quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

UM POEMA BEM AMADO


Gerana Damulakis

Sei que os poemas devem ser lidos em voz baixa, sussurrando, mas este "Amar", de Carlos Drummond de Andrade, pede uma leitura para ser ouvida. Vale reparar na beleza do verbo "malamar" que, de saída, contraria a gramática. Justamente pela transgressão, "malamar" em lugar de "mal amar", nessa aproximação tão evidente com a maneira como se fala, como se diz, é que há o ganho, o lucro se dá: a consequência estilística é notável. O "malamar" é um amar de "qualquer jeito", sem atenção, sem empenho no amor.

Na segunda estrofe, "amar" se avizinha da palavra "mar" e, seguindo, aparece o "sal". O sal da vida é o amor. O amor é o tempero da vida, dá-lhe gosto e ao mesmo tempo traz-lhe algo de acre, agro, ácido. Já na terceira estrofe está o deserto, inverso do mar, só que continuamos amando, mesmo tendo feito o resumo emocional, abarcado o mar e o deserto, sentido a brisa marinha e o chão de ferro: "este o nosso destino: amor sem conta".

AMAR
---------Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.


Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.

in Claro Enigma

"NASCIDA PARA O PECADO"

Gerana Damulakis

Quando leio a poesia de Gilka Machado (1893-1980) costumo lembrar da poesia de Florbela Espanca (1894-1930), seja porque ambas levaram para seus versos a indignação com a condição da mulher aprisionada aos conceitos machistas da época, seja porque ambas carregaram seus poemas de sensualidade.

A própria Gilka se definia como uma mulher "nascida para o pecado" e, apesar de sua produção poética ter sido considerada, em alguns momentos, como imoral, conseguiu uma popularidade impressionante; de resto, evidência do quanto as mulheres se identificavam e tomavam para si o que aquela poesia clamava.

Enquadrada no simbolismo, ou, às vezes, num momento mais perto do modernismo - por conta de certos livros -, publicou mais de uma dezena de títulos e teve a obra reunida em edições nos anos 1978 e 1991.


O romancista baiano Jorge Amado foi o capitão de sua candidatura à Academia Brasileira de Letras, todavia a poeta assim não desejou. Pouco depois, a Academia conferiu-lhe o prêmio Machado de Assis.


FECUNDAÇÃO
-----------Gilka Machado

Teus olhos me olham
longamente,
profundamente,
imperiosamente...
De dentro deles teu amor me espia.

Teus olhos me olham numa tortura
de alma que quer ser corpo,
de criação que anseia ser criatura.

Tua mão contém a minha
de momento a momento:
é uma ave aflita
meu pensamento
na tua mão.

Nada me dizes,
porém entra-me a carne a persuasão
de que teus dedos criam raízes
na minha mão.

Teu olhar abre os braços,
de longe,
à forma inquieta de meu ser;
abre os braços e enlaça-me toda a alma.

Tem teu mórbido olhar
penetrações supremas
e sinto, por senti-lo, tal prazer,
há nos meus poros tal palpitação,
que me vem a ilusão
de que se vai abrir
todo meu corpo
em poemas.

in Sublimação, 1928