião, as profecias de Antonio Conselheiro e culturais: toda a riqueza da literatura e música nordestina e ibérica, Ariano escreveu uma das obras magistrais da Literatura Brasileira, como ele diria, um romance de “fé, sangue, estro, ciência e planeta”.

O fantástico Dom Pedro Dinis Quaderna – Imperador do Brasil, nascido a 16 de junho de 1897, mesma data de nascimento de Ariano, 30 anos antes - misto de doido, bufão, visionário, malandro brasileiro, “Poeta-escrivão, bibliotecário, jornalista, Astrólogo, literato oficial de banca aberta, consultor sentimental, Rapsodo e diascevasta do Brasil”, magnificamente interpretado nas telas pelo ator Irandhir Santos, é um dos mais instigantes personagens da Literatura Brasileira e, consequentemente, Universal, sempre envolvido em verdadeiras intrigas palacianas, loucuras e devaneios.

Obra que demorou 13 anos para ser concluída, o “romance armorial brasileiro”, publicado em 1971, ficou vários anos sem ter reedição, devido a problemas com a editora, sendo os exemplares da primeira edição disputados a ferro e fogo por admiradores e colecionadores, nos diversos sebos. Com a maravilhosa releitura do diretor Luiz Fernando Carvalho, em 2007 ganhou as telas, conquistando mais uma legião de fãs.

Mas, qualquer coisa que se diga sobre a obra é pouco. É fundamental lê-la, com todo o carinho e atenção que merece, aprendendo a verdadeiramente amar esse Dom Quaderna, que não tem medo nem vergonha de acreditar nos seus sonhos, por mais absurdos que pareçam. Ele, que sonha ser o “Gênio da Raça Brasileira”, tem um grande adversário: o seu pai e criador, Ariano Suassuna, não apenas um dos maiores intelectuais brasileiros, mas também um ser humano admirável, por sua alegria e simplicidade, admirado e respeitado por todos que o conhecem.

“Viver é decifrar enigmas.”

(as frases entre aspas são da obra de Ariano)


Salvador, 1 de Junho de 2008.