segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

REPORTAGEM URBANA, DE ARAMIS RIBEIRO COSTA

Manuel Anastácio



Recebi mais um Livro do Brasil, pela mão da Gerana e autografado pelo próprio autor, Aramis Ribeiro Costa. Assim que o fui levantar aos correios, veio-me a nostalgia dos natais que sempre desejei e nunca tive. A nostalgia de um enorme monte de presentes, todos eles paralelepipédicos, todos eles cheios de folhas impressas, todos eles amigos surdos, mas não mudos. Rasguei o envelope como se fosse o pouco ecológico papel de embrulho das nossas infantis fantasias de abundância e inspirei o primeiro contacto da capa negra, belissimamente composta por um rosto microreticulado em angústia, que se corta e esbate no negro, enquadrado por rectângulos que se cruzam e se ampliam num reticulado maior de uma paisagem urbana ou do que, em mancha esborratada pela humidade, se poderia considerar uma paisagem urbana. A capa é como o rótulo de uma garrafa de vinho. Demoro-me ainda na dedicatória manuscrita pelo autor e, depois, nas dedicatórias impressas. À mãe de Aramis, que jamais lerá o livro, às irmãs e sobrinhas (“a permanência dos meus”) e à Gerana (“a dor sem termo das nossas perdas”). A dedicatória é já em si um conto, pungentemente verdadeiro, à parte. Há dedicatórias assim. Lembro-me, claro, da última de Saramago dedicada a Pilar, mas há outras que mereceriam também um livro à parte, um “Livro das Dedicatórias” ao género borgiano das epígrafes também de Saramago. E, ainda antes de começar o dia de trabalho, devorei e bebi a morte que se espraia nas primeiras páginas, em “A Interminável Noite de Percival”: a ausência a justificar o excesso, a demora, o protelar do inevitável, o mimetismo nostálgico do luto que a tudo dá sentido exatamente porque nada mais tem sentido. Neste primeiro conto de um conjunto de sete, há um sopro de promessas que a vida comezinha não me permite seguir ininterruptamente. Tenho de trabalhar. A dedicatória de Aramis à mãe faz-me lembrar, subitamente, enquanto arranco o carro e contorno a rotunda em direcção à rua Gil Vicente e a manhã me molha o pára-brisas com os salpicos da fonte, num dos primeiros quadros escritos do meu filme preferido, “Young Mr Lincoln”: “If Nancy Hanks came back as a ghost, seeking news of what she loved most, she’d ask first: ‘Where’s my son? What’s happened to Abe? What’s he done?”. Todos nós já sentimos, em momentos de alguma glória pessoal, a falta daquela pessoa que, sabemos, mais que ninguém, partilharia connosco a alegria de um momento que, sendo sempre passageiro, para nós será eterno. E os momentos efémeros descritos por Aramis nestes contos são também momentos eternos porque se referem às perenes preocupações humanas e à forma intemporal como estas se manifestam. Os contos, ainda que encontrem na malha urbana de uma cidade brasileira o seu cenário, e ainda que a cidade seja, em si mesma e em termos conceptuais, uma personagem, têm como referência geradora a posição do indivíduo na História. O terceiro conto, “Lídia – Uma História de Heródoto” pega num standard, ao modo do desenvolvimento musical das peças de jazz, e insere a sua escrita no movimento eterno da recontagem do património narrativo da humanidade. O desejo, a honra, a vingança, são transpostos para uma certa irrealidade contemporânea, que se manifesta igualmente no conto Sete-Sete, onde o tema do inocente injustamente acusado parece novamente recriar nas letras o que, por exemplo, também já Hitchcock desenvolvera em “The Wrong Man”. Por esta altura, já a minha forma de ler começa a estabelecer entre a escrita de Aramis e a sétima arte uma ponte que se vai firmando de página para página. As personagens começam a mover-se em enquadramentos clássicos. Nada de câmaras que balançam acompanhando os movimentos imprevistos das personagens. Não. O título “Reportagem Urbana” bem poderia dar a ideia de que os relatos seguiriam o registo contemporâneo da escrita jornalística. Mas não. O conto “A Casa” é o sonho de qualquer realizador neorealista italiano. Foi a preto e branco que imaginei aquele que, para mim, é o mais belo dos sete contos deste livro. Um homem decide-se a enfrentar a dor do leito de morte para continuar a construção da casa que ficou a meio, interrompida pela notícia da doença terminal. A relação que se estabelece entre as duas personagens principais, pai e filho, lembra Vittorio de Sica. A cena final (e uso o termo “cena” de propósito), na varanda que enforma todo o desejo e que transforma o leito carunchoso da morte num patamar superior de vida enfim alcançado, é como que o trabalho alquímico de uma Grande Obra de amor. Amor que, ao contrário do que muita gente suspeita, é o grande tema do neorealismo – e este é, sem dúvida, um grande momento do neo-realismo extemporâneo. Mas há também neste processo, penoso, entre a morte inevitável e a evitável morte em vida, um profundo pensamento filosófico e arquitectónico de raízes existencialistas onde, paradoxalmente, a ideia de absurdo é apagada. A vida não é absurda se houver uma varanda onde morrermos em paz, especialmente, se essa varanda for por nós construída – e se a sua construção, mais que o objecto final, for a passagem do testemunho para as mãos daqueles que deixamos como herdeiros. Mas Aramis segue, com um sentido musical inato, para o próximo conto, “Segunda-Feira sem Data” onde toda a exaltante moral da unidade anterior se parece apagar num scherzo metafísico sobre a burocracia com que se apagam os nossos dias entre o reticulado (lembram-se da capa?) dos cubículos das repartições onde as nossas esperanças se diluem na esperança divina de uma promessa que a nós desce, qual pomba do Espírito Santo, na forma de uma SMS. O espectador, como é normal na audição de certas composições eruditas, pede uma pausa. Pouso o livro sobre o granito da lareira da casa dos meus sogros. O livro respira a cada espaço branco antes do andamento seguinte. Depois do jantar e do aroma minhoto do vinho verde tinto, leio, frente a uma canhota de carvalho em brasa, “O Aniversário de Normando”. Leio com a leve embriaguês de quem sabe que só a literatura que imita a música consegue subverter a realidade da miséria e da solidão num universal complexo de partilha. E, brutalmente, enquanto partilho os tira-gostos de batatas fritas e carne-de-sol que Gregório pagará, a contra-gosto, com o suor do rosto alheio, depara-se-me a revelação de que a Humanidade nada mais é que a Natureza disformemente alcoolizada. Finalmente, corre-me pelos dedos o conto que dará nome ao livro. Conto pautado pelas horas que passam no período simbólico de um dia, enquanto alguém espera, não por Godot, não pelo que a Vida lhe poderá trazer, mas pela mãe que enfim aparece, sob a forma de uma fatídica e desesperada coda final que se repete, minimalista. A mãe de todas as conclusões.

Quando fecho o livro, é altura de ir para casa. E apercebo-me de que, no fundo de cada estória, há a casa. A casa onde se cai e se foge às responsabilidades para que nos chamam, a casa que nos negam, a casa que nos é oferecida pela tentação, a casa por nós conquistada em luta com a morte, a casa onde, enfim, resolveremos a nossa vida, a casa para onde seguimos cansados, a casa para onde nunca voltaremos e para a qual não sabemos o caminho. E mesmo a personagem do sapateiro Heródoto, o contador de histórias, aparece como alguém de morada incógnita. Como só poderá ser cada cubículo em que a cidade se divide. Cubículos de uma irrealidade reticulada onde, por vezes, se entreabrem portas para a intimidade exposta de quem neles poderia viver.



Manuel Anastácio é poeta e assina o blog Da Condição Humana, com entrada pelos meus favoritos, ou clicando em http://literaturas.blogs.sapo.pt/.