sexta-feira, 1 de maio de 2009

CHUVA

Hélio Pólvora



À Gerana Damulakis


Esta chuva estava pra cair há muito tempo, me disse Edmo, que recebia no rosto as ferroadas dos primeiros pingos. Olhei: os campos cinzentos, crestados por um sol de meses, abriam agora os regos, as valas, os poros, ofereciam as intumescências e depressões ao contato germinador. Você viu as nuvens ?, me perguntou Edmo, olhos fixos na estrada. E ele mesmo lembrou que nuvens negras, pesadas e gordas, se amontoavam há três quinzenas; se despencassem agora, teríamos a enchente após a seca.
Os pingos engrossaram, semelhantes a cordas que pendessem frouxas de um teto escuro, e dançaram no asfalto, escorreram pelo pára-brisa com uma violência que os limpadores não conseguiam acompanhar. Edmo reduziu a marcha, curvou-se no volante em busca de melhor visibilidade. Um homem descalço, no acostamento, tangia porcos com uma vara. De vez em quando espetava um animal, que grunhia alto e fino.
Estamos perto, falou Edmo sem tirar os olhos da estrada. As pancadas de água no capô e nas laterais ressoavam com ruídos de tambor tenso. A paisagem em volta, atrás e à frente, mergulhava num palor opaco, translúcido, de fundo de oceano. Minha mãe mora aqui perto, na fazenda, me disse Edmo. E contou, durante dois quilômetros, que a mãe, separada do marido, quase não ia a Itabuna, nem pra fazer compras.
Diziam em Itabuna que a mãe de Edmo estava muito doente. Perguntei-lhe, por isso, se houvera melhoras. Edmo demorou a responder. Com as costas da mão limpou parte do vidro embaciado. Acho que ela tem doença ruim, me disse. Constrangido, eu não soube o que acrescentar, e Edmo contou sem pressa que a doença era no ventre. E o que ela faz na fazenda, longe de médicos, longe de socorro urgente?, eu indaguei. Edmo não respondeu. Imaginei então que a mãe dele passava os dias, quem sabe ?, deitada em espreguiçadeiras, ouvindo pios de passarinhos que, de tão agudos, pareciam rasgar-lhe a carne velha. Se arrastava pela casa, gemendo, apoiando-se em portais. Andava um pouco pelo batedor, descalça, sentindo a cócega áspera da grama nos pés. Deixava o tempo correr, deixava a noite chegar, outro dia nascer. Seria mesmo assim?
Agora vamos entrar no ramal, disse Edmo. Uma visita rápida, só pra você conhecer a fazenda. Perto da cidade, não é? Um pulo. De repente Edmo ficara mais alegre, mais comunicativo. Pelo menos foi o que senti na sua voz, na maneira como os olhos se iluminaram na minha direção. Ela tem que idade?, perguntei pra sustentar a conversa. Edmo engrenou uma segunda e entrou no ramal já cheio de poças de água que o automóvel ia varrendo, transformando em vagas. Os cacaueiros desfilavam pastosos na cortina pesada da chuva. O campo raso fremia, encharcado até o fundo, e a tarde já estava crepuscular.
Você é o filho mais velho, eu lhe disse, assim como quem confirma o que pergunta. Sou o primeiro de uma enfiada, ele respondeu. O carro seguia aos solavancos pela estrada estreita de terra batida. Cinco, seis? Eram doze ao todo. Doze? Imaginei então a mãe de Edmo: velha, alquebrada, roída pela doença e abalada por doze gestações e doze partos, sem contar possíveis abortos. Trôpega, um mulambo de mulher. Não há quem tenha doze filhos sem pagar um preço à beleza do corpo e à bem-aventurança do espírito. Mas Edmo, como se adivinhando o rumo dos meus pensamentos, disse que nem todos eram irmãos verdadeiros.
Seu pai casou outra vez ?
Ele negou com um gesto da cabeça. Somos cinco do primeiro casamento. E sublinhou a palavra casamento pra que eu entendesse que um segundo, um terceiro e quem sabe um quarto significavam uniões ligeiras, mancebias. Os outros irmãos, ele acrescentou, meu pai teve por aí, na rua. E disse isso com aquela indiferença de quem vê muitos bois na pastagem, ou infindáveis cacaueiros passarem iguais e monótonos, cacau e bois que não lhe pertencem. Todos vivos, Edmo? Todos. E eu pensei de imediato que a fazenda seria retalhada, pulverizada. Assim se desfazem fortunas construídas pelos patriarcas bíblicos do cacau. Os patriarcas semeiam em camas diversas os germes da dissolução de seus pequenos impérios de avareza e repressão. São fáceis de domar, esses velhos senhores nos seus afãs de posse e domínio...
Edmo parecia triste. Pensaria acaso na herança esbagaçada pelo pai? Morta a mãe, morto o pai, dividida aquela terra e aquelas árvores, o que restaria a cada um que desse pra viver? O carro galgava uma ladeira, fustigado nas vidraças pelos ramos molhados que a inquieta cortina de chuva fazia pender no ramal. A água se misturava ao barro, se amarelava em poças onde a chuva cravava sem cessar as pontas aguçadas dos seus chuços. Meu pai... disse Edmo — e não completou a frase. Chegamos a uma cancela. Deixe que eu mesmo abro, ele pediu. Parou o carro, entrou na chuva e escancarou a cancela, que ficou aberta como ferida recente na carne alvacenta da tarde.
O carro subiu por uma aléia calcetada até um galpão sem porta. Paramos. Em cima, a chuva batia no zinco. Quando vivia aqui, o velho mandou construir este tanque enorme pra aparar água da chuva, Edmo disse sem largar o volante. Ouvimos o estrondo da chuva na bica, o rumorejo asfixiado da água descendo revolta pelas canaletas, entrando espremida no tanque. Edmo riu. Você gosta de chuva, eu disse. Gosta do velho seu pai?
Edmo correu até a varanda da casa. Venha, convidou de lá, sapateando pra se livrar da água na bainha das calças. Pelas goteiras da varanda a chuva caía em madeixas lisas no chão de lajota. Em frente abria-se o campo, envolto naquele lençol encardido que a tarde escurecida ia transformando em crepe negro. A pouca distância vi uma represa, depois um rosto de mulher.
É a minha mãe, disse Edmo.
A mulher estava sentada à porta de um pequeno galpão, a uns cinqüenta metros da sede. Rosto parado, inexpressivo, quase desatento. Ela está nos vendo, pensei. Sim, ela nos viu chegar. Ouviu o bater da cancela, o motor do carro subindo a rampa, o sapateado na varanda. Quem será que meu filho trouxe com esta chuva?, há de se ter perguntado. E espera, quieta lá no galpão. Ela espera, sim. E vê o filho. E não diz "Olá, Edmo". Não diz: "Esperem a chuva passar. Vou coar café agora mesmo... Ou preferem beber conhaque ?"
Se a mulher não movesse de vez em quando a cabeça, e abrisse os braços sobre o parapeito, como se fossem asas molhadas, eu diria que não era uma pessoa viva. Eu diria um retrato na parede, esmaecido pelo tempo e, de longe, pela chuva. Aqueles galpões, disse Edmo. O quê? Eu fiz e ela desmanchou e refez tudo errado. Por quê? Ele me garantiu que a mãe era pessoa teimosa, opiniática, que havia desmanchado os galpões de criar aves só pra não receber orientação dele, o filho mais velho. Só por isso? Apenas por isso? Perdi meu tempo, perdi meu dinheiro, disse Edmo. Dinheiro que eu havia juntado e que poderia aplicar na poupança.
A mulher nos olhava. Entrei na casa à procura do banheiro. Vi uma mesa redonda com toalha de renda, uma cristaleira com frascos de licor e conhaques, restos de comida num prato. Ninguém dentro de casa. Vi a chuva descendo pelas bicas que regurgitavam como gargantas estreitas de emas ou avestruzes. Quer um conhaque?, perguntou Edmo. Não, obrigado. Voltamos à varanda. O campo começava a mostrar os espelhos de águas acumuladas nos baixios junto à cerca. Longe, a silhueta dos cacauais cor de sépia. O nível da represa subia, perto do galpão, perto da mulher. Bois e cavalos se aconchegavam debaixo de velha mangueira. Voltei os olhos pra mulher, que defronte de nós, no galpão, continuava quieta, sem menção de se erguer, de dizer bem-vindos sejam. Sequer levantou a mão num aceno. Estaria dopada? Apenas olhava, como olham os tigres, calmos e pestanejando a intervalos. Ela e o galpão, mais o campo encharcado, formavam uma estampa, uma gravura antiga. E nós os expectadores. Ou não seríamos nós que, sem traje de caça e sem galgos, entramos de repente no seu campo visual e formamos então aquela imagem, aquele quadro que ninguém compraria, decerto por falta de raposas, cavalheiros galanteadores e damas de ombros nus?
A chuva está passando, me disse Edmo. Vamos embora? Sim, eu queria ir. Ela está mesmo muito doente, Edmo? Não sei direito. Não tenho vindo aqui. O médico quis operar um ano atrás, ela não deixou. Medo? Mas Edmo, não seria... Me calei. Edmo não foi adiante. Olhamos uma vez mais a velha imóvel no galpão, com os braços abertos como asas postas a secar, e Edmo soltou uma risada. Me lembrei agora do que meu pai fez com o minador, ele falou. E contou com um certo prazer que o pai, no auge de uma seca histórica, mandara cavar na pastagem em busca de água. Quando a água minou, ele tapou a nascente, de modo a que brotasse apenas um mísero filete — o suficiente para as necessidades de água da fazenda. Não queria dividir água com os vizinhos. Edmo riu outra vez. Partimos sem olhar mais pra mulher, que sem dúvida continuava a olhar na mesma direção até ver o carro chegar à cancela aberta e entrar no ramal. E até ver que um empregado se aproximava, a pé, nas suas negras botas de borracha, pra fechar a cancela com um baque que a chuva, agora menos forte, havia abafado.
A chuva escorria, mansa, dos ventres dilacerados de nuvens. Ramos batiam, rangiam, gemiam. Talvez por isso eu ouvi, ou julguei ouvir?, um grito lancinante, talvez de porco espancado ou sangrado, seguido de um baque -- talvez de um corpo que se precipitara na represa.



(Do livro O Rei dos Surubins, 2000)

AO VENCEDOR, AS BATATAS

Gerana Damulakis


Na sua coluna de 22 de abril da revista Veja, Diogo Mainardi lembrava Quincas Borba e seu cachorro Quincas Borba. Tudo porque Barack Obama deu o nome Bo para seu cachorro (iniciais de seu nome, claro está!). Porém, o mais importante que encontrei no texto de DM foi a colocação que ele fez a respeito da "implacabilidade do pensamento de Machado de Assis", que “está claramente refletida na trama do romance Quincas Borba, em que os bandoleiros conseguem pilhar todas as batatas e os tontos morrem na miséria”.
Devo admitir que é inquestionável tal juízo de valor no que toca a Machado. Diogo diz que o autor trata o personagem Quincas Borba como um demente, embora a filosofia criada por Borba, o Humanitismo, pareça “condensar e caricaturar as idéias do próprio Machado de Assis, com aquele seu realismo reacionário, com aquela sua crueza fatalista, com aquele seu conformismo desiludido, com aquele seu azedume zombeteiro”. Não chegarei a reproduzir a coluna, mas confesso que preciso me conter para não fazer isto porque sinto falta do Diogo Mainardi dos tempos das resenhas literárias, seja por suas sacadas, seja pela irreverência que, também ali, ele colocava. Voltando ao romance do Bruxo do Cosme Velho: o trecho que atesta o “caráter benéfico da guerra” terá que ser inevitavelmente reproduzido. Nunca é muito reler o mestre da literatura brasileira; afinal, Machado é Machado.
O famoso trecho, então. Quincas: “Supões tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividirem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. Daí a alegria da vitória, os hinos, aclamações, recompensas públicas e todos os demais efeitos das ações bélicas... Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.
O grande ensaísta Roberto Schwarz, intitulou um dos seus livros, Ao vencedor as batatas. Na verdade, a metade, como ele diz, de um estudo sobre Machado de Assis. Título perfeito (a leitura, imperdível). Trago tudo isto aqui para concluir o quanto da literatura está na linguagem do cotidiano, como: “A mão que afaga é a mesma que apedreja”, de Augusto dos Anjos, verso usado para expressar o espanto com a atitude de alguém que já nos acarinhou um dia; “E agora, José?”, de Carlos Drummond de Andrade, diante da falta de opção, após a estupefação; “ Vou-me embora p’ra Pasárgada”, de Manuel Bandeira, quando queremos deixar tudo e partir para bem longe; “Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, de Fernando Pessoa e outros tantos exemplos.
Finalizo com versos de Drummond que invariavelmente digo: “Como viver o mundo/ Em termos de esperança?/ E que palavra é essa/ Que a vida não alcança?”. Competindo sempre nos meus pensamentos, finalizo também com os versos de Bandeira: “A vida que poderia ter sido e que não foi”, ou “ Este anseio infinito e vão/ De possuir o que me possui”. Não sei de qual dos dois poetas guardo mais versos, fazendo ecos dentro de mim. Quem ganha? “Ao vencedor, as batatas”.


Foto: Bandeira e Drummond.
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