sábado, 20 de setembro de 2008

COISAS DA NOBREZA


Gláucia Lemos


Há situações que se constroem destrutivamente, e nelas nos envolvemos, mediante uma inevitabilidade que nos custa acreditar. Passamos a responder por elas, quantas vezes com o nosso próprio prejuízo. Ficamos, como as gentes diziam na minha infância, “apagando o fifó com os dedos” (Para quem não sabe, fifó é um tipo primitivo de candeeiro, alimentado a querosene, de pavio grosso que faz chama forte, alta e fumarenta, e não tem manga). Então ficamos olhando para o tempo a nos perguntar por que estamos carregando nos ombros aquela conseqüência, se fizemos tudo de acordo com o figurino, com toda lealdade e com o mais perfeito bom-senso. Fica a perplexidade um pouco doída. E aquela sensação fria e letárgica, de não-ter-que-fazer.
Há alguns anos, nesta cidade dos mil encantos, das gentes bonitas e amigas, neste ninho de intelectualidades e de gente boa, uma moça coordenava um concurso literário anual para uma conceituada instituição. Havia uma pequena equipe bem competente, eleita por ela, para que cada elemento se encarregasse do julgamento de determinado gênero. Durante muitos anos o sistema funcionou muito bem, com pequeno cachê, mas festas de premiação com coquetel e tudo, muita música, alegria e franca amizade. A equipe era quase uma família.
Um dia, o presidente da instituição sugeriu à moça o nome de uma pessoa para participar como jurada. Só que não iria acrescentar, ao contrário, alguém teria que ser afastado para que o novo elemento o substituísse. A moça sabia da competência do novo elemento, como igualmente conhecia a competência dos que, havia tantos anos, vinham trabalhando. Entrava o sentimento de lealdade. E perguntou: quem eu afasto? E disse ao presidente: escolha quem sai, porque essa escolha eu não posso fazer. Ele não quis escolher, ela não pôde escolher. Ninguém saiu.
A nova não entrou, mas entrou na historinha um componente terrível, abjeto, cruel e destruidor, chamado Retaliação.
O novo elemento proposto era da imprensa e tinha função expressiva na área literária. Nunca mais, a partir de então, a moça que coordenava os jurados conseguiu publicar um conto, uma crônica, um ensaio, um artigo, naquelas folhas que, anteriormente ao fato, lhe eram franqueadas sem reservas. Ganhou prêmios, fez palestras, venceu concursos, participou de projetos importantes, mandava releases, nunca mais até hoje, mereceu a menor notícia naquele jornal, como se tivesse sido sentenciada a encerrar sua carreira. Alguma dúvida?
Isso é a vida no lado escuro. São coisas que acontecem quando menos esperamos. Coisas relacionadas com nobreza, de haver, ou não haver.
Algum comentário?


Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta, tem vários títulos publicados e prêmios recebidos. Foto "revista e jornal", de Crystian Cruz, retirada do Flickr.

4 comentários:

Gerana Damulakis disse...

Algum comentário? - você pergunta.
Sem comentários - respondo.
Infelizmente, a vida tem dessas coisas.

Anônimo disse...

Infelizmente. Sabe que nem a capa do meu livro naquele rodapé "Armário de Livros" da Cultural? Pois é.

Carlos Vilarinho disse...

Algum comentário? Que tristeza... Deus me livre!

Anônimo disse...

É isso aí, a gente não pode ficar calado diante de uma indignação. É o brado da indignação!