quarta-feira, 11 de março de 2009

APARTAMENTO 1001



Gláucia Lemos


Saiu do banheiro enxugando as mãos e sentou-se na borda da cama. Olhos no relógio, pouco mais de zero hora. Levantou-se bruscamente. Contemplou ainda uma vez o companheiro silencioso sob o cobertor de lã colorida. Era muito bonito. Fascinante demais para ser tão amado. O fascínio pode tornar as pessoas excessivamente seguras. Conceder-lhes a falsa impressão de absoluto poder e levá-las ao fio da navalha, a zombar dos limites. Os mais belos deveriam nascer cegos, para que os espelhos não viessem a cegar suas almas. Os espelhos cruéis que não a poupavam de testemunhar no próprio rosto as marcas do tempo.
O suspiro saiu profundo e dolorido, como se o arrancasse de dentro da alma.
Dois passos até a janela. O silêncio da rua era algumas vezes maculado pelos motores dos carros que transitavam maciamente. Convenceu-se de que nunca estariam dormindo todas as pessoas de uma cidade. Havia muitos olhos insones. Mesmo no décimo andar, escutava os motores resfolegando insistentes. Nunca permitiam que a noite dormisse, sempre haveria algum rumor no silêncio das ruas, como no silêncio das almas, onde o rumor do feito e do desfeito persistiria até que se consumassem as consciências. Que estariam fazendo outras pessoas despertas naquele momento? Quantas delas teriam a crepitar no íntimo o mesmo fogareu de angústias e horror que consumia sua paz? Todos têm suas dores, dizem. Mas, todos as têm tão intensas? Um choro convulsivo tomou-a inteiramente e ela levou as mãos ao rosto, limpando as lágrimas e cobrindo a boca, como temendo que os soluços despertassem o homem.
De repente, como se não fosse óbvio, descobriu que estava nua. Apanhou o vestido ao pé da cama e se vestiu apressada. Arrumou os cabelos ligeiramente com dedos nervosos. Alcançou o chaveiro em cima da mesinha e o ruído sobre o mármore lhe pareceu um gemido áspero. Nas faces brancas do homem quieto, a pouca luz fraca do spot projetava-se como o enfoque a uma obra de arte. Contemplou-o uma última vez com olhos de dor e despedida. O desenho do nariz, a boca sensual. Quanto era belo! Desligou a luz. Saiu, fechando maciamente o trinco, enquanto ainda todas as coisas estavam envoltas em tons de sépia.
O elevador não demorou, àquela hora ninguém estaria utilizando alguma das cabines. A descida fez-se muito rápida.
No saguão silencioso o ritmo dos saltos semelhava marcação de relógio. O recepcionista do plantão cochilava por trás do jornal que conservava aberto, fingindo ler. Como um robô, o manobrista esticou a mão, seguida de um bocejo, recebendo as chaves.
- O Mercedes branco.
Manobrou, abriu a porta na penumbra, recebeu a gorjeta e retornou à porta de blindex, empertigado, de olhos sonolentos, sem olhar o rosto da mulher, enquanto ela se foi. Estava mais que acostumado a ver senhoras distintas deixando os quartos do hotel antes do amanhecer. Sempre sozinhas, os parceiros desciam depois, ou não desciam, ficavam para o café da manhã, no próprio hotel. Uma a mais, uma a menos, não tinha por que estar olhando os rostos, todas tinham a mesma cara misteriosa, de olhos enormes às vezes encravados em olheiras acinzentadas, rímel nas pestanas, e volumosos cabelos tingidos. E aquele caminhar arrogante de queixo levantado e passos largos. Todas empacotadas em roupas sedosas e sapatos de saltos. E deixando um leve perfume no ar, quando passavam, como se tivessem o mundo a seu dispor. Era só mais uma.
O Mercedes acompanhou pelas avenidas o rolar dos pneus de outros raros carros boêmios. A maresia suave turvava o parabrisa.
Parou em frente ao prédio. Lentamente o portão de aço foi se movimentando e o carro transpôs, descendo a rampa do estacionamento para sua vaga. Ainda não havia ninguém por ali. Só o gato marisco que morava na garagem e dormia embaixo da caminhoneta azul-piscina.
Saltou apressada, bateu a porta com cuidado. Era preciso substituir a velha placa. Abriu o bagageiro depois que afrouxou o único parafuso que retinha a placa, e aparafusou a que retirara da mala. O container da coleta de lixo que se encontrava ao lado das garagens, ainda com restos de papéis, estava bem à mão para receber a placa rejeitada. De quanta manobra se necessitava para viver um mero plano de vida, pensou. Mas agora tinha a respiração opressa, quase insuportável. Caminhou até o elevador e sem demora subiu ao apartamento.
Inutilmente tentou dormir algumas horas antes de retornar à garagem. Uma agitação interior não permitiu. De olhos no relógio aguardou. até que depois das oito desceu, confortada pelo banho quente e por novas roupas. Rádio ligado, atenta ao noticiário da manhã, rodou até a periferia da cidade, sem mais que as notícias corriqueiras de todos os dias. Um crime a mais, um assalto a mais. Lá estava uma oficina de pintura a qual nunca recorrera.
- Quero trocar a cor. Sempre quis um carro vermelho. Quero um tom bem forte, cor de sangue.
Havia muito sangue nos lençóis. Só um pequeno corte na garganta. Canivete ou outro pequeno objeto cortante, o perito escreveu no laudo Era um belo pescoço de grego, ensangüentado.
Ninguém notou quem entrou ou saiu do apartamento 1001 do hotel cinco estrelas. O hóspede ali estava há uma semana, era hóspede costumeiro, todas as vezes que retornava à cidade ocupava aquele mesmo apartamento. A recepção não soube informar quem teria subido, eram tantas as mulheres elegantes que subiam em companhia de certos hóspedes, executivos, políticos de prestígio, celebridades, gente que exigia a maior discrição.
O manobrista não tinha idéia, eram tantas as senhoras distintas que saiam nas madrugadas dos sábados.




Gláucia Lemos é autora de mais de 30 títulos. Coloquei esta foto de nós duas porque não vi Gláucia nas nossas três últimas reuniões: em dezembro, ela viajou; depois, na reunião de janeiro, eu não pude ir e na de fevereiro, ela gripou. Total que: estou com saudades.