quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

NÃO FAÇO PARTE DO PACOTE

Gláucia Lemos

Há coisas que, provavelmente por tradição, se tornaram comuns a quase todas as pessoas. Parece que um dia um toque de reunir determina: todo mundo tem que ter celular; toda mulher tem que ficar loira depois dos 50; toda pessoa culta tem que endeusar Chaplin e tem que ter lido Proust (mesmo quem não endeusa e quem não leu, afirma que sim!). Nos meus tempos de universidade, todo jovem tinha que ser de esquerda, tinha que estar “conscientizado”. A partir do século XX, toda mulher tem que ter braços e pernas iguais a cambitos, e peitos de silicone. Em todos os tempos todo mundo tem tido um diário no qual anota seus feitos, defeitos e mal-feitos para a posteridade nele basear seus conceitos referentes ao autor. E, não sei desde quando, a humanidade tem feito uma lista de intenções a cada novo ano. Sem falar no carro, obrigatório, para enfartar no calvário do trânsito, item que é obrigatório! Um amigo até me disse certa vez, que quem não tem carro não existe. Desculpe, eu não nasci, e nem tinha percebido. E não vou me obrigar a aprender a dirigir só para justificar meu registro de nascimento, tampouco lhe apresentar minha declaração de rendimentos.
É assim que as coisas caminham socialmente. Como se todos nós, membros de uma sociedade, fizéssemos parte de um pacote, para cuja inserção fosse imprescindível semelhança nos gostos e no perfil. Mas não é bem assim que as coisas acontecem individualmente. Acho pouco inteligente deixar-se empacotar. Às vezes uma mulher sessentona prefere cobrir as melenas grisalhas com tonalizante cor-de- cobre, por questão estética, ou por gosto pessoal, ou até por não desejar fazer parte do bloco das coroas tingidas de loiro, e ficar com cara de todo-mundo. Às vezes há um certo professor que não compra celular porque não gosta de ser procurado onde quer que esteja, não quer ninguém no seu pé. Às vezes uma pessoa muito tensa não tem tranqüilidade para se envolver na pressão do trânsito, e prefere andar de táxi. Por que toda coroa há de obedecer à sugestão do seu cabeleireiro, e virar loira? E quem não tem celular ser tido como um coitadinho, nem celular ele tem... ? e quem opta pelo táxi ser enquadrado entre os que estão contando centavos? Não será o caso de pessoas como as que enumero, exemplos postos à toa, serem personalidades fortes que não se incomodam de estar ao arrepio do convencional? Pessoas firmes?
Considerações à parte nas quais me prolonguei, volto à origem deste texto que foi inspirado na observação de que eu fico à margem da tradição em alguns itens. Principalmente, jamais consegui manter uma agenda de compromissos, embora seja muito organizada, a ponto de desarrumar a mesa posta, para ajeitar a toalha se tiver ficado torta. Mas se algo for anotado na agenda, me esqueço de consultar e perco a data. Como me oriento para meus compromissos? Escrevo bilhetinhos e colo acima do espelho interno do meu armário de roupas, por ordem de datas.
Também não mantenho um diário, já tentei inúmeras vezes, desde a adolescência. Fico dias e semanas sem escrever, e o diário perde a função. Prefiro fazer anotações e comentários esparsos, divagações até mesmo muito pessoais, em agendas (que ganho e não uso) e vão sendo atoamente registrados. Se alguém quisesse o meu perfil a partir daí, nunca encontraria o fio da meada. Felizmente ninguém está interessado nisso. No entanto, se estou trabalhando um livro, com disciplina religiosa diariamente volto a ele.
Nem faço listas de intenções. Nunca fiz. Obviamente sempre tive sonhos, algumas vezes tive esperanças, muitas vezes fiz planos, faço planos, como viver sem eles? Mas sem tempo definido. Durante 40 anos sonhei construir uma casa com a planta que eu queria, uma casa sem corredor. Sonhei e esperei. Morei em casas e apartamentos, ora menores, ora maiores, lamentando toda perda de espaço e de iluminação dos respectivos corredores. Na infância nossa casa era grande e antiga, tinha um corredor largo e longo, que nunca mais terminava, para ele se abriam todos os quartos que, se não estivessem com luzes acesas, ficavam muito escuros. Eu tinha medo de escuro e fazia o percurso do corredor com o coração aos solavancos, ainda que o corredor estivesse iluminado, mas havia as portas abertas dos quartos escuros... Nunca mais acabava aquela caminhada, porque as crianças eram proibidas de correr dentro de casa, era preciso andar... morrendo.
Sonhei longamente a minha casa sem corredor, sonhei sem planejar, esperei sem ansiedade, nem perspectiva. 40 anos depois, a construí. Exatamente como sempre a desejei. Toda a meu gosto pessoal, somente meu. Ampla, clara, mais larga que comprida, rodeada de varandas nas 4 faces dos pontos cardeais, e sem nenhum corredor. Sem luxo, não preciso. Mas era Aquela.
Não sei se os 40 anos de sonho sem planos, e de esperança vazia, me ensinaram a vanice dos planos e a fragilidade das esperanças, não me firmo nessa experiência para nada, mas pode ser isso pensado como um testemunho da impotência humana, e da dependência das coisas em relação às oportunidades. Quando a oportunidade acontece, chega a hora de nascer em carne-e-osso, em papel-e-tinta, ou em tijolo-e-concreto, aquele desejo que envelhecia sem perder o vigor dentro de nós. Teria sido exatamente assim, e nesse mesmo tempo, se eu tivesse delineado o plano e padecido a longa ansiedade.
Não é por isso que não faço listas de intenções a cada novo ano. Tudo o que desejo, espero. A oportunidade virá. Ou não. Seja qual for o objetivo.
Neste ano até falei: “Quero fazer novos amigos este ano, ampliar”. E quero. Mas só falei, expressei um desejo. Sem ardor nem expectativa, não vale a pena. Não faço listas porque não acredito nelas.
No que é mesmo que acredito?


Gláucia Lemos é romancista, contista, poeta e tem também vários títulos de literatura infantil e juvenil. É graduada em Direito pela UCSal e pós-graduada em Crítica de Arte pela UFBA.

O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA - O FILME


Goulart Gomes



Fui assistir, ontem, com um certo receio, o filme O AMOR NOS TEMPOS DO CÓLERA, baseado no romance de mesmo título do genial Gabriel García Marquez. E meu receio deveu-se a dois motivos: o primeiro é que poucas foram as adaptações bem sucedidas, para o cinema, dos grandes livros da literatura universal. Em segundo lugar, o fato de que o maravilhoso da história não é trama em si, mas a fantástica narrativa do autor colombiano. O livro – que está entre os dez primeiros da minha lista de 100 (veja em Textos – Artigos) - foi iniciado em 1984, ao término do ano sabático que Gabriel se concedeu, após ganhar o Prêmio Nobel de Literatura e narra a história do amor platônico de Florentino Ariza por Fermina Daza, que se desenrola ao longo de mais de 50 anos, baseada na verdadeira história de amor dos pais do autor. Foram 622 mulheres que passaram pela cama do personagem central, mas nenhuma delas teve o poder de fazê-lo esquecer da mulher que verdadeiramente amava. Enfim, o filme me surpreendeu, conseguindo ser fiel à essência do livro e pela excelência dos atores, entre eles a brasileira Fernanda Montenegro, no papel da mãe de Florentino. Para aqueles que ainda não tiveram o prazer de ler a obra, transcrevo alguns trechos selecionados por mim:
“Mas se alguma coisa haviam aprendido juntos era que a sabedoria nos chega quando já não serve para nada.”

“Vinham dessa época suas teorias um tanto simplistas sobre a relação ente o físico das mulheres e suas aptidões para o amor. Desconfiava do tipo sensual, as que pareciam capazes de comer cru um jacaré-açu, e que costumavam ser as mais passivas na cama. Seu tipo era o contrário: essas rãzinhas sumidas, que ninguém se dava ao trabalho de olhar duas vezes na rua, que pareciam reduzidas a nada quando tiravam a roupa, que davam pena porque seus ossos rangiam ao primeiro impacto, e que no entanto podiam deixar pronto para a lata do lixo o maior dos gargantas...”

“Com ela aprendeu Florentino Ariza o que já padecera muitas vezes sem saber: pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: ‘O coração tem mais quartos que uma pensão de putas.” Estava banhado em lágrimas com a dor dos adeuses. Contudo, mal desaparecera o navio na linha do horizonte e a lembrança de Fermina Daza tinha voltado a ocupar seu espaço total.”

“É incrível como se pode ser tão feliz durante tantos anos, no meio de tanto bate-boca, tantas chateações, porra, sem saber de verdade se isso é amor ou não.”

“’Nós homens somos uns pobres criados dos preconceitos’, ele tinha dito certa vez. ‘Em compensação, quando uma mulher resolve dormir com um homem não há barreira que não salte, nem fortaleza que não derrube, nem consideração moral nenhuma que não esteja disposta a varar de lado a lado: não há Deus que valha’”.
“Pois tinham vivido juntos o suficiente para perceber que o amor era o amor em qualquer tempo e em qualquer parte, mas tanto mais denso ficava quanto mais perto da morte.”




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Goulart Gomes é autor de, entre outros, Minimal (Copygraf Editora, 2007).