domingo, 20 de janeiro de 2008

O QUE SE SABE DOS ESCRITORES DESTA TERRA?



O texto a seguir é um resumo de uma palestra proferida pela escritora Gláucia Lemos por ocasião de um café literário. O tema foi desenvolvido pela ficcionista, que discorreu sobre demais aspectos, tendo como centro a literatura.
Gláucia Lemos


Sabemos que há um certo glamour envolvendo algumas atividades, especialmente atividades artísticas, em todas as suas manifestações. Obviamente também em relação aos operários da literatura. Um glamour que nos coloca em situação distinta, na qual somos olhados com alguma curiosidade. Quando alguém sabe que somos escritores vem a pergunta imediata: Qual é O seu livro? Aí acontece o primeiro embaraço: se já publicamos alguns livros, ficamos constrangidos. Que faremos? Citaremos um dos títulos? Ou confessaremos já ter um número mais avultado? Aí dizemos, um pouco envergonhados, como se fosse uma confissão: Tenho alguns publicados, e mencionamos o número. Nesse ponto corremos o risco de ser olhados com um olhar de descrença, como se parecêssemos incapazes de tal proeza. Como se pensassem que se tivéssemos chegado a tal ponto, o certo é que não estaríamos mais aqui, dando sopa “baratamente” pelas ruas da província. Escritor que se preza está morando é no coração da cultura, no eixo Rio-São Paulo., que nem João Ubaldo, Antônio Torres, Hélio Pólvora (que retornou) João Carlos Teixeira Gomes, e alguns outros. Às vezes até perguntam se somos mesmo daqui da Bahia, de Salvador... Que coisa! para baiano dar certo na literatura tem que ir embora? Ou então, se está dando certo na Literatura, tem que ser de outras terras e andar aqui por acaso? Então a gente quase pede desculpas por ser um escritor e por estar conquistando com êxito o seu terreno; é como se estivéssemos expondo uma coisa muito íntima. Há ocasiões em que o "normal " que nos inquire diz algo alentador, como : Já ouvi o seu nome! Gentileza ou não, essa frase melhora a situação, quem sabe, talvez tenha lido em algum texto no jornal... Ruim mesmo é quando pergunta, e é muito freqüente: Sai muito caro para publicar um livro? Aí é a hora do embaraço para explicar que não pago um centavo, pelo contrário, recebo. As editoras são que me pagam meus direitos periodicamente. Essa parte, confesso, me deixa cheia de pudor, ante a expressão de surpresa do interlocutor. Não sei se expressa incredulidade... Parece que estou contando que acertei a mega sena.
Tudo isso de que estou falando tem um objetivo: registrar como andam em baixa os conhecimentos do público em geral, quanto ao escritor da terra, quanto à literatura que se faz aqui, e, modéstia à parte, a boa literatura que temos na Bahia, não somente criada pelos nossos medalhões por demais conhecidos, e reconhecidos, mas também pelos que ainda estão quebrando paredes para instalar vitrine onde colocar seu trabalho, e pelos que, ao lado da seriedade da sua produção, têm contado com a ajuda da boa sorte, entre os quais modestamente me coloco.
Fazendo esses comentários, recordo um episódio ocorrido há uns poucos anos atrás. Chegando à portaria do meu prédio um pacote de exemplares, o reparte de uma nova edição de um dos meus livros, o que recebo conforme contrato, o porteiro curioso perguntou para minha empregada o que havia naquele pacote. Ao saber que eram livros escritos por mim, exclamou: Taí, tá podre de rica fazendo essas besteiras... Coitado... errou duas vezes. Nem estou podre de rica, nem estou fazendo besteiras. Demos aí o desconto do nível de informação do autor do comentário.
Há ainda outra faceta que o escritor enfrenta que é a pecha de sermos diferentes do comum. Temos manias, vemos as coisas por outros ângulos, somos hipocondríacos, somos PMD, somatizamos nossas emoções, enfim, já até assumimos essas coisas, rimos delas e acho que algumas têm razão de ser. Essas facetas são consideradas até mesmo pelos nossos familiares. Não sei se acontece com todos, mas sei que, de modo geral somos considerados um pouco desalinhados da conduta geral, isso é da conduta dos normais. Na minha casa, meus filhos dizem que vejo coisas e situações de um modo diferente do modo das outras pessoas. E sempre que vou ensinar alguém como ir a determinado lugar, eles correm em socorro à vítima, e ensinam eles próprios, porque eu sempre indico o caminho inverso com a melhor das intenções. Deus me livre de prejudicar quem quer que seja. É só porque sou mesmo desorientada quanto ao espaço. Meu marido, quando vivia, nunca me deixou dirigir carro por causa disso. Aí ele morreu e eu fiquei de taxi. Talvez ele não confiasse que eu acertasse a voltar para casa. Mas será que tem a ver com a minha condição de escritora? Ou será que sou escritora porque sou assim, meio fora do mundo? Não importa. Todos nós temos direito de ter nossas características, embora algumas vezes elas incomodem. O mundo seria muito tedioso se todos fossem muito equilibrados. Contando que as nossas idiossincrasias sejam naturais, e não estejamos a fazer gênero para aparecer.
Apesar desses senões, eu jamais descartaria o dom de fantasiar com que a natureza me dotou. E não é só a questão da fantasia, da criação de uma história, dos personagens, do enredo, é muito, é muitíssimo mais, é a paixão pelo trabalho com a palavra. Essa prerrogativa que Deus, ou a natureza, ou como queiramos chamar, doou ao ser humano, é o que de mais forte possuímos, além da vida. A palavra é a liberdade do pensamento, feita concretitude. É a possibilidade do "não-ser "do pensamento transformar-se em “ser”. Através da palavra a abstração da emoção ganha forma e se torna concreta. E essa força pode ser perigosa, tanto quanto pode ser divinizada. Daí a magia de trabalhá-la tornar-se um desafio para o escritor. Na faculdade de Direito eu aprendi o valor e a importância do emprego da palavra exata, para o exercício da profissão na defesa da lei, na qual uma ambigüidade pode significar a derrota em uma causa. Na literatura aprendi como utilizar a ambigüidade da palavra em proveito de um belo texto. O que se torna muito mais gratificante de ser exercitado.
As possibilidades da palavra na sintaxe a partir da sonoridade, no ritmo da sentença experimentando com a tonicidade das sílabas, nos jogos que a homonímia oferece, na elegância que os sinônimos bem postos nos possibilitam. Essa oficina, que alguns escritores dizem ser de cansativa transpiração, se me afigura como as flores a serem postas nos jarros, depois da sala arrumada, e como a decoração da torta, depois de tirada do forno, e como o perfume que vaporizamos no corpo depois que estamos prontas para a festa. Sem essa terminação, sem o verdadeiro trabalho literário, a história, por mais bem engendrada, por mais criativa, não é senão uma narrativa insossa. Não ponho fé nessa afirmativa de transpiração cansativa. A mim, se tem revelado trabalho, sim, trabalho de responsabilidade, sim, mas o trabalho prazeroso, mágico, um trabalho de descobertas para a perfeição do texto, até o máximo de perfeição que possamos atingir dentro da nossa limitação humana. Já que a criação do enredo, o desenvolvimento do tema, isso brota sem esforço e independente da vontade do autor, como rebenta o broto da amêndoa da semente, por conta de criatividade. A história surge espontânea. A oficina do texto é voluntária, dela temos consciência e a essa tarefa nos dispomos, desafiando os deuses que nos fizeram mortais, conforme entende Rollo May no seu ensaio "A coragem de Criar ." . Porque é através dela, da conseqüência da aplicação apaixonada ao trabalho da palavra que alcançamos a imortalidade. Com todo o respeito pelas Academias, é a palavra a que nos dedicamos com paixão o que nos leva a vencer esse desafio e nos imortaliza.
Por isso é que, com os alguns senões e incompreensões que acarreta ser escritor, e com as muitas gratificações que tal nos proporciona, cabe aqui associação com um verso contido em " Dom de iludir ", de Caetano Velloso, que transcrevo na primeira página toda vez que abro um novo caderno. "Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’ O que no meu caso vem caber não só com a condição de escritora, como igualmente, com a minha condição de mulher.

sábado, 12 de janeiro de 2008

TOALHAS DE PRATOS



Gláucia Lemos


O inverno chegou, no entanto, ainda é maio. O vento carrega os chuviscos miúdos no rumo do Sul, como se os misturasse, e acaba compondo uma nuvem de tênue fumaça, ou um sopro muito leve de talco.
A mulher que vende toalhas de pratos tiradas da sacola de plástico, lá está encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se sob a copa espalhada. Os galhos não a impedem de receber os pingos escorridos das folhas e os muitos chuviscos que escapam por entre a raquítica ramagem.
O braço esquerdo, magro e negro, suporta, enfiada, a sacola amarela, além de abraçar, apertado ao tronco, um pote de vidro de tampa vermelha, mal cheio de paçoca de amendoim.
No rosto riscado de rugas e amassado pelo tempo, os olhos miúdos têm a neutralidade de quem se deixa ser vivido pela rotina. São baços, piscantes, parecem esfumados, sem cor definida.
Quando o sinal vermelho se impõe ao motorista, ela se aproxima das janelas de vidro suspensas em duvidosa defesa, e oferece as toalhas: uma por dois, três por cinco. A voz é fraquinha, é qual um filete de água que sobrou no encanamento, logo que alguém desligou o registro. Mas caminha decidida, embora manqueje da perna esquerda, um pouco arqueada. Quase sempre retorna com a mesma toalha pendurada nos dedos.
Certo que não compensa, o comércio que faz. Mas sei que sua figura cotidiana integra a paisagem, e é ponto central na aquarela da praça.
Já a vi, a uns cem metros do ponto em que fica todos os dias, ao sol que descolore, cada vez mais, o lenço desbotado amarrado à cabeça, ou à chuva que encharca as flores desmaiadas do sempre mesmo lenço, e escorre entre as valas que o tempo escavou em suas faces escuras.
Freqüentemente tem uma sombrinha que vira ao avesso, quando o vento a pirraça. Às vezes, um casaco sem cor que, vestindo seus braços, ludibria a frieza.
Já a vi em um fim de tarde no ponto de ônibus, a cem metros da praça. Não olhei a bandeira, mas a vi subindo, sem rosto de triste, nem olhos de alegre, apenas subindo, a ocupar qualquer assento, com a sacola amarela pendente do braço, e o vidro de tampa vermelha colado a seu peito. Não sei aonde vai, talvez ela more em um barraco de encosta, das muitas encostas desta minha cidade.
Dia seguinte, vem novamente, seja verão de queimar a pele da gente que passa, seja inverno como este que se apressa neste maio há pouco nascido. Ela estará encostada ao tronco do fícus, tentando abrigar-se, sempre mancando, na direção do carro mais próximo, quando, no farol, a chama vermelha vem em seu socorro.
Não sei se tem filhos, não sei se tem netos, talvez engane meia dúzia de fomes com suas toalhas. Talvez complemente os trocados das mãos de alguma possível garota, mal chegada aos 12, que, na margem da BR, ofereça sua infância ao caminhoneiro que primeiro a aceite. Talvez, talvez... o que posso saber?
Só sei das toalhas de pratos na paisagem da praça.




Gláucia Lemos é poeta e ficcionista. Dentre dezenas, escreveu o premiado romance As chamas da memória (BDA, 1996).

Foto por street paparazzo, retirada do Flickr.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2008

SONETOS DE ESPELHO PARTIDO


Gerana Damulakis


O livro Espelho Partido (FUNCEB, 1996), de Aramis Ribeiro Costa, traz os sonetos escolhidos dentro de um tempo que parte de 1971, ou seja, poemas do autor muitíssimo jovem, que todavia não publicara seu primeiro livro - Quarto Escuro é de 1974 -, até 1996, quando o romancista e contista já contava com mais de uma dezena de títulos publicados.

Os sonetos que foram escolhidos aqui tratam dos olhos, espelhos da alma, como são conhecidos. Além da qualidade, suscitam interesse também pelo tema com tal tratamento poético, haja vista a quantidade de vezes que são reproduzidos nos blogs. Primeiramente o "Soneto dos Olhos Castanhos", para D. Angélica, e na seqüência, os sonetos para os olhos imaginados pelos leitores.


SONETO DOS OLHOS CASTANHOS

A minha Mãe

Nesses teus olhos de um castanho escuro
Vejo os meus próprios olhos refletidos
Silenciosos, quedos, comovidos
De se encontrarem em lugar tão puro.

E se por vezes tens olhar tão duro
Para os meus atos, quando irrefletidos
Em meus momentos tristes, deprimidos
É teu olhar suave que procuro.

São teus olhos castanhos mostruário
Dos sentimentos todos, teu fadário
Que nobremente guardas no teu peito.

E ao ver teus olhos, vejo, desse jeito
Meus próprios olhos tristes - espelhados
Mortos - nos teus olhos amortalhados.


SONETO DOS OLHOS AZUIS

São como dois azuis perdidos lagos
Teus lagos olhos, mansos olhos rasos
Puríssimos azuis, dos prantos vasos
Perdidos olhos claros como lagos.

Espelham os teus olhos mundos vagos
Lagos espelham sóis azuis, ocasos
Translúcidos azuis dos meus acasos
Teus raros olhos claros, olhos vagos.

Vagueiam sobre mim teus olhos caros
Claríssimos azuis teus olhos raros
Perdidos olhos calmos como lagos.

Espelhos que refletem mundos rasos
Espelham sentimentos que são vasos
Teus olhos tão azuis... azuis... e vagos.


SONETO DOS OLHOS VERDES

Esses teus olhos verdes, cor de mar,
São oceanos verdes de esperança
Onde as vagas, sem fim, do teu olhar
Brincam de amor, em rosto de criança.

Quando esses olhos verdes, a sonhar,
Fazem-se vagas, em brejeira dança,
Sinto a tristeza imensa de te amar
E ter-te sempre apenas em lembrança.

Esses teus olhos verdes, transparentes,
São lindas ondas verdes, envolventes,
A segredar paixão que não confessas...

E nessas ondas mansas ou revoltas,
Sobrenadando qual espumas soltas,
Vejo infinitos feitos de promessas...


SONETO DOS OLHOS NEGROS
Teus olhos negros, tristes e profundos
São dois misteriosos infinitos
Onde os meus olhos vão perder-se aflitos
De conhecer-te os teus secretos mundos!

E sempre que retornam oriundos
Desses teus olhos negros e malditos
Menos sabem meus olhos imperitos
Desses teus olhos pérfidos e fundos.

Teus olhos negros, belos e tristonhos
Eternos pesadelos dos meus sonhos
Mudos espelhos de um secreto abismo!

Ao ver-te os olhos negros, tão bonitos
Deixo os meus olhos nos teus olhos fitos
E nos mistérios dos teus olhos cismo...

EM FRENTE


Gerana Damulakis


Para o escritor Hélio Pólvora



Há Apolo e há Dioniso,
o homem olha os mitos
com fé e reza, ainda que
pareça ateu.

Agora, fechou as janelas:
Hélio brilhando lá fora,
não é Febo, ou Pan, nem
o próprio Zeus, mas
é poderoso e forte,
só que pouco adianta,
ele já fechou suas janelas.



Este poema é do livro Guardador de Mitos.
A foto traz os escritores, da esquerda para a direita: Aramis Ribeiro Costa, James Amado e Hélio Pólvora. Estávamos então na Fundação Casa de Jorge Amado, ao fundo estão as paredes forradas com as capas dos romances de Jorge em traduções pelo mundo.



terça-feira, 8 de janeiro de 2008

UM CENTÃO





Gerana Damulakis

Manuel Bandeira foi o primeiro poeta que li, não foi o primeiro que ouvi, pois que ouvia muitos poetas serem declamados (isto é outra história), mas Bandeira foi o primeiro que li. E me apaixonei não apenas pela poesia e, sim, pela literatura de um modo definitivo, vida afora. Como a poesia de Manuel Bandeira traz a emoção de forma tão intensa e me arrebata sem exceções, optei pelo poema intitulado “Antologia”. Trata-se de um centão.
Um centão é uma composição poética (ou musical) elaborada com versos de vários autores ou de apenas um autor, assim como diz o nome: “manta de retalhos”, que vem do latim “cento”. A origem do centão é greco-latina: o poeta de então clamava por poemas homéricos e virgilianos como ponto de partida para construção de seu centão. No caso de Bandeira, o poema “Antologia” é um centão com seus versos.
Certa noite, resolvi me dedicar ao centão e procurei a origem de verso por verso, todos pertencentes a poemas memoráveis de Manuel Bandeira. Primeiramente seria maravilhoso sentir “Antologia”, perfeito como se sua feitura não tivesse nada de uma “colcha de retalhos”: fruto da magia do mestre.
Vou numerar os versos para facilitar a decifração do lugar original de cada um deles.

ANTOLOGIA

1 A vida
2 Não vale a pena e a dor de ser vivida.
3 Os corpos se entendem mas as almas não.
4 A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

5 Vou-me embora p’ra Pasárgada!
6 Aqui não sou feliz.
7 Quero esquecer tudo:
8 — A dor de ser homem...
9 Este anseio infinito e vão
10 De possuir o que me possui.
11 Quero descansar
12 Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
13 Na vida inteira que podia ter sido e que não foi.
1 4Quero descansar.
15 Morrer.
16 Morrer de corpo e alma.
17 Completamente.
18 (Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

19 Quando a Indesejada das gentes chegar
20 Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
21 A mesa posta,
22 Com cada coisa em seu lugar.

Versos 1 e 2: do “Soneto Inglês”.
Verso 3: de “Arte de amar”.
Verso 4:, de “Pneumotórax”.
Versos 5 e 6: de “Vou-me embora p’ra Pasárgada”.
Verso 7: de “Cantiga”.
Verso 8: de “Presepe”.
Versos 9 e 10: de “Resposta a Vinícius”.
Verso 11: de “Cantiga”.
Verso 12: de “Poema só para Jaime Ovalle”.
Verso 13: de “Pneumotórax”.
Verso 14: de “Cantiga”.
Versos 15, 16 e 17: de “A morte absoluta”.
Verso 18: de “Lua nova”.
Versos 19, 20, 21 e 22: de “Consoada”.

SONETO INGLÊS nº 2

Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus – ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

PNEUMOTÓRAX

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três... trinta e três... trinta e três...
- Respire.
.................................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

CANTIGA
Nas ondas da praia
Nas ondas do mar
Quero ser feliz
Quero me afogar.
Nas ondas da praia
Quem vem me beijar?
Quero a estrela-d'alva
Rainha do mar.
Quero ser feliz
Nas ondas do mar
Quero esquecer tudo
Quero descansar.

PRESEPE
................
Mais do que tudo isso
O amedrontaria
A dor de ser homem,
O horror de ser homem,
— Esse bicho estranho
Que desarrazoa
.......................

RESPOSTA A VINÍCIUS

Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
— Ah feliz como jamais fui! —
Arrancando do coração
— Arrancando pela raiz —
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui
.

POEMA SÓ PARAJAIME OVALLE
Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã já estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei,
Bebi o café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.

A MORTE ABSOLUTA

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.
Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

LUA NOVA

Meu novo quarto
Virado para o nascente:
Meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
Volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei de aprender com ele
A partir de uma vez-
Sem medo,
Sem remorso,
Sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- Esse sol da demência
Vaga e noctâmbula.
O que eu mais quero,
O de que preciso
É de lua nova.

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Aí estão os versos do centão, alguns poemas não foram reproduzidos integralmente por conta do tamanho e “Vou-me embora p’ra Pasárgada”, por ser muito conhecido e facilmente identificável.
Ressalto que Bandeira morreu em 1968; há exatos 40 anos em outubro deste, portanto. A melhor homenagem é sempre a leitura de seus poemas.
Como disse Drummond:
“Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,teu nome é para nós, Manuel, bandeira”.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

MAIS QUE SEMPRE



Gerana Damulakis


Luís Antonio Cajazeira Ramos (foto) resolveu formar uma antologia de seus próprios poemas e intitulou o volume Mais que sempre. Quando colocou o autógrafo no meu exemplar, deixou estas palavras: "Gerana, a primeira pessoa a reagir com palavra escrita sobre minha palavra escrita. Isto é muito, é sempre, é mais que sempre". Fez um jogo com o título e fez um afago no meu ego. Seu primeiro livro foi Fiat Breu (Edições Papel em Branco, 1996), daí vem Como se (FUNCEB, 1999), do qual retiro o soneto "Punhal", cortante (sem trocadilhos), que faz a platéia estremecer quando dito pelo autor em voz alta, tal como ocorreu numa Bienal do Livro, aqui em Salvador, no Café Literário que ali foi implantado. Em 2002, Luís Antonio publicou Temporal temporal, pela Relume Dumará, um livro que antes de ser editado já era um vencedor: ganhou o Prêmio Gregório de Mattos 2000 da Academia de Letras da Bahia e foi menção honrosa no Cruz e Sousa 1998 da Fundação Catarinense de Cultura.
Há vários poemas de Luís que poderiam servir como amostra de sua poesia, seja pela força, seja pelo espanto que causam, seja pela beleza em si. Seguem o supracitado "Punhal" (pena que a voz dele não pode ir junto) e "Sonâmbula", dedicado a Gerana (diz ele que logo após a feitura, leu para mim pelo telefone - ele tem mania de fazer isso - e eu adorei; mas há tantos que eu admiro igualmente).


SONÂMBULA

A Gerana Damulakis

A vida passava, o amor não chegava.
Aguardava (a esperança a guardava)
o que não acontecia, quem não vinha.

Desenhava a felicidade na fumaça das horas,
debruçada sobre o parapeito dos sonhos,
vendo a todos transeuntes do deserto,
sob a sacada das emoções perdidas.

Improvável Penélope, tecia ilusões de partida
para confins imaginários sob o lençol diáfano,
manchado do sangue virgem de seus desejos,
satisfeitos na solidão de núpcias de nuvem.

A vida passava, a dor não chegava
ao pesar da vigília, a que o engano negava
acordar os galos e deitar os lampiões...
E beladormecia na eternidade em que se perdera.

E não se sabe que bruxa, que fada,
que fado a vida reservara a seu destino
de Cinderela das vertigens.


PUNHAL

Não quero ver, em teu olhar de vítima,
o viés de amor que me pretende algoz
de um sofrimento vão que ignoro. Atroz,
destruo teu desejo com desídia.

Meu dia tinge em negro a noite branca
do teu sonho, enlutando-o em solidão.
Ah esperança de que eu te fosse a pomba
que apazigua a dor... Tola ilusão.

Nego-te os arrepios de meus dedos
provocantes e táteis em teus pêlos
e não faço as carícias que precisas.

Não digo nada além de meu silêncio.
Nem ao menos desprezo teu tormento,
pois sigo estátua fria, sem desdita.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

NÃO FAÇO PARTE DO PACOTE

Gláucia Lemos

Há coisas que, provavelmente por tradição, se tornaram comuns a quase todas as pessoas. Parece que um dia um toque de reunir determina: todo mundo tem que ter celular; toda mulher tem que ficar loira depois dos 50; toda pessoa culta tem que endeusar Chaplin e tem que ter lido Proust (mesmo quem não endeusa e quem não leu, afirma que sim!). Nos meus tempos de universidade, todo jovem tinha que ser de esquerda, tinha que estar “conscientizado”. A partir do século XX, toda mulher tem que ter braços e pernas iguais a cambitos, e peitos de silicone. Em todos os tempos todo mundo tem tido um diário no qual anota seus feitos, defeitos e mal-feitos para a posteridade nele basear seus conceitos referentes ao autor. E, não sei desde quando, a humanidade tem feito uma lista de intenções a cada novo ano. Sem falar no carro, obrigatório, para enfartar no calvário do trânsito, item que é obrigatório! Um amigo até me disse certa vez, que quem não tem carro não existe. Desculpe, eu não nasci, e nem tinha percebido. E não vou me obrigar a aprender a dirigir só para justificar meu registro de nascimento, tampouco lhe apresentar minha declaração de rendimentos.
É assim que as coisas caminham socialmente. Como se todos nós, membros de uma sociedade, fizéssemos parte de um pacote, para cuja inserção fosse imprescindível semelhança nos gostos e no perfil. Mas não é bem assim que as coisas acontecem individualmente. Acho pouco inteligente deixar-se empacotar. Às vezes uma mulher sessentona prefere cobrir as melenas grisalhas com tonalizante cor-de- cobre, por questão estética, ou por gosto pessoal, ou até por não desejar fazer parte do bloco das coroas tingidas de loiro, e ficar com cara de todo-mundo. Às vezes há um certo professor que não compra celular porque não gosta de ser procurado onde quer que esteja, não quer ninguém no seu pé. Às vezes uma pessoa muito tensa não tem tranqüilidade para se envolver na pressão do trânsito, e prefere andar de táxi. Por que toda coroa há de obedecer à sugestão do seu cabeleireiro, e virar loira? E quem não tem celular ser tido como um coitadinho, nem celular ele tem... ? e quem opta pelo táxi ser enquadrado entre os que estão contando centavos? Não será o caso de pessoas como as que enumero, exemplos postos à toa, serem personalidades fortes que não se incomodam de estar ao arrepio do convencional? Pessoas firmes?
Considerações à parte nas quais me prolonguei, volto à origem deste texto que foi inspirado na observação de que eu fico à margem da tradição em alguns itens. Principalmente, jamais consegui manter uma agenda de compromissos, embora seja muito organizada, a ponto de desarrumar a mesa posta, para ajeitar a toalha se tiver ficado torta. Mas se algo for anotado na agenda, me esqueço de consultar e perco a data. Como me oriento para meus compromissos? Escrevo bilhetinhos e colo acima do espelho interno do meu armário de roupas, por ordem de datas.
Também não mantenho um diário, já tentei inúmeras vezes, desde a adolescência. Fico dias e semanas sem escrever, e o diário perde a função. Prefiro fazer anotações e comentários esparsos, divagações até mesmo muito pessoais, em agendas (que ganho e não uso) e vão sendo atoamente registrados. Se alguém quisesse o meu perfil a partir daí, nunca encontraria o fio da meada. Felizmente ninguém está interessado nisso. No entanto, se estou trabalhando um livro, com disciplina religiosa diariamente volto a ele.
Nem faço listas de intenções. Nunca fiz. Obviamente sempre tive sonhos, algumas vezes tive esperanças, muitas vezes fiz planos, faço planos, como viver sem eles? Mas sem tempo definido. Durante 40 anos sonhei construir uma casa com a planta que eu queria, uma casa sem corredor. Sonhei e esperei. Morei em casas e apartamentos, ora menores, ora maiores, lamentando toda perda de espaço e de iluminação dos respectivos corredores. Na infância nossa casa era grande e antiga, tinha um corredor largo e longo, que nunca mais terminava, para ele se abriam todos os quartos que, se não estivessem com luzes acesas, ficavam muito escuros. Eu tinha medo de escuro e fazia o percurso do corredor com o coração aos solavancos, ainda que o corredor estivesse iluminado, mas havia as portas abertas dos quartos escuros... Nunca mais acabava aquela caminhada, porque as crianças eram proibidas de correr dentro de casa, era preciso andar... morrendo.
Sonhei longamente a minha casa sem corredor, sonhei sem planejar, esperei sem ansiedade, nem perspectiva. 40 anos depois, a construí. Exatamente como sempre a desejei. Toda a meu gosto pessoal, somente meu. Ampla, clara, mais larga que comprida, rodeada de varandas nas 4 faces dos pontos cardeais, e sem nenhum corredor. Sem luxo, não preciso. Mas era Aquela.
Não sei se os 40 anos de sonho sem planos, e de esperança vazia, me ensinaram a vanice dos planos e a fragilidade das esperanças, não me firmo nessa experiência para nada, mas pode ser isso pensado como um testemunho da impotência humana, e da dependência das coisas em relação às oportunidades. Quando a oportunidade acontece, chega a hora de nascer em carne-e-osso, em papel-e-tinta, ou em tijolo-e-concreto, aquele desejo que envelhecia sem perder o vigor dentro de nós. Teria sido exatamente assim, e nesse mesmo tempo, se eu tivesse delineado o plano e padecido a longa ansiedade.
Não é por isso que não faço listas de intenções a cada novo ano. Tudo o que desejo, espero. A oportunidade virá. Ou não. Seja qual for o objetivo.
Neste ano até falei: “Quero fazer novos amigos este ano, ampliar”. E quero. Mas só falei, expressei um desejo. Sem ardor nem expectativa, não vale a pena. Não faço listas porque não acredito nelas.
No que é mesmo que acredito?


Gláucia Lemos é romancista, contista, poeta e tem também vários títulos de literatura infantil e juvenil. É graduada em Direito pela UCSal e pós-graduada em Crítica de Arte pela UFBA.