segunda-feira, 7 de julho de 2008

RÉSTIA DE LUZ

Ildásio Tavares


Para Gerana



Ainda ontem, entrei sem querer naquela
pensão barata (mas limpa e asseada)
onde nos encontrávamos felizes nos
finais de tarde. Entrei sem querer,
eu juro. Procurava uma peça de carro
numa daquelas lojas perto da estação
e quando dei por mim, estava bem na porta.
Resistir, quem havia de?

Na penumbra furtiva do corredor,
o coração descarrilou até o quarto
17 que me aguardava calado como uma
verdade eterna. Tudo igual. A cama
imaculadamente branca; um criado mudo;
duas cadeiras de palhinha puídas; e a
bacia de louça cor de rosa em que te lavavas depois,
ocultando teu gesto,constrangida,
para não te banalizares – tua aura de
deusa profanada por uma intimidade prosaica.

Quanta vez este teu recato ante a promiscuidade
me excitou, te enlacei por detrás
e te trouxe de volta ao vendaval da cama!
Tu sempre resistias. Você é louco, menino? Ele chega
cedo do trabalho. Olhe aquela réstia de luz na persiana
que engatinha sorrateira a caminho da noite. Mas
resistias um resistir indeciso, querendo mesmo te
entregar, e desta vez com mais volúpia.

É um amor bem mais amor esse amor
que me fazes depois, tu murmuraste
um dia, abaixando os olhos, com esse
teu jeito envergonhado e tímido de
tudo fazer e nada comentar. Foi num desses dias em que
sentimos a terra tremer embaixo de nós e até pensamos
que era o trem. La estava a réstia de luz que engatinhava
pela persiana, prestes a engendrar a noite.


Não sei se foi ele, se fui eu ou que foi.
Ninguém entende a lógica das mulheres.
Faz bastante tempo que nos vimos.
Foi no meio da rua, por acaso. Tu nem
quiseste sentar para tomar alguma coisa, conversar.
Era um final de tarde. Tinhas pressa.
O que a gente tem pra conversar,
conversa aqui mesmo, rapaz, diga.


Eu tentei reviver em minhas trôpegas palavras
nossos momentos de esplendor, cerzir retalhos do passado
como uma colcha de delírio.
Tu ouviste calada e no final
disseste. Acabou, menino, passou, esqueça.
Com um sorriso didático e nada teu.

Com um ar preocupado, consultaste
teu relógio e foste embora, sem um adeus,
pisando nas nuvens num passo curto
e ligeiro. Eu via uma pessoa mas era outra
pessoa. No quarto imóvel da
pensão barata, a réstia de luz desenhava
preguiçosamente as horas diminutas do
final da tarde, recorrente indiferença
de todos os dias. Sinete azul da eternidade.





Este poema está no livro 50 Poemas Escolhidos pelo Autor (Ildásio Tavares - Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2006). O poeta dedicou-me o poema porque eu ouvi todas as modificações que ele fez ( e foram muitas) por vezes até altas madrugadas, quando ele telefonava por conta de uma nova solução. Valeu a pena, ganhei, em papel, todas as versões que o poema teve ao longo de sua feitura. E, assim, ele a mim foi dedicado.


Foto de Zé Eduardo, do Flickr.

10 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Que beleza! Como eu gosto. A forma sem interferir no sentimento, o sentimento sem atrapalhar a forma, e os dois, um casamento perfeito. Muito bom, Ildásio, excelente.

Gerana Damulakis disse...

Este poema de Ildásio é viciante. A gente acaba de ler e vai reler e vai reler...

Anônimo disse...

Fico happy de vc gostar de Réstia de Luz porque eu pretendi colocar nele todo sentimento de queda que o homem tem quando a mulher lhe dá um pontapé na bunda, toda frustração da perda da cama, e é admirável que vc possa entender e gostar quando a tragédia surda só ocorre na ótica masculina e ele tenta recuperar mas a pior coisa no mundo é um ídolo caído -- a impiedade das mulheres é terrível. Veja que o crime passional é 90% masculino. A mulher se recompõe. O homem se destrói.Não pode mais comer, mata. Eu via uma pessoa mas era outra pessoa. O abismo onde antes havia a maior intimidade possível cedendo lugar a uma cortesia glacial. Implicado, inclusive, que ela estava traindo o marido com outro o que faz dele objeto e corno.

Anônimo disse...

Não entendo nada de poesia. Mas este poema tem um desenrolar, um fio que nos enreda e nos leva até o fim. Natural e belo. É, Gerana, você tem um bom material para a crítica genética. Abraços.

Carlos Vilarinho disse...

Prosaico em algum sentido. Poético em tantos.

Anônimo disse...

Devo dizer que fiquei deveras encantado com este poema-narrativa. E creio que o Ildásio tem razão no seu comentário. É um poema para homem compreender... O fascínio que provocará nas mulheres ocorrerá, com certeza, por outras razões. Mas é uma peça de pura sensibilidade e, acima de tudo, de verdade poética (com grandes doses de verdade prosaica, devidamente administradas).

Anônimo disse...

Quem disse que mulher também não fica péssima quando toma uma rasteira? A pergunta é especialmente para as premissas de Ildásio e de Manuel Anastácio. O amor-próprio feminino é que é a grande alavanca para a volta do equilíbrio, mas até lá...

Anônimo disse...

O sofrimento da mulher é real, quando toma uma rasteira... Não ponho isso em causa.

Mas tal como disse o Ildásio, "a impiedade da mulher é terrível". Essa premissa da impiedade feminina apenas poderá ser compreendida pelos homens, até porque, certamente, é falsa e injusta. Mas na óptica masculina, Gláucia, acredita que nada pode ser mais cruel (e põe crueldade nisso) que a mulher que se ama. A crueldade masculina é mais física, mais básica - eventualmente mais violenta e mais destruidora...

É complicado explicar. Nem com uma biblioteca sobre o assunto. Para grande maravilha nossa, os homens são diferentes das mulheres...

Letícia Losekann Coelho disse...

Nossa Gerana, esse poema é belo demais... Como tu falstes viciante mesmo. De uma sensibilidade sem igual!
Beijos