quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A ÚLTIMA CEIA

Flamarion Silva

Olho minha mulher sentada à mesa. É Natal. Ceamos. Posso olhá-la à vontade, até certo ponto. Cronometro na cabeça o limite do meu olhar. Às vezes, propositalmente, ultrapasso essa barreira cronológica, só para ouvir seus xingamentos, só para sentir no meu coração apaixonado todo o ódio que ela nutre por mim. Ela bate na mesa com sua mão firme, que antes, isto bem antes, me acarinhava. Agora bate. Mas não me fere. Cada vez que a provoco é para que saiamos da inércia em que nossa vida se enfiou. Grita comigo. Minha linda mulherzinha esbraveja comigo e um pouco da comida da sua boca salta e bate no meu rosto, na minha boca. Abaixo a cabeça.
– Homem submisso. Fracote. Molambo – sei que ela diz essas coisas de mim. Mas o que ela nem ninguém percebem é que, ao me abaixar, submisso, o meu amor se nutre um pouco da vida dela. A língua, lenta, lambe o lábio e recolhe o alimento triturado, amassado, salivado pela sua boca.
***
– Quer mais frango? – ela perguntou outro dia. Quando? Olhe como o tempo é engraçado! Faz tanto tempo. Já se passaram tantos Natais.
– Quer mais frango? Vamos, queira, vou servir.
– Posso pegar uma coxa? – pergunto.
– Animal. Animal. Não pode ver comida. Tudo para se amostrar. Quando vê gente fica assim – ela diz, nervosa, e, sem modos e sem paciência, enfia com raiva um garfo enorme na coxa do frango, na maior coxa, na mais gorda coxa, e atira-a dentro do meu prato, respingando óleo na minha roupa branca de festa, manchando-a. Não reclamo, não lhe digo nada.
– Porco. Animal. Não pode ver comida.
***
Sorrio. Não repare, ela sempre foi assim estourada. Veja como me ama: agora mesmo acabou de derramar no meu prato um pouco de carne que sobrou. Ninguém quis.
– Como “ninguém.” Então há mais alguém além de mim e ela?
Nossa! Como a mesa está cheia! Filhos, genros, noras. E netinhos tão lindos!
– Vem cá para o vô, vem.
– Vô não – responde o menino, emburrado – Vô não – e me chuta a canela ferida, e dói, e sinto que sangra, mas não digo nada, ninguém pode perceber, estragaria o momento, não seria higiênico.
O sangue, misturado ao pus da ferida, gruda na calça. É uma ferida antiga que não sara. Já pensou, mostrasse o magoado sangrando e aí mesmo é que ela, com razão, me chamaria de porco.
Sorrio.
– Ah, zanguei – faço uma cara engraçada, de condoído, para o meu netinho.
– Macaco feio – ele me chama.
Todos sorriem. Veja como foi engraçado e como todos se acabam no riso.
– Posso pegar outra coxa? – pergunto.
– Não! Já vou tirar a mesa – e rápida raspa a tigela, os pratos, toda a comida da mesa.
No corredorzinho, indo à cozinha, olho seu corpo de moça, cinturinha delgada, nádegas volumosas, os cabelos compridos... Aspiro o rastro de alfazema que ela deixa.
– Pare de farejar a comida – ela diz, virando-se para mim, gritando, quase soltando, saltando a dentadura da boca, quase caindo de tonta.
***
– Calma, minha mãe. Calma – ouço a voz dela, num outro canto – E o senhor, meu pai, pare de aborrecer minha mãe.
– Ora, minha filha, não fiz nada – respondo, agora percebendo minha filha já de pé, segurando a mãe para não deixá-la cair. Tão parecidas!
Num outro canto, ouço cochichos, sibilos, cicios.
– Internar.
– Onde? Como?
– Mas quem vai querer o traste?
– Agüentemos mais um pouco. Logo emborca, embarca mesmo.
– Vaso ruim não quebra, minha filha – diz alguém com voz cínica, bêbada e esganiçada.
– Não fale assim dele. É meu pai.
Viro-me para ele, o cretino do meu genro e...
– Imbecil! Imbecil! Imbecil!
E três batidas firmes na mesa.
Minha voz saiu clara, mas todos insistem em dizer que, de tão bêbado, nem consigo falar. Deve ser o maldito bolo crescendo na minha boca que me obstrui a voz. E, agora, todos me condenam e chegam ao consenso de que é melhor internar.
– E rápido. Amanhã mesmo. Amanhã mesmo, logo cedo.
Cochichos. Sibilos. Cicios.
***
Daqui a pouco a festa acaba e todos vão embora. Festa de que mesmo? Ah, Natal.
– É tarde. Vocês dormem aqui. Arranja-se lugar.
– Eu tenho pena. Não passa de um doente.
– Então, interna-se. Não há outro remédio.
– Durmam no meu quarto, que é grande. Já está dormindo. Bebeu demais...
– Quê? A festa já acabou? – pergunto-me – Para aonde foram todos? E este silêncio... O maldito relógio. Não consigo ver as horas. A catarata anuviou tudo.
– Meu bem. Meu bem – digo alto, isto algum dia. Dúvidas. Pensamentos. Fantasmas que me assustam – Xô! Xô! Quê? Internar? Levanto-me. Upa, upa, quase caio. Internar? Ora, mas quem eles pensam que são? Separar, separar assim, cruelmente, duas vidas que Deus... E o que Deus uniu, o homem não separe. É um mandamento. Um mandamento. Um... Para sempre juntos, para sempre.
***

Dirijo-me ao quarto dela. O meu fica um pouco mais lá no fundo do corredor. Casa grande... Faz anos que nos separamos. Mas estamos juntos. Repare bem: juntos. É um paradoxo, eu sei, mas o teto ainda é o mesmo. Habitamos o mesmo espaço, partilhamos tantas coisas de anos: o cheiro dela, a voz, o andar, antes lépido e fagueiro, hoje arrastado. É esse som. É esse cheiro de alfazema. Os gritos e os desarranjos. E foi principalmente o ronco que, tantas noites, passo a passo pelo corredor, levou-me ao quarto dela, e lá, quietinho, no escuro, ouvia-o com prazer. De certa forma, esses pequenos detalhes preenchem minha vida, sem os quais não vivo. A faca. E o que Deus uniu, o homem não separe.
A porta aberta.
– Venha, venha por aqui. Escuro, mas o tato já sabe o caminho. Cuidado, o pé da cama. Aqui. Aqui, um momento, paremos. Ouça:
– Ronc! Ronc! Ronc!
– É o ronco dela. Aqui os pés. Aqui a barriga. Aqui a cabeça. E aqui, mais embaixo, o coração.
Ergo a cabeça e as mãos para o céu escuro do quarto e desço de vez, uma, duas, três vezes.
– Meu amor! Meu amor! Meu amor!
***
O escuro do quarto não me deixa ver o corpo. Sinto-o.
O corpo meio curvado, feito criança no útero. Sangue. Criança no útero, abortada. A boca travou.
– Não, não faça birra. Birra é uma palavra do meu tempo, quer dizer “teimosia.”
Os lábios ainda mornos, viçosos e carnudos... Ainda como antes. Sinto-os com os meus. O gosto de sangue na boca. Beijo de sangue...
– Ela apagou – digo por fim, com a certeza de quem desperta de um sonho tenebroso. Acendo a luz e vejo dois corpos na cama. No mesmo instante, minha mulher abre a porta do quarto, olha a cama e vê o corpo ensangüentado. Leva as mãos à boca e arregala os olhos. Um grito de pavor ecoa por toda a casa.

Flamarion Silva é autor de O Rato do Capitão (Secretaria da Cultura e Turismo/ EGBA, Coleção Selo Letras da Bahia, 2006).

MARIA DE CADA PORTO




Gláucia Lemos


Foi sob a impressão do filme A ostra e o vento de Walter Lima Filho, que fui à procura do romance homônimo que lhe dera origem, e encontrei seu autor, Moacir C. Lopes, nas prateleiras de uma estante virtual. À minha disposição lá estava o elenco de romances escritos por ele. Ao que parece, a maioria com temática praieira, reveladora de uma preferência bastante sintonizada com a minha.
O autor começou marinheiro, evoluindo no sentido cultural, chegou a tradutor e professor de Literatura.
Sou dos leitores que, conquistados por um autor, não se satisfazem com pouco, vão à cata de sua produção, até o limite que lhe seja imposto. Assim fui atraída por Maria de cada porto, romance com o qual Moacir Lopes inaugurou sua trajetória literária. Ele o escreveu para matar o tédio, durante as viagens de marinheiro, nas horas de descanso, e narrou justamente a vida dos homens do mar, no período da Segunda Guerra Mundial.
O livro tem início com a explosão do navio Bahia, no qual o protagonista, Delmiro, estava servindo. A narrativa, em primeira pessoa, evolui marcada pelos dias em que permaneceu, com vários companheiros, em uma das balsas que ficaram à deriva, todas ocupadas pelos sobreviventes do barco atingido, quase amontoados a ponto de ficarem com pernas e flancos submersos, dado o pequeno número de balsas com que contavam.
O desenvolvimento é bem balanceado. Temos o sofrimento dos náufragos, ao sol e ao sereno, sedentos e famintos, desesperançados de qualquer socorro, sem mínima condição de comunicação com a base ou com outros navios, assistindo a morte de companheiros vencidos por todas as carências, ao enlouquecimento de alguns, e ao suicídio de outros, farejados todos pelos tubarões ao redor das balsas, ou feridos por inevitáveis contatos com as águas-vivas trazidas pelas correntes marítimas. Dia após dia de desespero e noites de atormentadas vigílias. No interregno da narrativa dessas horas, conhecemos as recordações de passagens referentes à vida normal da marujada, fazendo o contraponto pitoresco. Os amores de ocasião ou de sentimento deixados nos portos, as festas e divertimentos improvisados, as brigas, as perseguições e a camaradagem, tudo é exposto com a verdade das diferentes personalidades dos protagonistas. Moacir Lopes é um excelente narrador dos fatos – reais ou fictícios, tornando leve a evolução da história, inteiramente despreocupado de retórica. Interessa-lhe o cunho de verdade dado às ocorrências, a definição do perfil de cada personagem, quase todos identificados por alcunhas bastante criativas, dando-nos, muitas vezes, a impressão de estarmos diante de pessoas vivas agindo e interagindo conforme os fatos.
A Maria de cada porto vem a ser todas as Marias, Dolores, Ninas e Detinhas que os amavam realmente ou só por um dia; que os esperavam em cada porto, ou simplesmente se deitavam com os marujos para lhes proporcionar o carinho ausente durante a longa solidão das travessias. Temos nesse livro um documento, ou um relato vivo, ainda que configurado em estrutura de romance, talvez atos e fatos nascidos da imaginação com raízes na experiência cotidiana de quem experimentou de perto e na pele, as agruras da vida no mar durante uma guerra. Isso com a consciência da absoluta insegurança, e a certeza de que cada olhar ao horizonte, cada passo na rampa de acesso ao barco, cada retorno aos postos após a breve licença em cada porto, cada noite ilusória nos braços de qualquer Maria, poderiam ser os últimos de cada um.

Gláucia Lemos lançou recentemente o seu 33º título, o romance Bichos de Conchas (Scortecci, 2008).