quinta-feira, 29 de abril de 2010

LEMBRANÇA DE QUINTANA (1906-1994)

Gerana Damulakis

Tenho o livro Caderno H, da Editora Globo, com dedicatória de Mario Quintana (o Mario é sem acento): "Para Gerana uma lembrança muito amiga de Mario Quintana
P. Alegre, Natal de 1990".
Tenho, portanto, uma jóia.
Cito Quintana quando uma mágoa leva um tanto de mim. O modo como o poeta coloca esses pequenos assassinatos, que vão levando aos poucos "qualquer coisa minha", resulta na conclusão de que "não é de uma vez que se morre".


Da vez primeira vez em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, de cada vez que me mataram.
Foram levando qualquer coisa minha...

Primeira estrofe do soneto "DA VEZ PRIMEIRA EM QUE ME ASSASSINARAM"

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre...
Todas as horas são horas extremas!

Última estrofe do "Pequeno Poema Didático"


Ilustração: Carlos Drummond de Andrade conversando com Mario Quintana, obra do escultor
Francisco Stockinger, Praça da Alfândega, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil.

terça-feira, 27 de abril de 2010

TIN-TIN

Gerana Damulakis

Doutor em Letras, o professor emérito da Universidade Federal da Bahia, Cláudio Veiga, tem uma série de livros publicados. Mas, é na Antologia da Poesia Francesa (do século IX ao século XX) - meu volume é a 2ª edição ampliada da Record, 1999 - que me deleito com suas traduções esmeradas.
No blog Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (http://gikafreire.blogspot.com/), Gisele postou o poema "Brinde", de Stéphane Mallarmé, traduzido por Augusto de Campos. Há várias traduções deste poema; uma delas, a de Guilherme de Almeida, também é excelente. Como escrevi um comentário lembrando a tradução do querido professor, ela se interessou. Vai para você, Gisele: Tin-Tin.


BRINDE
---------Stéphane Mallarmé

Nada, esta espuma, virgem verso
Tão-só a taça nomeando;
Como além sereias em bando
Se afogam muitas ao inverso.

Navegamos, ó meus fraternos
Amigos, eu já estando atrás,
Na altiva proa vós cortais
Fluxos de raios e de invernos.

Pela ebriez eu sou levado
Sem recear o seu gingado
A erguer de pé a saudação

A toda coisa que revela,
Recife, estrela, solidão,
A inquietação da branca vela.

--------------------Tradução de Cláudio Veiga

Ilustração: Retrato de Mallarmé, Édouard Manet.

domingo, 25 de abril de 2010

DO TEMPO PRESENTE



Gerana Damulakis

Há um poema em Sentimento do Mundo, livro de 1940, de Carlos Drummond de Andrade, que joga com os três tempos de uma forma espetacular (ora, claro, trata-se de Drummond). No decorrer dos versos o tempo que aparece primeiramente é aquele que comanda "um mundo caduco". O futuro do mundo é igualmente rejeitado porque para o poeta interessa apenas o presente. O presente é a realidade, o presente é o que interessa, "o presente é tão grande".

Depois de escolher seu tempo, Drummond, que tanto apreciava o poema que se debruça sobre os temas da poesia (há vários exemplos em sua obra), enumera demais afastamentos. E o faz de forma curiosa: descarta ser "o cantor de uma mulher, de uma história". Ele parte da mulher, a matriz, a que gera, e chega à história. Assim também quando canta que não dirá "os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela": ele passa do escuro, rejeita o escuro, vai até a janela, rejeita sua paisagem, digamos, clara. Afasta, então, os entorpecentes ou cartas de suicida. De novo, estados diferentes, daquele que, entorpecendo, faz fugir, chega ao outro, ao que evoca a fuga definitiva, o suicídio. E ainda: não se deixa seduzir pelas promesss das ilhas e seus tesouros, nem por lugares celestias entre serafins. Por fim, ele fica com o tempo como "minha matéria": "o tempo presente, os homens presentes,/ a vida presente". Sempre no presente: Drummond.

MÃOS DADAS

----------------Carlos Drummond de Andrade


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.


Ilustração: As Três Idades da Mulher, de Gustav Klimt.

sábado, 24 de abril de 2010

RELÓGIOS DERRETENDO



Gerana Damulakis

Quando meu pai gostava de alguma coisa, gostava também de sair distribuindo essa coisa para todos. Certa feita, ficou muito encantado com uma marca de relógio e comprou vários. Temos exemplares do dito relógio: meu irmão, minha cunhada, minha prima, minha mãe, minha filha e eu. Para mim ele deu dois, um prateado, outro dourado e prateado. Quando estamos juntos parece uma confraria.

Meu pai morreu. E todos seguiram usando seus relógios. Esta semana, meus dois relógios pararam e a causa não era a pilha de um, nem a do outro. O de minha filha anda parando. Já são três relógios.

Faz pouco, falei com meu irmão e ele me disse que o relógio de minha cunhada parou, ele levou para mudar a pilha e não era a pilha. Por sinal, o dele já não estava no seu pulso, mas, não sabe dizer a razão, mudou a pilha e colocou o relógio funcionando ao lado da foto de meu pai. Este também parou. São cinco relógios parados.

Meu irmão me pergunta:

-Então, qual o recado?

- Nenhum. O tempo passou.

Ilustração: A Desintegração da Persistência da Memória, de Salvador Dalí.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

ILUSÕES DA VIDA


Gerana Damulakis

Os poemas do romantismo brasileiro não costumam me envolver, mas seria algo típico de juízos apressados generalizar e rapidamente engessar opiniões e colocar rótulos. Não costumam me envolver, pois que seus versos são derramados em demasia, contudo e ainda assim não me conformo e encontro valores: nada é apenas isto, ou apenas aquilo. O poema "Ilusões da vida", de Francisco Otaviano (1825-1889) vale ser decorado, citado e declamado. E vale ser lembrado, até para nosso uso cotidiano. Sem romantismo.

ILUSÕES DA VIDA
----------Francisco Otaviano

Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.



Ilustração: Detail from The Dreaming Youths - Sleeping Girl, Oskar Kokoschka.

sábado, 17 de abril de 2010

"SEREIA LOUCA QUE DEIXOU O MAR"

Gerana Damulakis

Tenho um amigo, escritor como sempre, que foi morar nos EUA e não manteve contato durante os últimos anos. Esta semana recebi um e-mail dele, só que usando apenas um dos seus dois nomes (ele usava ambos, é um nome composto) e o seu último sobrenome (quando usava, no passado, o outro sobrenome). Estranhei. Respondi o e-mail pedindo uma prova, algo que me garantisse que se tratava dele mesmo. Ele escreveu apenas: "sereia louca que deixou o mar". Pronto, estava provado que era ele mesmo, pois o que escreveu foi um dos versos que mais amo (e ele recordou este fato) de Mário de Sá-Carneiro. O verso pertence ao poema "Estátua Falsa", cujo movimento pendular se traduz em melodia poética de primeira.

ESTÁTUA FALSA

-------------------Mário de Sá-Carneiro

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...



Ilustração: mais uma beleza da arte de Rafal Olbinski.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

"DO I DARE/ DISTURB THE UNIVERSE?"



Gerana Damulakis

Virginia Woolf escreve em Um teto todo seu (Nova Fronteira, 1985) sobre as reações diante de uma prosa, ou de um poema, e exemplifica com um momento de êxtase, ou seja, com um momento de reconhecimento. Lemos e dizemos: "Mas isso é o que sempre senti e soube e desejei!", uma exclamação que condiz com o texto escrito ao modo de uma confissão.

Nem eu sei o que quero com tal lembrança. Encontrar linhas que me encontrem. Vontade de colher trigo, de ler poesia? Vontade de "rodar a baiana"?

Vou correr o risco

de perturbar o universo?

Num só minuto há tempo

Para decisões e revisões, a revogar noutro minuto.

Pois já as conheço todas bem, todas -

Sei as noites, as tardes, as manhãs,

Às colheres de café andei medindo a minha vida;

Sei que se esvaem as vozes em breve agonia

Abafadas na música de um quarto mais além.

Como havia eu de ousar, assim?

Trecho do longo poema de T. S. Eliot, "A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock", tradução de João Almeida Flor para a edição de Assírio e Alvim, 1985.

Ilustração: Colhendo Trigo, de Papas Stéphanos.

domingo, 11 de abril de 2010

OS POEMAS FORA DAS GAVETAS

Gerana Damulakis

A escritora Gláucia Lemos comemorou os 30 anos de sua literatura. A festa foi linda. E gostosa, tudo saborosíssimo, um jantar digno dos deuses do Olimpo. Além de sua família tão cheia de amor, seus amigos de várias esferas da vida e seus amigos escritores. Como lembrança da noite, ela ofereceu um exemplar para cada convidado do seu 34º título, Trilha de Ausências, trazendo poemas (alguns foram publicados aqui no Leitora ao longo desses 3 anos de existência do blog). Gláucia é romancista premiada, contista, cronista e autora de uma gama de títulos de literatura infantil. A poesia vem de longa data, mas apenas agora saiu das gavetas e ganhou o livro.

AS GAVETAS

--------------Gláucia Lemos

Deixa que se conservem as gavetas

doidas e embaraçadas

como endoidecem em pequenez as minhas horas.

Papéis como asas caídas

de mariposas tontas,

molestadas de luz.

As gavetas precisam parecer

fragmentos esparsos de recordações

limpas ou sujas.

Como pragas misturadas a orações,

ou aleluias e remorsos revelados nos diários.

Precisam desbotar em pó e ácaros

tantos cartões e endereços,

passaportes para a maldição do esquecimento.



Não se devem arrumar as gavetas,

ajustar contas antigas, retificar agendas.

Para que se embebedar no caldeirão da bruxa?

Para que costurar velhos farrapos?

Deixa que se assentem no fundo

os pós dos infortúnios disfarçados em rímel e batom.

Deixa que transbordem nas gavetas os sobejos guardados

que podem envenenar pelas lembranças

e até podem doer.



Ilustração: Calendar of Yesterday's Wishes, de Rafal Olbinski, 2008.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

A POESIA IRADA DE GOMES FERREIRA (1900-1985): UMA VISÃO PROFUNDA DA REALIDADE



XL

---------------José Gomes Ferreira

Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.
Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insônia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos por dentro das palavras,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao Sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.

Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao "falemos noutra coisa",
aos desvios, às fontes dos claustros, ao "vamos logo ao cinema",
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demônios
- mas só homens e Terra.

Ilustração: Campo de Trigo com Corvos (1890), de Vincent van Gogh.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

A MARCA HUMANA


Gerana Damulakis

O cinema não me seduz. Sou uma pessoa limitada e assumida. Minha paixão é a literatura e admiro as artes plásticas com certo fervor. Mas, hoje, revi um filme que havia assistido em 2003: Revelações, com Nicole Kidman e Anthony Hopkins, adaptado do romance A marca humana (The Human Stain), do grande escritor norte-americano Philip Roth. Geralmente é assim, se o filme me pega é porque vem da literatura. No filme, Nicole Kidman interpreta Faunia Farley. Quando ela conta para Coleman Silk (Anthony Hopkins) os tantos empregos nos quais trabalha, faz uma parada e finaliza com a frase: "Action is the enemy of thought". A frase grudou em mim: "A ação é inimiga do pensamento". A personagem não se permitia pensar, trabalhava incessantemente, precisava da ação para impedir que os pensamentos chegassem.

A marca humana faz parte da trilogia de Philip Roth, iniciada por Pastoral Americana e Casei com um comunista (ambos publicados também pela Companhia das Letras).

Nós deixamos um marca, uma trilha, um vestígio. Impureza, crueldade, maus-tratos, erros, excrementos, esperma - não tem jeito de não deixar. Não é uma questão de desobediência. Não tem nada a ver com graça nem salvação nem redenção. Está em todo mundo. Por dentro. Inerente. Definidora. A que está lá antes do seu sinal. Mesmo sem nenhum sinal ela está lá. A marca é tão intrínseca que não precisa de sinal. A marca que precede a desobediência, que abrange a desobediência e confunde qualquer explicação e qualquer entendimento. Por isso toda essa purificação é uma piada. E uma piada grotesca ainda por cima. A fantasia da pureza é um horror. É uma loucura. Porque essa busca da purificação não passa de mais impureza.


Philip Roth
in A marca humana (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto, 2002).

terça-feira, 6 de abril de 2010

AI DE TI, RIO!

Há um grande vento frio cavalgando as ondas, mas o céu está limpo e o sol muito claro. Duas aves dançam sobre as espumas assanhadas. As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão.
Rubem Braga


Ilustração: Great Wave, de Katsushika Hokusai.

domingo, 4 de abril de 2010

UMA VIAGEM COM KEROUAC

Gerana Damulakis

Não vou dizer que reli: não reli. Li há muito tempo e não esqueci a deliciosa viagem pela Rota 66, com Jack Kerouac, em Pé na estrada.

No dia 5 de setembro de 1957 foi publicado o livro On the Road, de Jack Kerouac. Por conta do aniversário de 50 anos, a editora Viking lançou, em 2007, pela primeira vez em formato de livro, a versão original que o autor datilografou em um rolo de papel para telex de 36 metros de comprimento. O manuscrito difere da versão final por não ter parágrafos, por ser maior em 120 páginas, por trazer os nomes verdadeiros dos personagens, por conter descrições sexuais sem censuras, afinal, é fruto de uma escrita enlouquecida que levou três semanas para ser concluída, contando uma aventura que se prolongou por sete anos. Após três revisões, o que era memória virou ficção, ganhou adornos literários e Neal Cassady, amigo de Kerouac, passou a ser chamado de Dean Moriarty, enquanto surgiu Sal Paradise, personagem com base no autor, formando um par que atravessa os EUA bebendo, ouvindo música e se envolvendo com todos que cruzam seu caminho.

Da “batida” do jazz associada ao misticismo oriental nasceu o termo “Beat”, em 1952, cunhado por Kerouac para o “movimento que daria voz ao espírito de uma geração em revolta contra o conformismo e a respeitabilidade dos EUA da Multidão Solitária”, segundo Malcolm Bradbury, em O romance americano moderno (Jorge Zahar Editor, 1991). Por outro lado, é certo que a palavra beat tem uma gama de outros sentidos: vai da “batida”, até “botar o pé na estrada” (beat the way), passando por “trilha”, “furo” (jornalístico), mas Kerouac ouviu da boca de um marginal com o sentido de “exaltada exaustão”.

Ainda que William Burroughs tenha sido mais importante como experimentador e, ainda que a expressão poética deste clima emocional tenha ficado por conta do longo poema “Howl” (“Uivo”), de Allen Ginsberg, é o romance de Kerouac, aqui traduzido como Pé na estrada, editado pela L&PM, com tradução, prefácio e delicioso posfácio de Eduardo Bueno, que marca a “prosa bop espontânea”, que influenciou uma horda de escritores nos anos 60.

Não parece necessário que haja uma idade certa, tanto para ler Pé na estrada, quanto para ler O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, parece mais possível que haja o leitor certo para estas narrativas que vivenciam tão profundamente a juventude, sendo até melhor fazer a leitura quando já se está olhando, na segurança da praia, como as ondas são revoltas.

A revolução comportamental gerada por On the Road inclui gente como Bob Dylan, que fugiu de casa depois de ler o livro. Basta que o leitor seja capaz de lembrar a inquietação, o fascínio pelas descobertas e o sonho de liberdade, para que usufrua totalmente tais caminhadas. A dupla de Kerouac cruzando o país inteiro a partir da Rota 66, desbrava, transgredindo, outra estrada: a que se vai construindo ao abandonar a infância. A “bíblia hippie”, o mito On the Road, para usar o chavão proporcionado pelo livro-prisão, ofuscou suas outras obras, como The Dharma Bums (Os vagabundos iluminados). Jack Kerouac morreu em 1969: estava apático, sem nenhum espírito de aventura.

sábado, 3 de abril de 2010

TRECHO FINAL DE "RESSURREIÇÃO", DE CRUZ E SOUSA

---------------
.........
Porém tu, afinal, ressuscitaste
E tudo em mim ressuscita.

E o meu Amor, que repurificaste,
Canta na paz infinita!
-------------------------Cruz e Sousa



Ilustração: Ressurreição (1463-65), de Piero della Francesca. Museu Cívico (Pinacoteca Comunale) de Sansepolcro, Toscana.

quinta-feira, 1 de abril de 2010


A TENTAÇÃO
---------------Murilo Mendes

Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo:
"Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".



Ilustração: Cristo na Cruz, de Eugène Delacroix (1845). Museum Boijmans van Beuningen, Roterdã, Holanda.