sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A MÃO DO AMO




Gerana Damulakis


Esta vertente narrativa do escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934- ) presente em A mão do amo ( Companhia das Letras, 2008), com tradução de Sérgio Molina e Lucas Itacarambi, foge completamente do que se conhece de títulos seus, tais como Santa Evita, O cantor de tango e O romance de Perón, chamados "ficções-verdade".
O “grande” personagem da história é um anti-herói chamado Carmona, cantor lírico porque a mãe assim decidiu. A mãe é a clássica castradora, fonte de uma vida arruinada.
Os personagens são: "Mãe", "Pai", as "Gêmeas", a valorizada sra. Doncella e a presença real ou ilusória dos gatos, estes últimos motivo do ódio de Pai e motivo da idolatria de Mãe; além destes há os "turcos" (vizinhos), há as Montanhas Amarelas, onde os pais de Carmona começaram a namorar e onde, pela primeira vez, os gatos já mostram sua importância na história, seja com seu "coro", seja como razão da negação de Pai, quando não de seu ódio explícito.
Martínez não deixa de colocar o quanto o verbo "amar" e o substantivo "amo" são semelhantes a "mama", "mãe", descoberta feita por Carmona ainda criança e inocente, talvez trazida pelo inconsciente, que já captava o poder daquela mãe, daquela mão dominadora, mão de amo. Carmona nasceu com "voz absoluta", mas não conseguirá realizar os sonhos de Mãe, seguirá dependendo do seu amo.
A Mão do Amo quer-se um "romance de formação", com toques surrealistas, mas com uma finalização clara porque, contas feitas, nos lembra que as pessoas só nos fazem aquilo que deixamos que elas façam.

"FAZENDO POESIA,VAMOS, OS DELICADOS"

Gerana Damulakis

Kátia Borges não precisa mais de avaliações. Sua poesia já está inserida na literatura baiana contemporânea como uma das vozes mais singulares. Voz enriquecedora, pois que aumenta a quilatagem que a nossa poesia alcança. No implacável conteúdo emocional, nas constatações que procuram a cumplicidade do leitor, a poeta alicia.
O segundo livro de poemas de Kátia Borges, Uma balada para Janis (P55 Edições, 2009), da Coleção Cartas Bahianas, traz algumas mudanças substancias se comparado com De volta à caixa de abelhas (SCT/ FUNCEB/ EGBA, 2001), da Coleção Selo Editorial Letras da Bahia. Primeiramente por tratar, já no título, de uma empreitada maior do que a anterior, a qual reunia poemas sem enlaçar, digamos, um determinado tema. Daí que, seja apenas devido à essência poética, seja pelo necessário movimento sequencial do texto de agora em cima de um personagem (vida e morte), carregando-o ou sobrecarregando-o de maior responsabilidade, um acréscimo se deu em relação ao livro de estreia.
A escrita poética foi tecida com precisão para que se saiba exatamente sobre o que deve ganhar reflexão. Vem, portanto, ajudada por sua dicção peculiar, como se um prisma fosse, deixando a integração por conta da combinatória temática sugerida desde o título.
Sim, porque A balada para Janis não é o título de um poema que foi parar na capa como título do volume: o volume mesmo tem quatro poemas, todos relacionados ao mundo de Janis Joplin, do nascimento até a morte.
O primeiro poema é “Port Arthur, Texas”. A cidade Port Arthur, onde nasceu Janis, no Texas: seus 10 cantos – sim, vou chamar de cantos – falam de uma menina ( a poeta, há um “eu”), de uma infância, de sua mãe e de seu pai e do medo do que há por vir. Lugares são frisados, o título fala no Texas, mas os cantos falam da Baía de Todos os Santos, de Barra Grande.
1.
Mãe, não ponha a mesa,
parece que sou visita,
parece que sou princesa.
Ah, é, sim, ela me diz,
naquele seu jeito terno dela,
para mim, você é princesa.
Depois de recordar, de lembrar uma festa sem herói, no canto 10, encerrada está a infância: “Minha infância é um país/ destruído, do qual parti em sobressalto,/ numa noite sem sonhos”. Mas é como num sonho que o leitor encontra atrás daquele “eu” que falava com a mãe, uma voz de mulher que vai partir: “não sei dos outros,/ mas cheguei aturdida/ - sem adolescência que desse conta,/ do passaporte e da bagagem - / numa outra espécie de vida”.
Assim a viagem interior começa e o título nos deu a pista de que não se deve perder de mira a ambiguidade; as mulheres são duas, apenas uma pode olhar para a outra, uma delas já não existe.
O segundo poema é “High Ashbury, San Francisco”. Quando Janis se aproximou de uma comunidade hippie em Haight-Ashbury, San Francisco, sua carreira finalmente se iniciou e logo ela gravou um disco. Três anos depois, Janis esteve no Brasil e foi expulsa do Copacabana Palace, quando nadou nua na piscina do hotel. São 11 cantos.
1.
Nossa Senhora de Copacabana,
daí-nos o Sol todos os dias,
mesmo no Inverno. Dai-nos
o seu calor sem termo,
Nossa senhora de Copacabana.
Há sombras, uma história de um piquenique, de novo a Baía de Todos os Santos, a Carlos Gomes, a Praça Castro Alves: não há dúvida, o poema continua também em Salvador. Ao fundo, toca um rock. O mais sublime prevalece:
7.
Espero
com a paciência dos desesperados
que o destino teça seus dramas

Dama
ás que Deus guardou na manga
para provar que existe e é bom.

[quando eu já duvidava]
Não existem mais mistérios
o meu aparelho é stereo e vai do jazz ao
[rock n’roll

[e ouço poesia, todo dia, no volume máximo]
Neste ponto, confesso que senti o quanto o lado da contadora Kátia está aparecendo, sobrepondo, por vezes, a lírica com gosto de mel (mas não melosa, atentar na diferença, pois Kátia jamais fez poesia água com açúcar) daquela caixa de abelhas. Quanto engano. Já no 8 e seguindo o 9, o 10 e o 11, encontro “coração aberto”, “olhos brilhantes” e amor.
Em 9, a referência é clara, estamos a sós com Janis: “Só lembro dos olhos brilhantes/ da moça dentro da piscina,/ bebendo uísque numa caneca”, enquanto a outra aparece na estrofe seguinte: “Só lembro dos olhos brilhantes/ da boneca, desfilando, seminua,/ na Carlos Gomes...” Um jogo, a poeta vê, ela vê Janis em alguém. Vale apontar uma homenagem merecida para o poeta Damário Dacruz, citado no terceiro verso do canto 11.
O terceiro poema, “Pearl”, título do álbum de JJ, lançado 6 meses após sua morte. Talvez o poema que mais me encantou. São 15 cantos. O de número 14 é especialmente interessante e novamente conta, pois vemos um aeroporto, uma alfândega, uma moça e, no entanto, é poesia, pura poesia. Este o mistério de Kátia Borges, seu jeito de dizer, cada vez mais próprio.
O quarto, “Landmark Hotel”, nome do hotel em cujo quarto Janis morreu de overdose. O 11 aborda um suicídio planejado. Os poemas com os números 5 e 7 e a sensação do 14 leitura e releitura. O 15 traz de volta a poeta, ela mesma e sua memória. Enfim, do jeito de KB: reviver através da poesia.
5.
Fazendo poesia, vamos, os delicados,
sendo triturados pelas engrenagens
desta grande máquina. Alguns,
mais selvagens, farão versos com sangue,
escrevendo impropérios com a ponta das unhas.
Outros, mais tranquilos, perseverarão
no lirismo com o que lhes restar de sanidade.
Fazendo poesia, vamos, os delicados,
sendo triturados pela grande máquina
(até que Deus nos salve).

FRASES NECESSÁRIAS

Gerana Damulakis

Mario Quintana (1906-1994) deixou uma poesia que geralmente é rotulada como simples. Eis algo que me intriga. Assim ocorre também no caso de Manuel Bandeira, profundo conhecedor de poesia, poeta capaz de um soneto ou de versos saídos de uma notícia de jornal: nada há de simples na poesia de Manuel Bandeira, pelo menos não no sentido pejorativo atribuído a esse “simples”.
Mario Quintana – o Mario é sem acento – tem poemas belíssimos e frases belíssimas. A construção, poema a poema, verso a verso, frase a frase (como querem alguns), deixa evidente a elaboração e o talento.

Igualmente um grande tecedor de frases é o poeta Manoel de Barros (1916- ). Já ouvi alguém dizer sobre Manoel de Barros: "É um 'frasista' apenas". Que tal "apenas" reconhecermos que as frases são achados poéticos, que nos encantam, que nos fazem refletir? E, às vezes, precisamos de uma frase, precisamos repetir uma frase até a exaustão, precisamos ser convencidos... ah, como precisamos!

De Mario Quintana:

O tempo não pára! Só a saudade é que faz as coisas pararem no tempo...

De Manoel de Barros, um verso lido há muito tempo, mas inesquecível:

Caracol é uma solidão que anda na parede...