domingo, 4 de maio de 2008

CONVERSA PUXA CONVERSA



Gláucia Lemos



Arrumo a mesa, guardo livros que estavam empilhados. Amasso papéis inúteis, cupons de compras, rascunhos vencidos. Sento-me finalmente para começar a trabalhar. Puxo a mesa portátil para mais perto. Caneta na mão, meus olhos tropeçam nos CDs que comprei há uma semana e não escutei nenhum deles. Estive envolvida pelas coisas pequenas que levam as horas quase em arrastão. Eu os esquecera. Agora os reencontro e Benito de Paula logo em cima, pisca levemente para mim.
Cantor dos anos 60, talvez. Sempre gostei de ouvi-lo. Não tem nada especial. Canta o que todo mundo cantava naquela época, independente dos Beatles, os mesmos sambas de refrão, lentos, e eu, fissurada em Louis Armstrong de quem comprava tudo o que podia, apaixonada por jazz, parava para ouvi-lo. Por quê? Não tem explicação, como não têm explicação tantas outras coisas que preferimos. No entanto, nunca adquiri uma gravação de Benito de Paula. Com minha mania de cantarolar baixinho, cantarolava inúmeras vezes “em retalhos de cetim, eu dormi o ano inteiro, e ela jurou desfilar pra mim...” Semana passada comprei uns CDs e, entre eles, o meu primeiro de Benito. Vou escutá-lo. Deixo a caneta e coloco o som. Ele começa: “Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com minha dor”. Eu ouço música popular analisando a letra, e não resisto a este momento: quem disse que música popular não tem poesia? E lá vai Benito: “Não precisa me perdoar, basta me compreender e me deixar ficar.” Pois é, queiram ou não, muito samba antigo diz umas coisas que alguma vez a gente quis dizer e a covardia não deixou. Mais adiante: “Você me olha desse jeito, meus direitos e defeitos querem se modificar (...) mas se não for amor, não diga nada por favor, não apague esse sonho. “ Quantas esperanças, quantos propósitos já desabrocharam ou ainda, a partir de um certo olhar, às vezes apenas vago ou eventual. Quanto da nossa vida vem expresso na inspiração de um compositor que, sem saber, nos emprestou o seu momento para o prolongamento do nosso sentimentalismo adolescente, seja qual for o nosso patamar etário. E lá se vai Benito...
Conversa puxa conversa, dia desses assisti, no programa “Saia justa”, às apresentadoras se expressando sobre o verso mais bonito do cancioneiro brasileiro. Vastíssimo o nosso cancioneiro, e rico. Naturalmente esqueçamos o contemporâneo axé, por motivos óbvios. Tratando-se de composições legítimas de eternos como Pixinguinha, Ari Barroso, Cartola, Sérgio Bitencourt, Paulo César Pinheiro, Noel Rosa, e que tais, convenhamos que fica difícil eleger a maior entre as maiores. Sem me recordar dos respectivos autores, só por exemplo:
“Tire o seu sorriso do caminho que eu quero passar com a minha dor”; “mas a lua furando nosso zinco salpicava de estrelas nosso chão”; “simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti”; “minha voz na voz do vento indo em busca do teu vulto”; “a escura fumaça que sobe apagando as estrelas”.
Neste momento, antes que me recorde de outros versos, alguém inspirado, lá embaixo, abre as janelas do seu carro, e, a todo volume, um CD atualíssimo, gravado por algum dos geniais xandis deste Brasil, está atirando aos quatro ventos desta manhã amena, esta jóia musical: “Abaixadinho, abaixadinho, abaixadinho, abaixadinho...”
Estamos vendo, não se trata de patamar etário, sim de um oportuno paralelo. E Benito nem precisa ser Beethoven.
Volto ao som, Benito de Paula já escreveu minha crônica de hoje. Repito o CD, vale a pena. “Tire o seu sorriso do caminho, que eu quero passar com a minha dor, se na sua vida eu fui espinho, espinho não machuca a flor.”



Gláucia Lemos é autora de vários romances premiados. No momento, prepara um livro de crônicas.