terça-feira, 24 de agosto de 2010

24 DE AGOSTO DE 1899: NASCEU JORGE LUIS BORGES


BORGES EM MINHA LEMBRANÇA

Silvia Zappia

Foi numa tarde de agosto de 1974 quando três amigos e eu tocamos, com total atrevimento, com a impunidade que só a adolescência nos dá, a campainha do quarto andar de um edifício do bairro portenho de Palermo.
Fazia dias que havíamos decidido, assim, sem mais nem menos, sem titubear: fazer uma reportagem com o mestre, entrevistar a Borges.
Quando Maria Kodama, então sua secretária, abriu a porta para nós, os quatro adolescentes que éramos (alunos do último ano do secundário), perdemos a segurança e também a voz. Foi Mario aquele que pode balbuciar um “Viemos entrevistar o senhor Borges”.
E foi assim, tão simplesmente, como entramos na sala do apartamento, antiga, pequena, descuidada. Lembro de uma grande biblioteca que ocupava três paredes e a janela que dava para uma varanda iluminada. Perto desta janela estava sentado Borges, como se estivesse nos esperando, com uma mão segurando uma bengala e com a outra acariciando um gato, branco e gordo, que dormia em seu colo.
Nos cumprimentamos, nos sentamos em duas poltronas velhas, Marcelo ligou o gravador e, sem que fizesse uma pergunta ele começou a falar. Apenas ele falou, sem deixar de acariciar o gato, sem nos permitir ao menos uma palavra. Durante essas quase duas horas perdi a noção do tempo e do espaço; apenas sentia a respiração de Mônica sentada ao meu lado e a voz, a voz do mestre Borges.
Quando decidiu que nosso tempo havia terminado, pediu que fossemos embora, sem nenhuma amabilidade. Simplesmente assim, tão simplesmente como havíamos chegado.
Descemos os quatro pisos em silêncio, com as pernas tremendo, e quase no mesmo estado tomamos o trem suburbano que nos devolveu à casa e ao mundo.
Quando escutamos a fita, pouco foi o que entendemos. A gravação era de má qualidade e as palavras de Borges soavam quase incompreensíveis; nessa época apenas conhecíamos linguística, Spinoza, e as verdades de Confúcio.
Essa fita gravada foi para as mãos de nossa professora de língua e literatura; dela, foi para outra professora e, como se pode supor, jamais voltou para nós.
Nenhum dos quatro amigos que estiveram com ele, com Borges, recordam com clareza o que ele disse, por ter havido mais emoção do que atenção; eu, particularmente, nunca esquecerei o timbre de sua voz enquanto falava de Tao, e seus olhos já sem luz.
Hoje sei que Borges não falava para nós. Falava para ele mesmo, ou para esse outro que o habitava, perdido em seu labirinto, em seus círculos eternos, nas bifurcações do tempo.

22 de agosto de 2010

Ilustração: foto, tirada por Celeste, filha de Silvia, do mural que foi pintado sobre azulejos, pelo artista gráfico Rep, na Plaza Borges, ciudad de Mar del Plata.

O texto de Silvia Zappia foi escolhido para que o Leitora pudesse homenagear Jorge Luis Borges no dia de seu aniversário, su cumpleaños, com um relato de uma lembrança, de um recuerdo, de quem que teve a oportunidade de conhecê-lo: viu sua pessoa, ouviu sua voz.
Silvia é poeta e tem o blog:
GD

16 comentários:

silvia zappia disse...

Gerana, me siento honrada y emocionada por esta publicación en tu blog. (hasta diría que estoy con las piernas temblando, como en aquel día).

mil besos y mil gracias*

Unknown disse...

Gerana que maravilha, nada melhor que homenagear Borges com um texto da sua rama, que tem o cheiro de Borges. Silvia conseguiu um relato inusitado sobre algo que sempre vai pairar no céu das interrogações e nas diluídas existências. Esse mister entre sonho e realidade.


abraço

Tania regina Contreiras disse...

...e obriaga, Gerana, uma bela homenagem. Belo blog o da Silvia...
Beijos,

Anônimo disse...

Fantástico texto, que gentileza ela ter lhe atendido o pedido! E o fez com tamanha magistralidade. Amei, fiquei embasbacado. Viva Borges!

Eleonora Marino Duarte disse...

obrigada silvia!


obrigada querida gerana,

por apresentar-nos a silvia e manter-nos borges!


um beijo.

Anônimo disse...

Muito bonito ela ter escrito uma recordação para seu blog homenagear JLB.
E muito boa narradora ela é.
Fátima

Lisarda disse...

Gracias, Gerana-y gracias a Silvia Zappia-por recordar al querido maestro.

Olha a sincronicidade:ontem estaba, em Buenos Aires, Carlos Nejar, que foi tradutor de Borges na década dos'70.
Abrazo.

Francisco de Sousa Vieira Filho disse...

Ao se quer, quer-se sempre atenver o quanto da alma do escritor está na escrita [e se a escrita é bela e profunda e tocante e artística e mágica...] se quer sondar e passa-se a amar tanto mais a alma do escritor que o escrito... ;)

Nilson Barcelli disse...

Não sei se em 1974 Borges já era um mito ou não, para que os meninos tivessem ficado tão bloqueados.. Agora, acho que sim, porque a sua obra é importantíssima. Um dos grandes escritores de sempre e, em especial, do século XX.
Querida amiga, bom resto de semana.
Um beijo.

Ana Tapadas disse...

Homenagem muito original, linda. Borges é um autor excelente. Os seus escritos invulgares: curtos e plenos de significado.
Voltei finalmente!
Beijinho e saudade

aeronauta disse...

História incrível, texto valioso!

Anônimo disse...

Flutuei até aqui para...
agradecer...
a sua presença...
em meu Nat King Cole...
Beijos...musicais...
Leca

Jamile Gonçalves disse...

Não o conhecia e mesmo assim o amei.
Gostei disso...

karina rabinovitz disse...

Gerana, você sempre compartilhando!
muito bom o texto, com os ares do mundo de Borges.

Nilson disse...

Sensacional! Tentei seguir passos de Borges quando estive em Buenos Aires, o Jardim Japonês, etc, até concluir que toda a cidade, pra mim, era basicamente Borges. Valeu! E hoje, 26, é aniversário de Cortázar!

Unknown disse...

Nossa, nossa, muito legal a história, demais mesmo. Deixa te contar que, quando Borges veio ao Brasil eu montei a exposição do lançamento de seu livro aqui e fiz o projeto da coleção, "sete noites".

Foi emocionante, mas cheio de gente, de compromissos, e eu estava mais ligada em fazer bem o trabalho que no Borges.

Já essa história, veja, eu tbm perdi a voz, e tremi nas pernas.... junto com a rapaziada.

gerana....vc é demais viu!