sábado, 29 de novembro de 2008

LUCIDEZ



Manuel Anastácio


Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
dentadas.
Não te lances ao pescoço das cobras
Não te lances
Não
Não te lances
Não te lances aos transes depressivos da repetição
Aos lances regressivos da depressão
Não
Não te lances
Não avances
Deixa-te estar, a ver cada réptil passar sob os teus pés
E a rirem em ti da sua frigidez
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas penadas
Não te lances ao pescoço das cobras se tens medo de
almas geladas
Não te lances se tens medo
Se tens medo, não avances.

Mas só se tiveres medo.



Manuel Anastácio é poeta, assina o blog Da Condição Humana: entre em http://literaturas.blogs.sapo.pt/, ou use a entrada pelos meus Favoritos.

"Lucidez", por yang_83, retirado do Flickr.

8 comentários:

Fred Matos disse...

Gostei muito deste poema.

Anônimo disse...

Para a hora do desabafo, da fúria, da perplexidade. Gostei muito.

Anônimo disse...

A lucidez, inverso da cegueira, para falar saramaguianamente, é justamente este estado: o protesto. Para os que não têm medo, como bem disse o poeta. Parabéns pelo poema, serve para todos nós nesse terrível dia-a-dia, tão cheio de lutas.

Só a título de não deixar passar: estou relendo O ensaio sobre a cegueira depois que vi o filme. Sabe a razão? Apagar as imagens prontas do cinema, me refazer diretora da ficção que leio.

Anônimo disse...

A força do poema é tal que me vi exatamente sentindo tudo aquilo... e o impasse, vou, não vou enfrentar as feras.

Anônimo disse...

Precisamos muito de poemas como este. Para nos tirar da inércia. Para abrir nossos olhos. Para nos dar coragem. Para irmos à luta.
Lúcidos.

Anônimo disse...

Obrigado, Fred, Pereira, Anna, João Pedro e Flamarion. É incrível como, tendo eu escrito este poema a pensar num determinado e específico grupo de pessoas, encontro as mais tocantes palavras da parte das pessoas que supostamente não pertencem a esse grupo. E sinto que escrevi, de fato, algo verdadeiro. Algo que ultrapassa as contingências geográficas e políticas.

Na verdade, quando o escrevi, pensei:

- "Vou escrever como se o meu cérebro se limitasse ao puramente biológico. Como se não houvesse linguagem nos meus neurónios."

Deixei-me tomar pela expectativa animal, como se regredisse na escala biológica e escrevi. E apercebi-me que a evolução é mais uma questão de forma que de conteúdo.

As questões essenciais que nos fazem dar um passo em frente são as mesmas que fazem mexer qualquer animal com poder de decisão.

Obrigado pelas vossas palavras.

Gerana Damulakis disse...

Manuel: adorei saber o processo de criação, é útil para a crítica genética, aquela que vai na origem do poema para entender melhor. Como sempre, um poema seu é um poema seu.

Anônimo disse...

Ai, as cobras... sinto tanto pavor que fecho os olhos quando uma aparece na televisão. No entanto,elas estão entre nós, com duas pernas, dois braços, uma cabeça sobre o pescoço, e falam, e caminham e sorriem, e, mal damos as costas, estrangulam os nossos pescoços.
Não acreditem nos sorrisos das
das cobras,
não, não acreditem.
eles flutuam em veneno.