sábado, 12 de janeiro de 2008

TOALHAS DE PRATOS



Gláucia Lemos


O inverno chegou, no entanto, ainda é maio. O vento carrega os chuviscos miúdos no rumo do Sul, como se os misturasse, e acaba compondo uma nuvem de tênue fumaça, ou um sopro muito leve de talco.
A mulher que vende toalhas de pratos tiradas da sacola de plástico, lá está encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se sob a copa espalhada. Os galhos não a impedem de receber os pingos escorridos das folhas e os muitos chuviscos que escapam por entre a raquítica ramagem.
O braço esquerdo, magro e negro, suporta, enfiada, a sacola amarela, além de abraçar, apertado ao tronco, um pote de vidro de tampa vermelha, mal cheio de paçoca de amendoim.
No rosto riscado de rugas e amassado pelo tempo, os olhos miúdos têm a neutralidade de quem se deixa ser vivido pela rotina. São baços, piscantes, parecem esfumados, sem cor definida.
Quando o sinal vermelho se impõe ao motorista, ela se aproxima das janelas de vidro suspensas em duvidosa defesa, e oferece as toalhas: uma por dois, três por cinco. A voz é fraquinha, é qual um filete de água que sobrou no encanamento, logo que alguém desligou o registro. Mas caminha decidida, embora manqueje da perna esquerda, um pouco arqueada. Quase sempre retorna com a mesma toalha pendurada nos dedos.
Certo que não compensa, o comércio que faz. Mas sei que sua figura cotidiana integra a paisagem, e é ponto central na aquarela da praça.
Já a vi, a uns cem metros do ponto em que fica todos os dias, ao sol que descolore, cada vez mais, o lenço desbotado amarrado à cabeça, ou à chuva que encharca as flores desmaiadas do sempre mesmo lenço, e escorre entre as valas que o tempo escavou em suas faces escuras.
Freqüentemente tem uma sombrinha que vira ao avesso, quando o vento a pirraça. Às vezes, um casaco sem cor que, vestindo seus braços, ludibria a frieza.
Já a vi em um fim de tarde no ponto de ônibus, a cem metros da praça. Não olhei a bandeira, mas a vi subindo, sem rosto de triste, nem olhos de alegre, apenas subindo, a ocupar qualquer assento, com a sacola amarela pendente do braço, e o vidro de tampa vermelha colado a seu peito. Não sei aonde vai, talvez ela more em um barraco de encosta, das muitas encostas desta minha cidade.
Dia seguinte, vem novamente, seja verão de queimar a pele da gente que passa, seja inverno como este que se apressa neste maio há pouco nascido. Ela estará encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se, sempre mancando, na direção do carro mais próximo, quando, no farol, a chama vermelha vem em seu socorro.
Não sei se tem filhos, não sei se tem netos, talvez engane meia dúzia de fomes com suas toalhas. Talvez complemente os trocados das mãos de alguma possível garota, mal chegada aos 12, que, na margem da BR, ofereça sua infância ao caminhoneiro que primeiro a aceite. Talvez, talvez... o que posso saber?
Só sei das toalhas de pratos na paisagem da praça.




Gláucia Lemos é poeta e ficcionista. Dentre dezenas, escreveu o premiado romance As chamas da memória (BDA, 1996).

Foto por street paparazzo, retirada do Flickr.