segunda-feira, 14 de julho de 2008

ESSE PRAZER SEM NOME






Gláucia Lemos




Apago a luz do teto, deixo o abajur quase em penumbra, e fecho os olhos.
A cabeça permanece a trabalhar no mesmo ritmo em que passou todas as horas do dia. Percebo que na agitação em que a tenho, não há cristão que repouse, como dizia minha mãe. Falta música. Música que me possua e me relaxe. O remédio santo e o sublime prazer. Uma faixa de Louis Armstrong vai me tomar todo sentimento e dissipar a tempestade, o que nunca é difícil escolher.
What did I do to be so, pouco a pouco me vai envolvendo. Sem demora o som do trompete modula, e já não sou a mesma. Divino Armstrong.
Em alguma encarnação fui uma negra em New Orleans, freqüentando os cafés nos quais os blues imperavam absolutos. Em um ângulo qualquer do salão, um negro dedilhava uma guitarra chorosa, tirando o jazz, repetitivo e monocórdio, no improviso do lamento a prantear a infância ao abandono, uma mãe embriagada, um pai morto na linha do trem, e etecetera, etecetera e tal. Ninguém lhe concedia atenção, pois qualquer um outro ali estaria, fazendo a mesma coisa, e ninguém lhe daria atenção. O quadro fazia parte do contexto.
Em uma plataforma um sax-tenor, um cover de B.B.King, animava o salão, permanecendo por exaustivas horas a se encantar na busca à blue note fugidia.
O som de Armstrong me penetra. Eu tinha um cansaço, tenho agora a magia da música que me estraçalha o coração e a alma, na voz rascante, e me convence de que jamais saberei expressar o que se passa em mim quando me entrego à possessão de um blue. Eis um prazer sem nome. Sinto desfalcado o meu vocabulário, meu idioma carente de palavras novas, alguma especialmente moldada ao sentimento no qual eu, inteira, me envolvo, desfeita e misturada - fisicamente misturada - como uma massa amolecida e amalgamada aos sons, à melodia e à harmonia, aos acordes e aos arpejos. Sinto-me despersonalizada, deixo inteiramente de ser, até o agudo final, limpo e declinante, do trompete que se perde quase sem sentirmos, como em um gemido macio que arrematasse um abraço amoroso.
Em algum tempo perdido na eternidade – se eu tivesse suficiente credulidade para afirmar que vivemos diferentes tempos – fui plantadora de arroz, às margens do Mississipi, e entoei spirituals em templos anglicanos. Minha alma teria sido impregnada dessa cadência nostálgica, e dessa melancolia sensual que embala e comove. Teria sido amante de algum Louis Armstrong, ou abandonada por um Coleman Hawkins. Ou simplesmente teria sido glorificada por algum mero plantador de arroz das margens do Mississipi, que cantasse gospel nas igrejas, e freqüentasse os cafés escuros de New Orleans, como eu. Se assim eu tivesse sido. Se eu acreditasse na existência de outros tempos nos quais houvesse vivido e convivido.
Estou no meu tempo e no meu espaço, corre na minha seiva uma mistura ibérica de complexa definição, meu coração brasileiro o é cada vez mais. Sou amante de Armstrong com o amor amado nas faixas dos CDs. Jamais serei abandonada por Coleman Hawkins, obviamente, ele não se evadirá das faixas em que o tenho gravado. Quanto ao plantador de arroz, ainda não conheci nenhum, e pela ‘desadmiração’ que voto ao mandatário daquelas bandas, não tenho a menor intenção de ir a New Orleans nem a qualquer dos outros estados daquela União.
Estou novinha em folha, minha alma apaziguada, dormirei tranqüila. Amanhã talvez faça um belo dia de sol nesta minha cidade que amo.



Gláucia Lemos é ficcionista, cronista e poeta. Tem mais de 20 títulos publicados e vários prêmios literários. Esta é mais uma crônica para um livro que nasceu aqui, neste blog. Foto de Louis Armstrong, por discoverblackheritage, retirada do Flickr.