quinta-feira, 26 de junho de 2008

A MÚSICA DE PAN NA POESIA


(sobre a poesia de Dylan Thomas)



Gerana Damulakis




Pan costumava divertir as ninfas tocando suas alegres toadas ao som de sua flauta. Um dia, teve o atrevimento de desafiar Apolo. Tmolo, o ancião deus da montanha, atuou como árbitro da competição. Acorreram encantadoras ninfas, assim como homens e mulheres mortais e, entre eles, o rei Midas. Pan começou sua atuação com a sirinx e arrancou melodias rústicas. Midas escutava embevecido. Quando Pan terminou, adiantou-se Apolo com sua lira de marfim. Com seus dedos tirou, das cordas da lira, notas celestiais e os ouvintes foram tomados de prazer e respeito. Tmolo concedeu o prêmio a Apolo. O rei Midas censurou em voz alta a decisão: segundo ele, o prêmio correspondia a Pan e, por isto, Apolo fez com que orelhas de asno adornassem a cabeça do rei. Há qualquer coisa dessa transgressão, dessa violação escandalosa de Pan na poesia de Dylan Thomas (Uplands, País de Gales, 1914 — Nova Iorque, EUA,1953).
A poesia de Dylan Thomas surge, por volta dos anos 40, em meio a alvoroços e à divulgação, com uma concepção de reação à voz mais intelecutalizada do grupo representativo da literatura inglesa, como W.H. Auden, Stephen Spender, Lois MacNeice e outros. Entretanto, embora Dylan pertença, do ponto de vista cronológico, à geração de 30, sua poesia não vem imbuída das preocupações políticas da vanguarda esquerdista; ao contrário, há um romantismo na “dicção apaixonada e rapsódica”, que traz também um tanto da tradição do barroco inglês.
A flauta de Pan cria uma vida própria, e não podemos esquecer do “pânico” que esta melodia desperta, talvez devido a uma estranheza na maneira dessa sensualidade expressiva: “Uma vela sobre as coxas/ Aquece as sementes da juventude e queima as da velhice; Onde nenhuma semente se agita (...)/ Sem animo ou amurada, os poços do céu/ Jorram até as bordas,/ Prenunciando num sorriso o óleo das lágrimas”.
É incontestável o número de poemas de Dylan que se tornaram conhecidos mundialmente. “O Jovem e grande poeta”, como a crítica intitulou-o, deixou gravado em disco, para a Caedmon Records (em 1952 e 1953), em Nova Iorque, com sua voz bela e potente, toda a “tradição bárdica” ressuscitada dos poetas do País de Gales, sua terra natal. Todo o prestígio despertado é conseqüente dessa tradição restaurada e advém da sonoridade do verso de Dylan. Seu empenho é, acima de tudo, perseguir a sonoridade das palavras; o compromisso, além de brincar com o vocabulário, é com a preocupação musical. Esta tendência de tratar as palavras como coisas é alertada por Allen Tate: “A crença de que a própria linguagem pode ser realidade, ou que por encantação pode criar uma realidade é uma superstição que encontramos, em inglês, em Hart Crane, Wallace Stevens e Dylan Thomas”. Assim é que ele confere concretude à expectativa abstrata, como no poema “Houve um Salvador”: “Verteste uma lágrima de júbilo do dilúvio sobrenatural/ E reclinaste a face numa concha em forma de nuvem: Agora estamos sós, tu e eu, na escuridão”.
O tom oracular, as ressonâncias bíblicas, a densidade das metáforas, a fortuna de emoções, tudo concorre para fazer a poesia de Thomas parecer hermética. Digamos que as palavras, em meio à inquietação caótica, procuram a verdadeira ordem e prosseguem nessa procura: “A bola que lancei quando brincava no parque/ Ainda não tocou o chão”. Esta inquietação e sua existência são a força criadora de Dylan Thomas.
Ainda que seja iníquo reduzir Dylan a uma mitomania de época, não há como negar que toda uma animação em torno do poeta deu o crédito necessário para seu reconhecimento. Em seis meses, após sua morte, a edição britânica dos poemas reunidos vendeu 25 mil exemplares. Em certa biografia, Paul Ferris intitula o posfácio “Dylan Thomas como indústria”, para mostrar como o mercado foi montado em cima de relíquias da vida do poeta, como se Dylan atendesse a uma necessidade “quer como rebelde contra a sociedade mecanizada ou como figura romântica reconhecida por todos”, e mundo afora, o autor que resume todos os fenômenos do universo no amor, ficou entre os maiores do século XX ao lado de Yeats, Eliot e Auden.
No panorama da literatura universal, conclui-se que Dylan Thomas vem do simbolismo, “sendo representante de um neo-realismo” de entonação específica, ornamentada com elementos míticos. A maestria está na técnica, na potência de uma vilanela, e mais, as expressões singulares através de imagens insólitas, enfim, tudo o que soma para definir a poesia de Dylan, aproxima-o de um “surrealismo populista” que o torna precursor dos mitos dos anos 60 do século passado.
No seu “Manifesto Poético” , Dylan Thomas explica suas influências e as justifica: “Três das influências dominantes sobre a minha prosa e minha poesia publicadas são as de Joyce, da Bíblia e de Freud”. De James Joyce, a extrema curiosidade, a experimentação no campo lingüístico, a exploração do vocabulário. Da Bíblia, o conceito divino é visto tal como os poetas metafísicos: John Donne, Henry Vaughan, Richard Crashaw, George Herbert e, mais perto de Dylan, a poesia de Gerard Manley Hopkins. De Freud, Thomas nos diz que “nenhum escritor honesto seria capaz de se furtar à influência de Freud devido ao trabalho pioneiro no campo do inconsciente, mas não necessariamente dos próprios textos de Freud”. No que tange ao predomínio de James Jouce, vale ainda acrescentar que o título do livro de contos de Dylan, Portrait of the artist as a young dog (Retrato do artista quando cão, em impecável tradução de Hélio Pólvora), tem uma explicação quanto à semelhança com o título Retrato do artista quando jovem, de Joyce: “Como se sabe, a expressão que se usa para designar uma série de incontáveis retratos pintados por seus artistas é ‘Retrato do artista quando jovem’ — um título absolutamente honesto”. E Thomas enfatiza: “Joyce usou, pela primeira vez, essa expressão comum à pintura como título de uma obra literária”. Dylan, na verdade, serve-se de tudo. Como ele mesmo explana: “Dirijo todos os recursos na direção que entendo”.
Contudo, ao contrário dos surrealistas, ele “articula o que emerge de seu subconsciente e seleciona, a partir da massa amorfa das imagens, aquelas que melhor atendam ao propósito, que é escrever o melhor poema de que for capaz” Encontramos truques, trocadilhos, gírias, sprung rhythm (o ritmo inventado por G. M. Hopkins). E ainda: certo ímpeto barroco, o visionarismo de Blake, e o seu próprio sonho verbal: o virtual, aquele impulso poético manuseado em função da beleza. Diz Dylan: “Poesia é aquilo que me faz rir, chorar ou uivar, aquilo que arrepia as unhas do meu dedo do pé, o que me leva a desejar fazer isso, ou aquilo, ou nada”.
A melhor maneira para ler a poesia de D. Thomas é deixar que ela atue primeiramente sobre os ouvidos, com o intuito de adquirir uma familiaridade para, por fim, perceber o conteúdo íntimo dos “estímulos sonoros entrelaçados”. De resto, basta evocar Pan e se surpreender com essa melodia inesperada em meio ao absoluto silêncio de uma tarde quente. Sem pânico, apenas embevecimento.

Dylan Thomas - poemas reunidos (1934-1953) com tradução magistral do poeta Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1991.