domingo, 2 de setembro de 2007

A trilogia de Antônio Torres



Na Flip 2007, realizada neste começo de julho, a Editora Record levou o escritor baiano Antônio Torres para representar a literatura brasileira. O mais recente romance de Torres, Pelo fundo da agulha, teve, em Parati, quase que um relançamento, haja vista que foi editado em 2006. Mais do que merecido, Pelo fundo da agulha tem tratamento especial porque vem fechar a trilogia iniciada com o romance Essa terra, de 1976, hoje já definitivamente consagrado com várias reedições e traduções. Passados 20 anos surgiu O cachorro e o lobo, retomando a vida do personagem Totonhim numa volta ao sertão, partindo de São Paulo, para onde fora no final de Essa terra. No total são 30 anos, de Essa terra até Pelo fundo da agulha, de Totonhim menino e rapaz, que deixa o Junco baiano — hoje Sátiro Dias — rumo a São Paulo, até o bancário aposentado Antão Filho, ou seja, o idoso Totonhim. Tantas foram as tragédias: a ida do irmão Nelo em busca do sul maravilha e sua volta de malas vazias e seu suicídio como redenção pelo pecado de não ter vencido; a loucura da mãe com a perda do filho; a solidão do pai; a viagem de Totonhim, também para fazer uma vida fora do sertão; o retorno de Totonhim, apenas como uma vista, mas que faz o pai temer mais um suicídio; a constatação da velhice da mãe que, apesar da vida sofrida e de uma insanidade temporária, ainda é capaz de enfiar a linha pelo buraco de uma agulha. Mas Totonhim não é Nelo, não há sina registrada e, então, vem o retorno que se dá como quem passa a vida a limpo: em São Paulo, deitado a relembrar, o aposentado, separado da mulher e dos filhos, conta com uma vida inteira que, enfim, pode receber um ponto final. Pelo fundo da agulha já encontra o personagem assim, com a vida feita e refazendo o caminho através da memória, pois chega a hora de, sem sair do lugar, passar os fatos e as sensações pelo túnel do tempo. O romance leva o leitor nessa viagem de uma forma tão envolvente que, se este mesmo leitor não tiver lido Essa terra e O cachorro e o lobo, seguramente irá em busca deles. É irresistível, inclusive, uma releitura dos livros anteriores, pois queremos mais, sempre mais, após fechar o volume Pelo fundo da agulha.
Gerana Damulakis

CONTO DO MÊS

O VESTIDO PRETO


Aramis Ribeiro Costa


Virgínia sentia-se particularmente triste, naquela tarde. Andando pelas alamedas do shopping, pensava mais na sua vida de trabalho, rotinas e privações do que apreciava as vitrines que, afinal, pouco representavam para ela, já que não havia intenção de comprar coisa alguma. O marido era um homem trabalhador, e ela também trabalhava, mas os salários de ambos apenas permitiam que pudessem viver uma vida decente, com os dois filhos na escola, a mesa posta, a roupa necessária, as contas pagas. Diversões, nada além da televisão rotineira, da praia aos domingos e dos eventuais passeios aos shoppings, com os gastos controlados.
Naquela tarde, após o trabalho, sentindo o tédio da sua vida ainda maior do que nos outros dias, resolvera andar um pouco sozinha pelo shopping, antes de ir para casa. Seus passos eram lentos e sem rumo, e os olhos passeavam pelas vitrines como se efetivamente se interessassem por elas. De súbito, chamou-lhe a atenção um vestido, posto em destaque na vitrine de uma pequena loja. Era um vestido preto, de tecido fino, com um acabamento perfeito, que lhe pareceu belo e extremamente elegante no manequim.
Virgínia parou. Diante do vestido, que representava o contraste da sua vida modesta, sentia um misto de encantamento e frustração. Jamais tivera um vestido daquele, jamais teria um vestido daquele. Pensava isso, quando notou que uma vendedora saíra da loja e observava-a.
— Boa tarde — disse afinal a vendedora, sem sorrir. — Posso ajudá-la?
Virgínia ia dizer que não e afastar-se. Mas teve a curiosidade de saber quanto custava aquele lindo vestido preto.
— Este vestido — apontou ela, com encantamento. — Quanto custa?
Em lugar de responder, a vendedora olhou-a de cima a baixo, sem pressa, avaliando com olhar experiente as suas roupas simples, e não apenas as roupas, mas todo o conjunto que denunciava uma pessoa sem posses.
— Este vestido? — perguntou enfim a vendedora, não se sentindo animada a revelar o preço. E disse: — Este vestido é muito caro. Nós temos outros, mais baratos. Você não quer ver outro?
Foi como uma bofetada. Não era tola. Aquela mocinha acabara de insinuar que ela não podia comprar aquele vestido. Sentiu-se ofendida, humilhada. Mas não retrucou a ofensa com palavras. Controlando-se, disse apenas:
— Não. Eu quero ver este.
A vendedora tornou a olhá-la inteira.
— Você quer saber o preço, não é? — perguntou com desdém.
— Não — tornou a dizer Virgínia, procurando dar à voz uma entonação firme. — Eu quero experimentar o vestido.
Por uns momentos, a vendedora não saiu do lugar. Finalmente, dando-lhe passagem, indicou a porta com um gesto:
— Entre. Qual é o seu número?
Virgínia disse, a moça pegou um vestido exatamente igual ao da vitrine, entregou-lhe. Virgínia tomou-o e dirigiu-se ao reservado. Tirou a roupa que usava e vestiu-o, mirando-se no espelho.
— Então? — perguntou a vendedora do lado de fora do reservado, por detrás da porta fechada.
Diante do espelho, Virgínia permanecia em êxtase. Olhava-se, olhava-se. Nunca se vira tão linda, na verdade nunca pensara que ficaria tão bela vestida daquela forma. O vestido caíra no seu corpo esbelto como se fora confeccionado sob medida.
— Ficou bom? — insistiu a vendedora, do lado de fora.
Virgínia abriu a porta, mostrou-se; queria que ela a visse. A vendedora não escondeu a surpresa. Voltou a olhá-la de cima a baixo, porém agora com admiração. Virgínia sorriu.
— Então? — perguntou. — Quanto custa este vestido?
No mesmo instante a vendedora voltou a olhá-la como no começo, como se a pergunta a fizesse lembrar-se com quem tratava. Disse o preço, olhando-a nos olhos. Virgínia estremeceu. O vestido era muito mais caro do que ela imaginara. Na verdade, representava para as suas posses uma pequena fortuna. Além disso, para quê ela queria aquele vestido? Onde, quando o usaria? Voltando à atitude inicial, a vendedora tornou a sugerir:
— Você não quer experimentar outro mais barato?
— Não! — respondeu Virgínia energicamente. — Eu quero este!
Em seguida, agindo muito rápido, para não pensar, fechou a porta do reservado, tirou o vestido, tornou a vestir a sua roupa, abriu a porta e entregou o vestido à vendedora, juntamente com o seu cartão de crédito, dizendo:
— Pode embrulhar.
A moça obedeceu, agora toda sorrisos. Ao entregar-lhe o vestido, dentro da sacola com o logotipo da loja, sorriu ainda mais amável e disse:
— Obrigada à senhora. Volte sempre.
Virgínia deixou a loja com passos firmes, a cabeça erguida, segurando com firmeza a sacola com o seu vestido preto. Mas, logo adiante, quando já não podia ser vista pela vendedora, foi diminuindo os passos e abaixando o olhar. Uma fortuna. Uma fortuna. Como explicaria ao marido aquela compra inútil, como pagaria aquele valor? O suor descia por suas costas, empapava-lhe a roupa; a alça da sacola rasgava-lhe os dedos. O vestido preto. Que loucura. Que loucura.

O QUE É TER OLHO CRÍTICO

Um texto sobre literatura, saboreando avaliações para apontar quais, dentre tantos recursos da arte literária, determinado autor recorreu, pensando sua disposição e que condições ele criou para que a ficção se desse, tudo isso não deixa de ser tão prazeroso quanto a própria ficção, seja a prosa, seja a poesia, que é a ficção do sentimento. Alguns disseram que a crítica é a forma moderna da autobiografia, outros já acham que o crítico é aquele que encontra sua vida no interior dos textos que lê, mas o escritor argentino Ricardo Piglia, em Formas Breves (Companhia das Letras, 2004) diz mais bonito: “A pessoa escreve sua vida quando crê escrever suas leituras”. E Aramis Ribeiro Costa completa acertadamente dizendo que o olho crítico é a transformação da visão pessoal em um critério objetivo.
A razão para tal digressão sobre a crítica talvez tenha vindo da leitura de A literatura na poltrona, de José Castello, sub-intitulado “jornalismo literário em tempos instáveis”, perfeito para quem faz a crítica sem pretensão acadêmica, ou talvez venha da leitura do Pequeno manual de procedimentos, de um escritor argentino de primeira água chamado César Aira. É difícil escolher para quem conceder certa preferência e estender o comentário, mas como José Castello é mais conhecido, já vem de O poeta da paixão (Companhia das Letras, 1994), sobre Vinicius de Moraes, O homem sem alma (Rocco,1996), sobre João Cabral de Melo Neto, Na cobertura de Rubem Braga (José Olympio, 1996), Inventário das Sombras (Record, 1999) e outros, haverá oportunidade de dedicar-lhe outras linhas.
Ficamos, então, com César Aira, um ficcionista que seduz inteiramente o leitor. Na Flip deste ano, ele estava no lançamento de sua caixa com dois livros: As noites de Flores e Um acontecimento na vida do pintor-viajante, ambos pela Nova Fronteira, acompanhados por uma reunião intitulada 13 variações sobre César Aira, de Carlito Azevedo. A caixa é imperdível, porque se pode constatar a aplicação de todas as reflexões que o autor fez sobre a literatura no livro supracitado em torno dos procedimentos, o tal manual, este igualmente imperdível, mas apenas para quem sente o deleite na leitura sobre literatura, a ponto de “olhar criticamente”. Contas feitas, aportamos no que foi objeto do início deste texto, por conta do ensaio “Best-seller e literatura”, do brilhante César Aira. Chega-se, arredondando estas linhas, enlaçando-as com o começo, para terminar com as palavras de Aira, que tão bem compreende o olho crítico, o que percebe a diferença entre um O código Da Vinci e um volume como A morte de Ivan Ilitch: “... lendo-o [o best-seller] se aprende história, economia, política, geografia, sempre à escolha e de forma divertida e variada. Lendo-se literatura genuína, no entanto, não se adquire nada além de cultura literária, a mais inofensiva de todas”. Aí está uma colocação genial usando a ironia pela via da humildade! Fiquemos, pois, com a literatura genuína e a sugestão citada na comparação: A morte de Ivan Ilitch, do grande Liev Tolstói.
Gerana Damulakis