segunda-feira, 18 de outubro de 2010

UM TEMA, DOIS GÊNEROS


Gerana Damulakis

Contista de primeira, o norte-americano Raymond Carver (1938-1988) fez um poema para um conto seu. O conto é “Me telefone se precisar”, encontrado no volume 68 Contos de Raymond Carver (Companhia das Letras, 2010), com tradução de Rubens Figueredo. A revista serrote (nº 2, julho de 2009), uma publicação do Instituto Moreira Salles, apresentou o conto seguido do poema, “deixando claro como Carver atualizava o gênero da poesia narrativa para a sensibilidade contemporânea”. O poema, com o mesmo tema e o mesmo episódio do conto, demonstra a capacidade de Raymond Carver nos dois gêneros. A tradução do poema é de Rodrigo Lacerda.

TARDE DA NOITE COM NÉVOA E CAVALOS
----------------------Raymond Carver

Estavam na sala. Dizendo
adeus. A perda ressoando nos ouvidos.
Tinham vivido muita coisa juntos, porém agora
não podiam dar nem mais um passo. Além disso,
ele tinha outra pessoa. Lágrimas caíam
quando um cavalo pisou fora da névoa
no jardim da frente. Depois mais um, e
mais um. Ela saiu da casa e disse:
“De onde vocês vieram, cavalinhos?”.
E avançou por entre eles, chorando,
tocando seus dorsos. Os cavalos começaram
a pastar no jardim da frente.
Ele fez duas ligações: uma foi direto
para a polícia: “Os cavalos de alguém estão soltos”.
Mas teve a outra chamada, também.
Então se juntou à esposa na frente,
no jardim, onde os dois falaram e murmuraram
com os cavalos. (O que estava
acontecendo, acontecia em outro tempo.)
Os cavalos podaram a grama do jardim
aquela noite. Uma luz vermelha de emergência
brilhou quando um sedã veio rastejando pela névoa.
Vozes atravessaram a neblina.
Ao final daquela noite comprida,
quando finalmente puseram os braços em volta
um do outro, seu abraço estava cheio de
paixão e lembrança. Um evocava
a juventude do outro. Alguma coisa chegara ao fim,
outra vinha entrando com força para tomar o lugar.
Chegou a hora da despedida.
“Adeus, vá em frente”, ela disse.
E o distanciamento.
Muito depois,
o homem lembrava de um telefonema desastroso.
Um que ficara ecoando, ecoando,
feito maldição. No final das contas
foi o que sobrou. O resto da sua vida.
Maldição.

Ilustração: A Torre dos Cavalos Azuis, de Franz Marc (1880-1916).

15 comentários:

Zélia Guardiano disse...

Gerana querida

Maravilha!
Li, reli e li outra vez.
Até tive a ousadia de resumir:
Estavam na sala. Dizendo adeus.A perda ressonando nos ouvidos.
O resto da vida foi maldição.

Grata, amiga, pela oportunidade de excelente leitura!
Abraço apertado

Unknown disse...

uma maravilha, realmente

abraço

Sueli Maia (Mai) disse...

É belíssimo este poema, Gerana.
Completo e pura sinestesia.

Não conheço seus contos mas, estranha e subitamente, a leitura deste poema me remeteu ao Gabriel Garcia em O amor no tempo do cólera.

Fiquei com vontade de ler mais, muito mais...

grande abraço e novamente obrigada!

João Renato disse...

Adorei, Gerana.
Eu gosto muito de poesia narrativa.
Aliás, que eu me lembre agora, a Ilíada, a Odisséia, os Lusíadas, a Divina Comédia e os nossos I-Juca-Pirama e Romanceiro da Inconfidência também são poesia narrativa.
Mas é uma forma poética, infelizmente, pouco usada atualmente.
Abraço,
JR.

João Renato disse...

Adorei, Gerana.
Eu gosto muito de poesia narrativa.
Aliás, que eu me lembre agora, a Ilíada, a Odisséia, os Lusíadas, a Divina Comédia e os nossos I-Juca-Pirama e Romanceiro da Inconfidência também são poesia narrativa.
Mas é uma forma poética, infelizmente, pouco usada atualmente.
Abraço,
JR.

BAR DO BARDO disse...

Ai, a questam dos géneros!
Bom texto supera tudo, inclusive a questam.

Daniel Hiver disse...

Poema além de definições! Cheguei num ponto em que ao ler que "Alguma coisa chegara ao fim, outra vinha entrando com força para tomar o lugar."
E como me é muito peculiar; fiquei aqui divagando nas muitas coisas que se vão e não voltam, ao passo que outras entram no lugar, substituindo com vantagem.
Uma boa semana Gerana!

Hilton Deives Valeriano disse...

Parabéns belo Blog! Belo! Já adicionei seu endereço ao meu. Convido-a a uma visita ao Poesia Diversa. Sua presença será uma honra!

silvia zappia disse...

aplausos,aplausos,aplausos!
tus entradas siempre merecen aplausos.
y en ésta no puedo ser objetiva...Raymond Carver es uno de mis escritores predilectos.

mil besos*

Ana Tapadas disse...

Que excelente! Não conhecia este poema e ele é uma maravilha.
Beijinho

Anônimo disse...

Talvez em inglês soe mais poético. Eu confesso que não vi poesia na narrativa. Serei ortodoxo demais?

Bípede Falante disse...

G.
Tenho adoração por um conto que está no Short Cuts Cenas da Vida. Chama-se Uma coisinha boa, que eu, com a minha bipedice, durante anos li Uma Coisinha a Toa.
Você conhece??
beijo

Unknown disse...

Parece que estamos percorrendo o mesmo caminho, uma boa coincidência, peguei o Carver, depois do D'Ambrosio.
Eles são parte do mesmo momento. Obrigado por compartilhar. Beijos.

Unknown disse...

Quase me esqueci, o Rodrigo Lacerda, quando não traduz, é brilhante também. As imagens que ele descreve são inesquecíveis. Beijos.

José Carlos Brandão disse...

Ainda por cima, eram cavalos.
(Os cavalos não pertencem à poesia?)