sexta-feira, 30 de maio de 2008

DEVER DE CASA



Gláucia Lemos



As chuvas passaram, pelo menos diminuíram. O sol, com toda pompa e circunstância, declara aberta a temporada de malhação.
Recomeço a caminhar nas manhãs, que não sou de malhar em academia. Chega de obrigações com hora marcada. Se as andanças satisfazem à prevenção para estimular meu motorzinho, fico com elas.
Enquanto caminho na pista do meu prédio, vou considerando por que será que, dispondo de cerca de seiscentos metros de pista, com três metros de largura, bem calçada, varrida e tranqüila, em volta do corpo do edifício, protegido por muros altos no fundo e nos lados, e na frente por grades e porteiro, a maioria dos condôminos opta por caminhar na rua, geralmente no calçadão da orla? Compreendo o prazer da proximidade daquele marzão, panorama gratuito que ninguém nos toma, privilégio inviolável. Mas, em contrapartida, até chegar ao calçadão há o estresse das sinaleiras, há a atenção redobrada em relação aos trombadinhas que não escolhem hora para tomar posse dos celulares e correntes dos caminhantes. Será que compensa?
Enquanto isso, eu estou tranqüila rodeando o prédio, e vou observando, sem indiscrição nem má fé, o comportamento dos meus vizinhos.
No fundo, ando pela ciclovia que só é utilizada pelas senhoras ou suas domésticas que levam os cachorros a passear, e não só. Mas sem bicicletas, nem precisariam. Tampouco sem pazinhas nem saquinhos plásticos. Ora, temos os zeladores, dirão... A convenção proíbe criação de cães no edifício, mas há uns quatro ou cinco poodles, um basé castanho, ontem encontrei um spaniel cabeludão e lindo, e até já houve um enorme e velho boxeur, mestiço com alguma raça de gigante, famoso no prédio, que morreu de senilidade, tendo sido pranteado pelo dono, um fisioterapeuta simpático, que, por pouco, não o acompanhou, pois passou uma semana sem se alimentar, desgostoso. Ao que parece, já reagiu, anda sorridente exibindo uma namoradinha parecida com La Arósio, e agora leva a passeio um SRD malhado, pequeno e feio, mas bastante jovem.
Deixando a ciclovia, encontro o personal trainer, treinando a si mesmo, a fazer o circuito da quadra de basquete, ao mesmo tempo em que lê o jornal do dia. Sabe aproveitar o tempo, embora esteja despendendo o dobro de energia.
De vez em quando alguém retira o carro – há que ir trabalhar, não? – e vem maciamente atrás de mim. Protejo-me procurando o pé do muro, há espaço suficiente, e ele se vai. Então faço uma descoberta interessante: crescem muitos pés de quebra-pedra, uma erva pequenina cuja folha se assemelha à folha dos tamarindeiros e que dizem ser muito eficiente para alguns males dos rins. Estão brotando justamente ao pé do muro, na junção entre o cimento do muro e o do piso, onde, ao que parece, não há terra. Não é à toa que tem esse nome. Receio que o jardineiro os arranque, e gostaria de pedir que não o faça. Mas entendo que tem que cumprir sua tarefa e garantir seu emprego. Por que tem que ser assim? Por que não existem regras intermediárias? Para tudo?
Na portaria, as auxiliares do lar estão chegando, parecem vir os blocos na mesma condução, pois chegam aos lotes. Umas entram apressadas como se estivessem atrasadas, umas param e pegam o jornal dos patrões das mãos do porteiro, umas demoram para um papo simpático com o porteiro do horário, só depois da terceira ou quarta risada resolvem finalmente entrar. Lentamente.
Estou vindo da minha quinta volta. O sol se esconde de repente e começam a cair uns pingos grossos, que me obrigam a correr para descer e me abrigar junto das garagens do subsolo. O porteiro que vai render o da noite está chegando. Ri da minha carreira e brinca amavelmente: Ê, dona Gláucia, hoje a chuva não deixou! É o porteiro mais antigo, aquele que já é amigo de todo mundo, discreto e educado. Também rio confirmando, no subsolo entro no elevador.
Subo. Da minha sala olho a rua e, um pouco decepcionada, vejo que o sol já começa a abrir-se novamente. Os condôminos que caminham na orla estão retornando. A mulher das toalhas de pratos ainda está abrigada sob a copa do pé de fícus. Há uma fila de carros aguardando o sinal. Um Picasso cinza-metálico está se aproximando e a mulher vai até ele exibindo as toalhas. O motorista não compra. Baixa o vidro, só um pouco, entrega-lhe alguma coisa. Algum dinheiro, suponho. O sinal mostra o verde, o Picasso se movimenta, a mulher acena em agradecimento e retorna à calçada de olhos na mão entreaberta.
A propósito, fico pensando se Picasso em vida teria sido generoso. Nunca li nada sobre isso. Mas não importa.



Gláucia Lemos é ficcionista premiada e tem mais de 20 títulos. Suas crônicas são inéditas neste blog. Foto de Luis Benedito, retirada do Flickr.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

UM MOMENTO


Gerana Damulakis



Terrível recordação que
machuca e marca,
ao lembrar que
você já esqueceu
aquele dia,
aquela noite,
que não sou eu
parte de você,
nem re/parte
daquela lembrança
inútil e perdida
numa rolança de
nós dois,
encaixe perfeito que
não pode acontecer.

Terrível ser uma
pedra jogada ao rio,
ver dissipado
aquele momento
pelo tempo
dos dias
- quem sabe, algum dia.




De Guardador de mitos (Edição do autor, 1993). Foto de Marina Palmeira, retirada do Flickr.

ap[EGO]


Goulart Gomes




se eu lhe toco
é o apego do meu ego
que lhe afaga

se eu lhe foco
é o gozo do meu ego
que me afoga

se eu compro
o meu ego aplaca a fome
e me consome

quando luto, ele ganha
me derrota e me arrasta
em sua sanha

se me foge uma amiga
o ego e seu ciúme
fazem todas, inimigas

se me quedo no aconchego
e me cego para o mundo
ego-abismo, em que me afundo

e o ego tudo engole
em sua sede de tornado
e me queda, en-si-mesmado



Salvador, 28/05/2008

Goulart Gomes é autor de Minimal entre tantos títulos. A foto é de denis collette, retirada do Flickr.

O TANTO QUE NÃO FOSTE


Gláucia Lemos




E agora que te trago como rastro amargo

nessa viagem sem verões nem pássaros,

sinto que como chuva,

eras.

Eu te viajava como espaço,

como terra,

como garças em bando,

como plenilúnio e maré cheia

e lago a transbordar.



Eras vida, sendo lua e eclipse.

Eu te conhecia

como marfim aos dedos no piano,

como algas à areia,

como penumbra à véspera da luz.



E agora, que te trago mero rastro,

vou.

Viagem sem verões,

sem marés

e sem pássaros.





Gláucia Lemos é ficionista premiada e tem mais de 20 títulos publicados. Mas, além disto, ou, talvez, exatamente por isto, é também poeta.Foto Graças cinzentas por jvverde, retirada do Flickr.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

O PROFESSOR

Gerana Damulakis

A João Cabral de Melo Neto

Imagens procuradas por
imagens atropelam-se
como ondas em vagalhões
ou sinos num turbilhão.

No oposto da vegetação,
o esforço é para domar
o nada, deserto em canção,
excluída a magia da fada.

O que não encontro
no significado de uma
lâmina, faca sem cabo,
é o que entendi da lama.

Do homem da lama,
tirando, da lama mesma,
a luta oriunda da chama,
já essa lama não é só lama.

Que essa lama é emblema
da força que força a lutar
no silêncio que clama
vencer, da lama sair; voar.



De Guardador de mitos (Edição do autor, 1993).

POEMA DO MÊS


Eli Eli lama sabachthani?



Manuel Anastácio


Promete não dizeres mais nada

Entre os arcos desenhados pela minha voz.

De nós, nada mais deve restar agora

Que os dois num só, a sós.

Promete não dizeres mais nada

Enquanto durar a nossa constelação.

Promete manter o céu em silêncio

Até que venha a hora

Em que peçam explicação,

E remoam o espanto

Perante o silêncio de água e sangue

Que escorre dos meus flancos

– Depois de ter gritado a última acusação

Que ninguém compreenderá.

Porque, nessa hora, não me terás abandonado,

Mas aberto a porta

Para que, enfim, retorne, e entre de novo em mim.




Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/): há entrada para ele diretamente do leitoracritica.blogspot.com/, na coluna “Favoritos”.
Aqueduto de Pegões. Foto de Manuel Anastácio em Creative Commons

sexta-feira, 23 de maio de 2008

PERDA


Gláucia Lemos


Palavras se foram
e ainda se enramam como fios
nos saltos dos meus sapatos.
O que é meu e tenho dentro
em mim, delas se plasma
como o sumo branco da uva branca
no meu copo
a alimentar meu corpo.
Elas sou eu
com o rigor da minha febre.

Neste início de noite
eu as tenho mudas
e a míngua habita o fosso
que ficou.



Gláucia Lemos é ficcionista premiada e aplaudida, com mais de 20 títulos. No entanto, a poesia também habita em seu talento e sabe mostrar sua presença.

Foto de Lu Arte, retirada do Flickr.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

HOMENAGEM

SALOMÃO CORRÊA, DINHA E ZÉLIA GATTAI

Goulart Gomes


Neste mês de maio de 2008 me senti um pouco Forrest Gump, testemunha do tempo que passa, e com ele leva pessoas amigas, populares e queridas. Este mês de maio – mês das noivas, das mães, das mulheres – também foi um mês de dar adeus (ou até breve!) a três pessoas com as quais, de forma próxima ou distante, convivi.
Luiz Carlos Salomão Corrêa (1947-2008), romancista e pintor, era meu colega de trabalho e de letras, um homem versátil, extrovertido, cordial, participativo. Conversávamos sempre, nos corredores da empresa, entre um cafezinho e um copo d’água. Participávamos dos eventos culturais internos, trocávamos informações e impressões. Ilheense, com um riquíssimo curriculum acadêmico, publicou quatro romances: Geraldo, o boi (1996); O segredo de Noca (1997); O vôo de Ícaro (1998) e Os Calores de Viridiana (2001) e preparava um novo livro para 2008. Em férias, na Europa, foi vitimado por problemas cardíacos. Sempre em busca de novos desafios, estava contente, ultimamente, com a sua inclusão em duas obras de referência enciclopédica na Bahia, nas quais aparecia como romancista contemporâneo. Em seus livros, o retrato das personagens populares, em histórias contadas com descontração e fluência. Um grande camarada, que nos deixou repentinamente.
Dinha (Lindinalva de Assis, 1952-2008), a famosa baiana do acarajé, foi fazer seus quitutes para São Pedro. Com certeza, a exemplo daquela famosa personagem de Manoel Bandeira, será recebida de braços abertos, por seus orixás, nas terras de Aruanda. Figura alegre, simpática, assim com um jeito da Tia Nastácia, de Monteiro Lobato, encontrávamos com ela todas as semanas, no “caixa” da sua tenda, no estacionamento de um supermercado, no bairro do Costa Azul, cobrando de nós o delicioso acarajé (com camarão e pimenta, claro!), que as suas discípulas preparavam: “Cobre aí, três e cinquenta”.
Já sobre a Zélia Gattai (1916-2008), quem sou eu para falar, diante de tantos intelectuais que com ela conviveram! Apesar de vivermos na mesma cidade, o mais próximo que estive dela foi como verbete, no Dicionário de Autores Baianos. Mas não tenho a menor dúvida que essa baiana de São Paulo era mesmo de Oxum: esbanjava simpatia, carinho, felicidade, harmonia. Quando comecei a publicar meus primeiros livros e antologias, sempre enviava, pelos Correios, um exemplar para o casal Amado. Não sei se os liam, mas tinham a gentileza de, por intermédio de suas secretárias, agradecer o envio, em papel timbrado. E vocês não sabem o quanto isso, para um escritorzinho em começo de carreira, como eu, era importante! Saber que aqueles que “chegaram lá” têm um mínimo de atenção e respeito pelos das novas gerações que, inclusive, são também seus leitores.
Nesses momentos, o pouco que podemos fazer é agradecer a essas pessoas pelo que elas foram e pelo que representaram em nossas vidas, pelo que nos legaram, pelo que de bom contribuíram, por algum instante que seja, para a nossa própria existência, seja conversando e trocando risadas; nos proporcionando o prazer de degustar um maravilhoso acarajé, após um dia cansativo de trabalho ou “perdendo” um pouco do seu tempo para nos escrever algumas linhas (em um tempo em que e-mail nem existia!). Fica aqui o meu muito obrigado a todos eles e que Deus os abençoe, hoje e sempre.
Salvador, Bahia, 20 de maio de 2008.

domingo, 18 de maio de 2008

HOMENAGEM


"Continuo achando graça nas coisas, gostando cada vez mais das pessoas, curiosa sobre tudo, imune ao vinagre, às amarguras, aos rancores."
Zélia Gattai (02/07/1916 - 17/05/2008)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

DO AMOR I



Manuel Anastácio

Amor,
Minha só e única razão
para chorar o eterno deserto
interno em mim.
Minha só e única razão
Pensamento e fim:
Fizesse eu de luz o poema
que deveria, por maior razão, nos teus olhos se reflectir
e limitar-me-ia a descobrir,
ainda mais,
a minha boçal, trivial, banalidade.

É por isso,
por mero egoísmo,
e medo de te perder,
de nos perder,
que prefiro a escuridão dos caminhos abertos pelas palavras.




Manuel Anastácio assina o blog Da Condição Humana (http://literaturas.blogs.sapo.pt/): há entrada para ele diretamente do leitoracritica.blogspot.com/, na coluna “Favoritos”. Tal como Saramago exige, que a ortografia portuguesa seja conservada, ainda que o livro esteja circulando aqui no Brasil em edição da Companhia das Letras (editora brasileira), também conservei, no texto de Manuel Anastácio, a ortografia usada em Portugal, daí o “reflectir”.

A foto é Labirinto do amor, por Felipe Arte, retirada do Flickr.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

MAIS UM LIVRO DO MESTRE DO CONTO CONTEMPORÂNEO





Gerana Damulakis










Foi-se o tempo em que se comprava o livro desejado nas livrarias. É tempo de compras pela internet. Eu mesma sou assídua compradora da livrariacultura.com.br., ou da cosacnaify.com.br. Mas vou indicar a compra do livro que cito abaixo diretamente pela imagoeditora.com.br. Trata-se do mais recente livro de contos de Aramis Ribeiro Costa. Se no seu primeiro livro de contos, A nota de Rosália (Editora Marfim, 1989), predominava a situação cotidiana que retirava o indíduo de sua rotina para colocá-lo frente ao acaso, no seu segundo livro, A assinatura perdida (Iluminuras, 1996), o insólito aparecia dentro de uma plausível ironia que desestabilizava o momento, sem esquecer de mirar também circunstâncias dramáticas, elas próprias independentes do traçado previsível pelo personagem, o qual não aguardava a mão do fado. Isto tudo se adensou em O mar que a noite esconde (Iluminuras, 1999), pois que o acaso já antes apontado vai se mesclando com um quê de espefacto diante de surpresas mais distantes ainda da previsibilidade. Faz-se necessário aqui apontar alguns exemplos. Se de A nota de Rosália retiro o conto "Praia" para ilustrar o acaso interferindo na vida cotidiana, haja vista um ocorrido banal ser suficiente para estragar o clima prazeroso de uma família numa manhã divertida na praia, vejo-me conduzida a retirar de A assinatura perdida, o conto mesmo que dá título a tal volume para mostrar a forma irônica como a mente pode nos trair a qualquer instante. Já no volume O mar que a noite esconde está o conto "A rosa de Natália", para mim magistral exemplo do comportamento humano, da incapacidade de lidarmos com as forças internas que nos colocam diante de surpresas criadas pelos desejos, pela pungência desses desejos, pela urgência em quebrar regras para sentir a vida, pela necessidade até de criar o drama pessoal. Não fica por aí a caminhada: O fogo dos infernos (Iluminuras, 2002), classificado como reunião de novelas, traz textos com elaboração e carga dramáticas mais complexas, desde logo graças ao texto estruturado para o gênero, constituindo uma leitura de peso dentro do universo do autor. Por esta via tenho que citar também a novela Episódio em Curicica (Selo Letras da Bahia, 2001) e o romance Uma varanda para o jardim (Editora Marfim, 1993). Para ficar na contística, vale lembrar que Baú dos inventados (Imago, 2003) é uma reunião de contos que o autor colheu dos livros anteriores e que Os bandidos (Imago, 2005) é um marco, uma plataforma quase, visando confirmar o autor como um contista de seu tempo, inteiramente de olhos abertos para os problemas do hoje, do aqui e da maneira como se está vivendo este aqui e este agora. Chegamos a Reportagem urbana (imago, 2008): sete contos fortes, sete vezes o momento crucial diante de nós. Sete é um número que diz muito: os sete dias da criação, os sete anos que Jacob serviu Raquel, as sete portas de Tebas, os sete pecados capitais, os sete muros que cercam a cidade Celeste, as sete obras da misericórdia,, os sete dons do Espírito, os sete andares do Céu, os sete planetas e os sete metais, as sete maravilhas da Terra, as sete estrelas do grupo das Plêiades, os sete braços dos sete candelabros empunhados pelos sete anjos que rodeiam o trono divino e que soarão as sete trombetas do Dia do Juízo ( lista de Almeida Faria, autor de O conquistador). De cada conto, um interessante confronto, grandioso e impactante. E mais não digo, apenas registrarei aqui o meu conto preferido deste livro: "A interminável noite de Percival". Leia o livro, opine aqui no blog, escolha o seu conto preferido.

O MAIS RECENTE LIVRO DE CONTOS DE ARAMIS


Aramis Ribeiro Costa é um dos nomes mais representativos da literatura baiana contemporânea. Com uma dezena de livros em edição nacional, sua ficção vem contemplando o conto, a novela e o romance, com predominância do conto. Após OS BANDIDOS, pela Imago Editora, conjunto de narrativas curtas em que se evidencia a violência urbana, particularmente a violência das cidades grandes, na qual todas as medidas vêm sendo ultrapassadas, uma violência que agride e esmaga o indivíduo em todos os sentidos e que parece não ter jeito, Aramis apresenta REPORTAGEM URBANA. Trata-se de um novo conjunto de contos que também recriam ficcionalmente a condição humana no contexto da realidade das grandes urbes, onde os obstáculos, os perigos e as decepções se sucedem, violentando e destruindo o indivíduo.

domingo, 4 de maio de 2008

CONVERSA PUXA CONVERSA



Gláucia Lemos



Arrumo a mesa, guardo livros que estavam empilhados. Amasso papéis inúteis, cupons de compras, rascunhos vencidos. Sento-me finalmente para começar a trabalhar. Puxo a mesa portátil para mais perto. Caneta na mão, meus olhos tropeçam nos CDs que comprei há uma semana e não escutei nenhum deles. Estive envolvida pelas coisas pequenas que levam as horas quase em arrastão. Eu os esquecera. Agora os reencontro e Benito de Paula logo em cima, pisca levemente para mim.
Cantor dos anos 60, talvez. Sempre gostei de ouvi-lo. Não tem nada especial. Canta o que todo mundo cantava naquela época, independente dos Beatles, os mesmos sambas de refrão, lentos, e eu, fissurada em Louis Armstrong de quem comprava tudo o que podia, apaixonada por jazz, parava para ouvi-lo. Por quê? Não tem explicação, como não têm explicação tantas outras coisas que preferimos. No entanto, nunca adquiri uma gravação de Benito de Paula. Com minha mania de cantarolar baixinho, cantarolava inúmeras vezes “em retalhos de cetim, eu dormi o ano inteiro, e ela jurou desfilar pra mim...” Semana passada comprei uns CDs e, entre eles, o meu primeiro de Benito. Vou escutá-lo. Deixo a caneta e coloco o som. Ele começa: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor”. Eu ouço música popular analisando a letra, e não resisto a este momento: quem disse que música popular não tem poesia? E lá vai Benito: “Não precisa me perdoar, basta me compreender e me deixar ficar.” Pois é, queiram ou não, muito samba antigo diz umas coisas que alguma vez a gente quis dizer e a covardia não deixou. Mais adiante: “Você me olha desse jeito, meus direitos e defeitos querem se modificar (...) mas se não for amor, não diga nada por favor, não apague esse sonho. “ Quantas esperanças, quantos propósitos já desabrocharam ou ainda, a partir de um certo olhar, às vezes apenas vago ou eventual. Quanto da nossa vida vem expresso na inspiração de um compositor que, sem saber, nos emprestou o seu momento para o prolongamento do nosso sentimentalismo adolescente, seja qual for o nosso patamar etário. E lá se vai Benito...
Conversa puxa conversa, dia desses assisti, no programa “Saia justa”, às apresentadoras se expressando sobre o verso mais bonito do cancioneiro brasileiro. Vastíssimo o nosso cancioneiro, e rico. Naturalmente esqueçamos o contemporâneo axé, por motivos óbvios. Tratando-se de composições legítimas de eternos como Pixinguinha, Ari Barroso, Cartola, Sérgio Bitencourt, Paulo César Pinheiro, Noel Rosa, e que tais, convenhamos que fica difícil eleger a maior entre as maiores. Sem me recordar dos respectivos autores, só por exemplo:
“Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”; “mas a lua furando nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão”; “simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”; “minha voz na voz do vento indo em busca do teu vulto”; “a escura fumaça que sobe apagando as estrelas”.
Neste momento, antes que me recorde de outros versos, alguém inspirado, lá embaixo, abre as janelas do seu carro, e, a todo volume, um CD atualíssimo, gravado por algum dos geniais xandis deste Brasil, está atirando aos quatro ventos desta manhã amena, esta jóia musical: “Abaixadinho, abaixadinho, abaixadinho, abaixadinho...”
Estamos vendo, não se trata de patamar etário, sim de um oportuno paralelo. E Benito nem precisa ser Beethoven.
Volto ao som, Benito de Paula já escreveu minha crônica de hoje. Repito o CD, vale a pena. “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor, se na sua vida eu fui espinho, espinho não machuca a flor.”



Gláucia Lemos é autora de vários romances premiados. No momento, prepara um livro de crônicas.