quinta-feira, 21 de agosto de 2008

AS VOLTAS DO TEMPO

Gerana Damulakis

Lúcia Santóri-Carneiro lançará mais uma vez seu volume de poemas As voltas do tempo, da Coleção Selo Letras da Bahia. Digo mais uma vez porque ela fez um lançamento individual, mas na próxima semana participará da festa coletiva que dará ao público os últimos títulos da Coleção. Voltarei a falar do Selo em outra oportunidade, inclusive para deixar aqui registradas a alegria e a realização que tive nos oito anos que passei na FUNCEB integrando a Comissão Literária do Selo Letras da Bahia. Quero citar poetas e ficcionistas que estão me dando tanto orgulho com suas produções e que têm seus livros publicados na Coleção.
Mas este momento é da poeta Lúcia Santóri-Carneiro.
Assim intitulei o prefácio de As voltas do tempo: "A marca delicada da alma", como certa vez foi descrita a filosofia da poesia. Seja, então, porque eu quis chamar a atenção para a delicadeza dos versos, seja porque ela transcende o subjetivo para ensinar a brincar, construindo um mundo próprio e mostrando delicadamente ao leitor como pode ser firme (parece um paradoxo, porém não é e a leitura atesta isto) e como pode ser real e poético o objeto se visto por um prisma lúdico em total concordância com a tal construção do sentimento (com a construção da alma?). Há recorrências como a água, como o mar, como a lua, como o peixe, como a bicicleta; recorrências que vão nos familiarizando com a poesia de Lúcia. Uma poesia tão original que é fácil reconhecê-la pelas suas marcas.
Certa vez a poeta me mostrou uma prosa poética que contava sobre uma observação: o prazer que o olfato pode proporcionar. O texto chama-se "Tangerina" e está no livro. É tão denso e tão real que passei a associar o perfume da tangerina à história de Lúcia. E pode a poesia ser tão real; ela que é a ficção do sentimento? Pode. E nem por isso deixa de ser lírica, e nem por isso deixa de trazer melodia e encanto. São os tantos caminhos que fazem a arte literária tão rica e inesgotável.


RETRATO
Lúcia Santóri-Carneiro

Hoje, estendi o braço
e toquei a bicicleta que na infância me fazia voar.
Senti a textura do caule de bananeira,
o gosto da banana do quintal,
e subi nos ombros de meu pai para um longo passeio.
Deitei no colo de minha mãe para comer a única maçã saborosa
do mundo, e acompanhei minha avó até a roseira
[que dava rosas minúsculas, com as quais fazia
[pequenos bouquets para os santos de sua devoção.

Hoje, ao olhar um retrato, findou a distância que me separava do
ontem! O tempo, subjugado, foi subitamente vencido pela memória.

UM DOMINGO ESCOCÊS


Gláucia Lemos

Morreria em um domingo, costumava dizer. A amiga benzeu-se uma vez. Ave Maria. Dizendo bobagens, Deus é mais!
Todo domingo é lenho de sacrifício, silêncio e solidão. A contínua solidão é a definição da morte. Que mais teria no seu morar de mosteiro em que cada um se recolhe a seu canto, como quem incha a barriga de alimento e se entoca, e lá fica? O mundo cá de fora é dos que vivem. Esses, sim, passeiam como gatos, seus pelos lambidos pelas salas, pelas varandas e avenidas, patas de pantufas japonesas alisando sintecos e tapetes e ladrilhos e calçadas, e, nos telhados, amam.
Domingo é o prédio vogando emudecido numa, apenas perceptível, superfície de nostalgia. Lá, bem ao longe os eventuais saltos de sapatos quase gritam em contato com as calçadas. Lá, bem ao longe, ronronam os motores à frente dos óculos escuros dos que, nos dorsos bronzeados cheirosos a cerveja, regressam do mar. Aqui perto tilinta o triângulo que convida a degustar cavaco, àqueles que transitam. Ninguém mais compra cavaco. Por que será que ainda tilintam os triângulos na rua em que todas as crianças e jovens estão no aeroclube apostando pulos no colchão inflável? Tilintam certamente para anunciar que alguém habita a tarde de Domingo, e o anuncia ferindo a mudez e entrando pelo apartamento para dessacralizar a solidão.
A amiga não retornara das férias com certeza. Tivesse retornado, já haveria de estar narrando as maravilhas das viagens. Fazia falta sua voz ao telefone, repetindo os assuntos que revisitava iguais, todos os dias, com a pontualidade do galo castanho que cantava nos amanheceres da sua infância.
Na secretária pisca o vermelho teimoso, reclamando que, há mais de duas horas, um recado qualquer a espera. Não vai atender. Deveria ser Frederico, quem mais , na tarde de Domingo? Frederico que não gosta de ser chamado Fred, diz que Fred é frescura. Só Frederico pensaria isso. Só Frederico teimaria em ligar pela décima vez para comentar o filme que um dia produziria, mas nunca se mexia para tanto. Quem queria escutar a monotonia do filme de Frederico para somar à monotonia do Domingo? Xerox do anterior e do outro e do outro.
Ainda se gostasse de bebida...
Loira a transparência de um Bell's ali em frente convida à diferença entre os domingos. Ainda se gostasse...
São 16 e 45 exatamente.
Os porta-retratos sorriem idiotamente para o vazio da sala. Para que tantos sofás sem função, não entendia. Maciez que não conhecia o corpo daquele que se fez esperar e se guardou em mudez, como todos os que se esquecem de vir a quem os espera. Era só mais um, como os que bem conhecia, com todo o egoísmo e toda a indiferença dos gatos. Cabia-lhe bem o epíteto de gato.
Parece que alguém ressona em algum quarto no abafamento da tarde. Alguém que dorme e não sonha. Os que sonham entendem de sonhos e de solidão dos sozinhos. Não se entocam com a auto- contemplação inerente aos gatos.
Alguém podia ligar agora. Alguém que não Frederico. Justamente agora e dizer qualquer coisa. Qualquer coisa serviria. Fosse até que estaria feliz e não precisava dela. Seria a lâmina cortando o silêncio e partindo a vida. Envenenada, trazendo a morte após seu corte, mas seria a voz que a mataria finalmente após a agonia do Domingo. Quando a amiga regressasse das férias, ligaria, e não a encontrando, diria a alguém: Ela sempre falou que morreria na solidão de um Domingo.
Todo o Bell's da garrafa transparente, loiro como um galã escocês, desceu pela garganta e arranhou a laringe, desceu pelas veias e queimou as águas que circulavam no trajeto do sangue. Até que estorricou o coração e isolou definitivamente a solidão do Domingo. Nunca mais solidão. Ou solidão para sempre.
Ela sempre dizia.

Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta e brinda seus leitores com este conto. Foto de Poesis T, retirada do Flickr.