terça-feira, 2 de junho de 2009

À ESPERA DO TORNADO, DE GLÁUCIA LEMOS

Manuel Anastácio


Um dia ainda escreverei a história
de uma mulher que tinha um homem que a amava
e que um tornado levou.
Escreverei a história de quanto ela esperou.
Contarei como o vento arranhou a face de quem o viu
levando árvores, cães e telhados.
E contarei o caso de, dos homens, só levar os apaixonados.
O vazio no peito dos que não amaram nem amariam
Não compensava o peso dos seus membros estéreis e apagados.
Esses foram poupados.
Poupados ao olho voraz do vazio em que o homem que amava
aquela mulher lhe gritou
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim. Um dia voltarei.
E contarei como as mulheres abandonadas
Seguiram, solitárias, pelas estradas, à procura.
E contarei, ó como contarei, enquanto os meus olhos conseguirem disfarçar as lágrimas,
como o rasto dos seus olhos se espalhava pelo chão,
pelo duro bordo dos trilhos, pelo vermelho dos frutos do café,
pelas ondas alvas do algodão
e pelo verde das folhas com que o milho se vestia.
Pudesse eu, e contaria, ó se contaria,
Como os olhos verdes das que tinham olhos verdes
se debotou enquanto o matagal oculto deles se tingia.
Soubesse eu como fazê-lo, e contaria
Como se tornaram mais negras as noites,
Alimentando a sua escuridão com o negro dos olhos,
Das que tinham olhos negros e os viram tornar cinza,
apagando o seu negro brilho na ansiedade que perscruta as sombras.
Todas seguiram os caminhos da esperança desolada.
Todas, menos a mulher de quem contarei
As horas gastas nos trabalhos em que persistia,
Dia após dia, até ao momento em que, recolhida,
Junto à janela,
Novamente ouvia o vento em lamento melancólico e pirracento
Que quezilento, em lento protesto lhe repetia
Espera por mim, minha amada,
Espera por mim.

E, após o pedido, a promessa
Um dia voltarei.
E a mulher esperava, sob a areia prateada da noite,
sob a curva abóbada dos nocturnos violões
Tornados próximos pelo silencioso hálito de Deus, à noite,
Assim esperava a mulher de quem contarei
A espera, a esperança de que na dança dos elementos
Também houvesse o passo da restituição.
De quem contarei a bênção de acreditar
Que não há vento nem maldição que não devolva
O que seria de justiça não levar.
Contaria, ó como contaria,
Como trazia amarradas as dores do seu segredo sagrado.
Contaria, pudesse eu entender o que mais dizem os galhos das amendoeiras
Varados pelo vento,
No seu lamento ao ledo e triste alento
Da mulher que tinha um homem que a amava. E que, um dia, o vento levou.
E por quem ela esperaria,
Depois de esquecidos os sorrisos com que amarrara a dor aos dias,
Presa ao milagre adiado com que o vento, rendido, o devolveria.


Conto-poema de Gláucia Lemos publicado, inédito, na "Antologia Panorâmica do Conto Baiano - Século XX", com organização e introdução de Gerana Damulakis. Alterado, em termos formais apenas, por mim, em alguns pormenores, com a prévia autorização da autora.
Espero que não tenha deturpado muito a intenção original de um conto que já li vezes sem conta e que conto entre os mais belos poemas de amor que já li. A Gláucia, generosa como sempre, disse que, com este poema, estabelecíamos um "condomínio". Confesso que muito me orgulha o beneplácito de tal vizinha, a quem só não ofereço este poema, porque já é dela. MA

12 comentários:

glaucia lemos disse...

Obrigada, Gerana, pela badalação, mas a intenção era ressaltar a sensibilidade de Manuel Anastácio, na sua inspiração, porrque o poema me encantou de verdade, por ser todo em cima das minhas imagens. A nota abaixo do poema, eu ainda não tinha visto,pois só agora irei ao blog dele. Um beijo.

Katia Borges disse...

Belíssimo. Eu não conhecia. Lindo!

Pedro disse...

Especial, nem há mais o que dizer porque é simplesmente lindo.

anna disse...

Que mão poética, Gláucia. Como ele conseguiu passar aquele seu conto para versos de uma forma que é, perdão pela redundância, pura poesia no seu mais alto grau. Emocionei-me.

pereira disse...

Ah, Gláucia, como você merece tal homenagem. Sim, este poema é uma homenagem, sem dúvida. Bravo para o poeta!

gláucia lemos disse...

Amigos: Eu chorei quando li, confesso, em meio à leitura, não aguentei, desabei. Eis a generosidade de um grande poeta. Ele, sim, merece as homenagens.

Gerana Damulakis disse...

Gláucia: você merece.
Manuel: o texto poético está magnífico.
Eu, feliz, com a amizade de ambos.

Manuel Anastácio disse...

Gláucia já protestou dizendo que o poema é meu e não dela. Eu não consigo ver as coisas assim. Escrevi o poema com o conto à frente e limitei-me a copiar. Qualquer alteração deveu-se apenas à inevitável transformação que um texto sofre ao ser lido por outros olhos. Todo o leitor é sempre autor. Mas toda a glória deste poema, que nele há, com certeza, pertence de direito a Gláucia Lemos. Beijos.

Flamarion Silva disse...

Ainda não li o conto de Gláucia que dialoga com o poema de Manuel Anástácio. Mas creio que são duas artes, essa coisa de cópia não cola mais. O Manuel é muito criativo, um artista fino e original. Se eu fosse Gláucia, também me sentiria honrado e feliz por ter minha obra suscitado tão belo poema.
Abraços e parabéns aos dois.

gláucia lemos disse...

Oi Flamarion: O conto está na antologia organizada por Gerana: Antologia panorâmica do conto baiano século XX, página 165. Uma obra de fôlego. Se tiver interesse, me mande seu email que lhe enviarei uma cópia do conto. E claro que estou muito envaidecida pelo poema de Manuel, conforme Pereira, uma homenagem.

Flamarion Silva disse...

Oi, Gláucia.
Me mande mesmo o conto. Meu e-mail é: flammarion@ig.com.br
Estou doido para ler.
Beijos.

gláucia lemos disse...

Oi Flamarion: mandei como anexo para o seu email.